Lucila escrita por Nucha Rangel Braga


Capítulo 9
IX - Gritos




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                - QUERIDA, me perdoe; eu sei que você não gosta que eu me atrase para o jantar... – Plácido entrava pela grade do terraço onde era também a garagem, limpando as botas no capacho, sem olhar para Olivia. Então, o susto: sua esposa e Rubem, sujos de sangue?!

                - Mas o que foi isso, meu Deus?! – Perguntou, atônito, largando a valise no chão.

                - Eu não sei... Ele entrou agora... – gaguejou Olivia – Rubem, olhe para mim; fique calmo. Ela quem, que está ferida...?

                Neste instante, alguém grita da rua:

                - Rubem!! Vem logo!!

O garoto nem respondeu, puxou logo a médica pela mão e correu com ela em direção à rua! Tudo escuro, sem ninguém nas calçadas. Plácido os seguiu, batendo a porta. Nem notaram que o telefone começara a tocar. O veterinário os seguia, indignado:

                - Largue-a agora mesmo, Rubem! Eu estou mandando!

                - Plácido, calma! Não adianta, ele não ouve! Rubem, me escuta...

                - É SÉRIO, TIA!! ELA TÁ MORRENDO!! – Berrou o rapaz.

Atentaram. Outro grito:

                - Rubem!! – Era Ricky, acenando do carrinho, metros à frente, escondidos embaixo duma árvore.

Agora era Olivia que puxava o rapaz:

                - Tá bem! Vamos ver o que houve! Plácido!

Correram os médicos na frente, e Rubem nem falava, só os seguia.

                - O ferido está naquele carrinho?! – Perguntou Plácido.

                - Tá. – Respondeu o menino.

                - Deus, é um carro de jardinagem! Como é que.... Ah, esqueça!!

E no carrinho, a cena era bem feia: ele balançava com o movimento da mulher, acordando enrolada pela lona, toda dolorida e assustada; Sergio, imundo de sangue e terra, tentando conter a mulher e para quem via de fora, só apareciam os pés e as mãos dela, feridos. E ela urrando de dor! Sergio tentando acalmar:

                - Calma, pelamordedeus...!! Tá tudo bem!

E não adiantava! Ela estava descontrolando! Ricky fora do carrinho, tentava segura-lo para não virar com os dois! Estarrecidos, Olivia e Plácido não entendiam nada! Olívia nem pensou; pulou para dentro do carrinho, ordenando ao rapaz:

                - Sergio, saia já de cima dela e me ajude com esse pano...!! Meu Deus, como é que você ficou imundo assim?!

Ele nem conseguia responder, só encarou a médica. Medo dos adultos. Olivia ralha com ele:

                - Eu preciso ver!! Sem ver o que é, não posso ajudar! Ouviu?

De olho baixo, o rapaz desenrolou a lona e a mulher, sentindo o tecido afrouxar, se agitou mais! Sergio tentou contê-la, segurando-a pelos braços:

                - Não, calma...!! Tá tudo bem, somos nós. – Falava baixo, com calma, apesar de apavorado.... Ela era muito forte! Olivia, para ajudá-lo a descobrir a mulher, afasta a lona bruscamente e o tecido raspa na pele arranhada da jovem, que reage gritando! Um grito horrendo, um rugido!  A médica se apavora diante do que vê, uma jovem alta, nua, imunda e ferida, agoniada. Albina. Cabelos sujos. Sangue. Terra. Mau cheiro. Asas.

                - MEU DEUS!! – Gritou, recuando. Plácido a puxa do carrinho:

                - Oli, desça! Desça daí agora!!

Ela não deixa; só o afasta com um gesto e se aproxima lentamente da jovem, encarando os meninos:

                - Pelo amor de Deus... Pelo amor de Deus, o que foi que vocês fizeram? – Murmura, assustada. Os garotos não respondem. A jovem chora, geme de dor. E a pediatra, como se atendesse um pequenino, tenta acalma-la, passa a mão nos cabelos dela, emaranhados e sujos. Tenta ver porque há tanto sangue e logo nota os arranhões na pele estranha.... Muito grossa, como um couro curtido e sem pelos. O absurdo das asas. Então vê o ferimento mal curativado na asa direita. Era estarrecedor, não entendia se ela era humana ou um animal. Apavorada, a pediatra fica entre a dó e o medo, o choque a paralisava... Mas nessas horas, leitor, o que faz alguém repleto de medo, numa situação de socorro? Médicos sentem medo, afinal.

Ela olha em volta; as casas são afastadas umas das outras, os postes na rua não ajudam a enxergar. Teriam os vizinhos escutado o urro da garota? Volta-se para o marido:

— Plácido, é uma mulher, está muito ferida! Temos que prestar socorro! – Disse, secamente. Tentava se controlar, estava morrendo de medo da jovem. E para Ricky: - Você, me ajude a levar esse carro para a garagem!

— O quê? – Reagiu Plácido – Ela, isso, não vai entrar em nossa...

Olivia o encarou gravemente:

— Somos médicos. Volte para casa e pegue sua valise. Ela VAI para lá, agora!

Os meninos, sem dizer uma palavra e assustados, apenas ajudavam; Sergio não encarava a velha amiga, estava muito envergonhado. Imundo de lama, terra e sangue. Rubem, também todo sujo de sangue. Ricky, com um arranhão no braço. Uma mulher nua e machucada. O que a tia Oli pensava deles agora? Tentava arrumar uma posição melhor para a jovem dentro do carrinho. Ricky subiu novamente e dirigiu para a casa dos médicos. Rubem empurrava o carro atrás e Plácido, atordoado, os acompanhava:

— Vou na frente, separar os instrumentos.

— Onde estaciono? – Perguntou Ricky.

— Em nossa garagem, - ordenou Olivia – ela vai entrar pela porta lateral. - Procurou o olhar de Sergio e Rubem. Um a evitava. O outro, empurrando o carrinho, não notou.

O clima pesava; ninguém precisava olhar no olho do outro para saber o que esperar. Mas ela os conhecia bem e sabia como faze-los falar. Faria isso mais tarde, agora olhava aquela criatura imensa, indefesa e tão machucada, temia que entrasse em choque; notou como Sergio conseguia mantê-la calma, o garoto afagava o cabelo da moça, segurando sua mão. Se tivessem sido eles a agredi-la, ela não aceitaria os cuidados... E como a agrediriam, se ela era muito maior do que eles e... Anormal?

Rubem olhava para a jovem, que agora respirava com mais dificuldade. Reparava em Olivia, sem que ela notasse: a médica concentrava-se na garota, o olhar grave.... Podiam esperar um inquérito depois! Se sentia enjoado novamente.

Ricky, com certa dificuldade, estacionava o carrinho de jardinagem na garagem-terraço da casa. Plácido escancarou os portões, a grade que dava para a sala de estar. Separara material de primeiros socorros e se esterilizara para acudir a moça; mas nem sabia se seria capaz de alguma coisa. Ou sua esposa.

Sergio olhava apenas para a jovem, sofrendo, dolorida. Nem pensava mais, queria apenas que ela sarasse. O pensar sem palavras. O intuir que tinha às vezes e mais uma vez estava certo.

Tinha mesmo alguém no matagal atrás de sua casa.

Agora ele e seus amigos tinham um problema.

Ou o que?


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