Lucila escrita por Nucha Rangel Braga


Capítulo 13
XIII - Dúvidas




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QUASE TRÊS DA MANHÃ, quando se completou a higiene da “paciente” e todos estavam exaustos!  Felizmente, era domingo; nem Olivia nem Plácido teriam atendimentos. O pobre veterinário preferiu dormir no sofá da sala mesmo, temia que a garota acordasse. Já os meninos, tratou de ordenar banho e cama, nos quartos do primeiro andar. Naturalmente, os rapazes queriam ficar na sala também, mas sem acordo:

— Eu disse BANHO E CAMA! E mais tarde, vou conversar com vocês, vão nos contar essa história toda com a maior calma do mundo, não quero nem saber de reclamação. Depois do banho, passa todo mundo para a cozinha, engolir alguma coisa e dormir! Andem.  – Disse Plácido, apontando para a escada. Portanto, ou obedeciam ou obedeciam. Subiram resmungando.

Olivia arrumara outras cobertas e acomodara a moça, tomando cuidado para que ela não reagisse. A pediatra estava exausta como poucas vezes se sentiu na vida de médica. Observava a jovem: como aquele organismo poderia estar vivo? Comparou-se com ela. Olivia era baixinha, um metro e meio, magra com musculatura cuidada a corridas e bicicleta. Claro que, com seus quarenta e sete anos, o tempo cobrava enviando sinais ao corpo, a pele e o cabelo começavam a ser mais secos, nem sempre os joelhos gostavam das pedaladas diárias... Nada inesperado. Mas aquela garota tinha um organismo exorbitante! Aliás, qual seria aquela altura...? Ia mesmo usar uma fita métrica, mas seu marido pediu ajuda na cozinha.

Deixou a jovem agasalhada sob várias mantas e, se afastando andando de costas para não tirar os olhos dela, foi até Plácido. Ele tentava pensar em alguma coisa. Assim como sua esposa, o pensamento não era sobre o que houvesse na geladeira:

— Amor, estou com medo. – Disse Olivia, o abraçando.

— Eu também. Mandei os meninos dormirem lá em cima porque não quero que corram riscos... Essa... Isso, sei lá se é mesmo gente... Rugiu como um leão em nosso terraço, Olivia. Não sei como não veio nenhum vizinho aqui! O que eu iria dizer...?

— Pensei isso o tempo todo. Mas os meninos... Plácido, eles não estão mentindo, nós os conhecemos. Eles sabem tanto quanto nós e também têm medo.

— Eu sei, querida. Mas são menores. Legalmente, são crianças! Você sabe que eu já discordo de muita coisa na vida de “artista” dos meninos; imagine se essa criatura aí avançasse num deles! Nem sabemos se ela é menor de idade também...

— Então?

— ... Então, que eu quero chamar socorro. O faria agora mesmo, mas seria me aproveitar da fragilidade dela.

— Não.

— Não, o que?

— Plácido, não chame nada hoje. Polícia, bombeiros, o que for! – Olivia estava angustiada – Essa moça não fala. E se ela não tiver como contar sobre quem é? A polícia a levaria para onde, para as mãos de quem?

— Ollie...

— Eu sei que você não quer que a maltratem. Mas as pessoas não pensam do mesmo jeito que você. De qualquer modo, ela não poderia ser removida daqui agora.  - Plácido iria responder, mas sua esposa continuou: - Seria desumano, isso; eles disseram que ela estava apavorada, não foi? Por que causar mais pânico...?

Plácido, de mãos na cintura, cabeça baixa, pensativo, respirou fundo. Enfadava, cansaço, medo.

— Tudo bem. – Disse. – Mas eles só vão se aproximar dessa sala comigo por perto. E vão sim, conversar sobre isso, vão ouvir muito bem.

— De mim, também, tenha certeza – Olivia o persuadia com voz calma – e também vou protege-los com você. Só não quero que ela se agite ainda mais. Tem que haver uma explicação para tudo isso.

Pararam os dois; estranharam o silêncio.

Voltaram bem devagar à sala. Mas estava tudo como deixaram. A jovem dormia, ressonando levemente. Os bichinhos de estimação, coitados, do alto da escada não desciam. E as portas dos banheiros no primeiro andar, fechadas. O casal subiu a escada lentamente, com muito cuidado para não fazer barulho. Plácido encostou o ouvido em cada porta e, realmente, os chuveiros estavam ligados. Olivia checou os quartos... Ricky estava em um deles, deitado no carpete, o braço cobrindo os olhos. Ela bateu de leve na porta:

— Ei... O que há?

— Oi, tia. – Disse o garoto, com voz fraca – Nada, estou esperando um banheiro desocupar, para tomar banho.

— E essa febre?

— Não sei. – Descobriu os olhos. Olivia os notou vermelhos. O garoto encosta mão em testa, pescoço. – Não sei medir, mas tou meio quebrado...

Ela o afere; esquentando, parece aumentar. Os cortes no braço com pele meio inchada. Percebendo um começo de infecção, ordena:

— Você vai tomar um banho quente, para evitar um choque térmico; depois, tentar comer alguma coisa para tomar um antibiótico, tá bem?

O menino somente concordou, quieto. Da porta do quarto, Plácido olhava para a sala; a jovem permanecia dormindo. Ao menos parecia que a higiene a acalmara, mas pelo tempo que já fazia desde que a fizera inalar o clorofórmio, previa que ela acordasse antes do dia clarear.... Atentou ao ambiente. Tudo quieto, apenas o barulho dos chuveiros. A vizinhança estaria mesmo alheia, ou será que ninguém veio na porta somente para não tentar...? Preferiu abstrair. Eartha Kitt parece notar a apreensão do dono e se enrosca em suas pernas, miando baixinho. Um sinal para ele dar atenção a ela e a Corto. O veterinário sinaliza para a esposa e desce com os bichinhos o seguindo, desconfiados com a forasteira. A gatinha passa com orelhas rasas e entre dentes, o dono achando graça e cuidando para não acordar a jovem. Sumiram para a cozinha. Olivia os observando da escada; parece um peso no ar... Como se tudo ali gerasse desconfiança, todo mundo na casa olhando para tudo. E não disse nada, mas se preocupava: para ela, os arranhões em Ricky não deveriam gerar um quadro febril.  Sergio, saindo do banho, passa na porta do quarto e avisa o amigo que é a vez dele; Ricky se levanta, alquebrado, sem graça, levando uma toalha e Sergio estranha:

— Quê que cê tem?

— Quebrado... Moleza, cansado. Acho que é febre. – E passou para o banheiro. Sergio nota o olhar da pediatra:

— Tia...?

— Tem febre, sim. Mas vou ficar de olho. E você, para aquele quarto ali. Vou arrumar uns pijamas do Plácido para vocês usarem. – Respondeu, indo ao quarto, mas atenta à sala. De lá, Plácido já vigiava o sono da jovem, enquanto os bichinhos comiam escondidos na cozinha. Como das portas dos quartos dava para ver o térreo, Sergio ficou por ali, de olho em tudo; inclinou a porta do quarto e olhava para a sala. A jovem dormia, o rosto carregado. Ainda não tentaram abrir os olhos dela, para que não se apavorasse ainda mais. Mas quando o sedativo perdesse o efeito, o que viria?

Rubem também já estava no quarto, sentado na cama, olhando para o chão. Porta fechada. O rapazinho alto chamava a atenção das pessoas, pois geralmente se interpreta que pessoas altas pareçam mais fortes, resistentes. Ora, ele só tinha dezesseis anos, mas já media 1,86m! Aquela noite tinha sido apavorante para ele e seus amigos, mas sempre se sentia mal com seus medos, se envergonhava deles. E realmente, a porta do quarto fechada não lhe fazia sentir mais seguro. Preferia que todos da casa estivessem ali com ele, até os bichos! Mas como sempre, não contava a ninguém seus incômodos. Nem sabia como conseguira cuidar da... Asa. “Meu Deus, uma mulher com asa”, pensou. “E se ela for feroz, for quem nem bicho, for um monstro...? ”. Maldito medo. De novo! Era ele que o fazia enjoar, foi por medo que vomitou no matagal. E não queria que os tios doutores ficassem chateados com ele e os meninos. Estava com medo de dormir, estava morto de fome.... Deitou-se. Os olhos pesaram.... Tentava, mas pesavam.... Dormiu. Nem notou quando Olivia abriu a porta do quarto sem fazer barulho, levando um lanche para ele. Preferiu não acorda-lo, ajeitou a coberta sobre ele e saiu.  Ela já fizera os outros dois descerem à cozinha para lanchar.

Em silêncio, os quatro preparavam pão, recheios, leite, mas tudo tão automático devido ao cansaço que ninguém se encarava. Sergio intuindo... Queria muito ficar na sala até o dia nascer, mas Plácido não deixaria e nem iria discutir. Cada um de cabeça cheia, um milhão de perguntas na cabeça... A pediatra, com pena de Ricky e vendo que ele mal tocava no sanduíche, acarinhou:

— Só mais um pedacinho. Por hoje já foi difícil, não foi? – Voz mansa, cafuné no cabelo liso do menino e aproveitou pousando a mão à testa dele. Febre. – Mastigue devagar, tome um tantinho do leite. Você vai precisar tomar remédio antes de dormir e não pode estar de estômago vazio... - E o garoto só concordava com a cabeça; deu mais uma, duas mordidas no sanduíche, um gole no leite, tomou o remédio que ela ordenou e subiu quieto para o quarto. Nem reparou na jovem.

Sergio não sabia o que dizer. Parecia se esconder de todos ali e isso o irritava! Com raiva dele mesmo! E quando amanhecesse? Quando desse a hora de voltar para casa, diriam o que? Tudo aquilo só estava acontecendo porque ele teimou que queria ir ao matagal! Foi correto ir lá e acudir a menina antes que a achassem morta, foi. Mas havia um problema enorme agora. A esconderiam, a devolveriam para o matagal (isso ele não deixaria nunca), a levariam... Para onde? Olívia corta o pensamento dele:

— Termine isso para ver se dorme pelo menos umas quatro horas, ouviu? – A voz dela era tensa. Aquele clima era tão diferente do que eles conheciam...

Dormir?

Como?


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