Irlanda

Warriors – Imagine Dragons

“Não se morre com dignidade, vive-se com ela”

POV Kyle Andrews

O sol estava a nascer. Um disco amarelo desmaiado nascia entre as árvores do bosque que havia perto da minha casa, mostrando os primeiros traços de azul claro sobre o azul-escuro da noite. Andei uns quinhentos metros até chegar a uma casa azul com heras subindo pelas suas laterais. Entrei pelo portão que sabia estar aberto e bati à porta. Pouco tempo depois a porta abriu-se lentamente, revelando uma garota com estatura bem baixa, devia ter por volta de um metro e cinquenta e cinco, os seus longos cabelos levemente cacheados caiam-lhe pelo rosto emoldurando-o. Enquanto os olhos azuis são tão penetrantes que posso jurar que vê a essência das pessoas.

— Bom dia Luna. Pronta para ir embora?

— Bom dia Kyle. Sim, quando quiser podemos ir.

Andamos até a paragem do ónibus conversando sobre trivialidades. Todos os sábados íamos até ao hospital para as nossas consultas. Foi num desses dias que eu a conheci. Na altura ela era mais pequena, se é que isso é possível e não tenho a certeza como vos explicar isto, mas não era exatamente, ela que eu conheci.

— Que pensas? — Perguntou virando os olhos que antes estavam concentradas na paisagem para mim. Ela nunca gostou muito deste tipo de reuniões com os médicos, mas o motivo que a forçava a tê-las era maior que a sua teimosia.

— Recordava o dia em que nos conhecemos. — Ela arregalou os olhos como se as lembranças daquele dia a ativessem atingido em força. Ela não gostava de lembrar aquele dia.

— Mais precisamente o dia em que conheceste a Karen, queres tu dizer. — Apareceu uma expressão de descontentamento. Suponho que seja doloroso tocar no assunto. Principalmente em relação à Karen, não que ela seja uma pessoa depressiva mas sempre se mostrou muito relutante quando esse assunto era tocado.

— Sim, não foi uma boa experiencia. Mas acabei também conhecendo a Cleo e a Mia, elas não foram experiencias traumatizantes como com ela. ­— Desta vez mostrou um sorriso. Ah, para quem ainda não percebeu Luna tem TDP, ou seja Transtorno Dissociativo de Identidade, mais conhecido como múltiplas personalidades. Normalmente não gosta de tomem controle do seu corpo pois acabam sempre dando problemas, e acaba sendo Luna que os tem que resolver.

— Não gosto que controlem o meu corpo, mas sim, prefiro elas que a Karen. ­— Para dizer a verdade só conheço três das suas personalidades. Não sei se tem mais, mas se tem nunca ocorreu a ocasião para aparecerem ou simplesmente não querem aparecer perante mim.

— Ah, mas foi interessante te conhecer, menino das vozes. — Ela esboçou um sorriso. Suponho que foi culpa minha por puxar o assunto, mas se há alguém com quem eu falaria abertamente, essa pessoa seria Luna. Ela foi a única pessoa que conseguiu que eu abrisse o meu coração. E olhem que isso é difícil para alguém que tem Esquizofrenia como eu. Nem com os meus pais gosto de falar sobre isso.

­— Esse foi um golpe baixo sabia? — Agora ela riu, e inconscientemente, acabei rindo também. Ela é como uma irmã para mim.

Saímos na paragem do hospital e fomos até ao enorme edifício, para nos encontrarmos com a já não era preciso aquelas sessões longas e exaustivas em que nos obrigavam a falar com uma psicóloga sobre o assunto. Agora era apenas necessário ir buscar os comprimidos para mantermos os sintomas baixo controle.

Quando terminamos decidimos ir a pé até casa. A verdade é que ela evita estar muito tempo cá fora, pois nunca se sabe em que situação vai acabar e se alguma das suas personalidades pode despertar. Para nossa sorte parecia que nada de especial ia acontecer, mas como às vezes o azar me persegue acabamos numa situação perigosa.

O que aconteceu foi, demos de cara com uma gangue bem conhecida nas redondezas, eles não foram com a minha cara e tentaram atacar-me com um tubo metálico, por trás. Luna tentou-me proteger e acabou levando com o tubo na cabeça por mim. Resumindo neste momento estou lutando com parte da gangue, no entanto o mais me preocupa é a condição de Luna.

Para meu alivio, entre um golpe e outro consegui vê-la abrir os olhos, mas a minha felicidade durou pouco quando me apercebi que aquela pessoa, não era Luna. Ao se aperceberem que ela tinha despertado os membros pararam um pouco, o que me permitiu aproximar dela. O seu olhar estava dirigido ao chão.

— Karen? — Consegui perguntar. Ela levantou os olhos para mim, era um olhar intenso e forte, quase intimidante e sorriu. Um sorriso de canto, que demonstrava que se divertia com a situação. Não, ela não era a Karen. Suspirei de alívio, mas para mostrar aquele tipo de sorriso, só podia ser ela. — Cleo é você?

— Eu sei que estive um bom tempo sem aparecer, mas como você pôde se esquecer de mim? — Perguntou num tom falso de tristeza. Podia ver nos seus olhos que estava a divertir-se imenso. Ainda mais quando percebeu a situação em que nos encontrávamos. O povo da gangue a esta altura estava tão confuso que só observavam. — E olha, não é que preparam uma agradável surpresa para a minha aparição! Como era de se esperar aquela inútil acabou metendo-se em problemas. Se bem que os tenho que fazer pagar por machucar o meu corpo. — Disse lambendo o canto da boca para limpar o sangue que ali se encontrava. Ela tinha um fio de sangue que saía de uma ferida na sua testa e percorria o seu rosto até ao queixo.

— Estás bem? — Perguntei vendo que o pequeno fio começava a engrossar. Ela respondeu com um sorriso, e olhou em volta.

— Tudo bem se eu trato dos restantes? — Assenti com a cabeça, de qualquer das formas, mesmo que dissesse o contrário ela não me obedeceria e se a tentasse impedir quem iria sofrer era eu.

E foi assim que começou a carnificaria. Por momentos tive pena dos seus oponentes, Cleo era uma personalidade violenta, e tornava-se muito pior quando entrava numa luta. Adora lutas, aliás cada vez que participa numa, não consegue controlar aquele sorriso assustador que aparece no seu rosto. Uma pessoa bem teimosa que odeia perder ou ser contrariada. Em poucos minutos estavam todos no chão, inconscientes.

— Pelos vistos este é o limite, mas algo me diz que nos voltaremos a ver em breve, por isso cuida bem dela. — Assustado com a quantidade de sangue levei-a para o hospital o mais depressa que consegui.

Monster – Rihanna ft Eminen

“A vida é um jogo, o destino dá as cartas, mas é você que decide o que fazer com elas”

POV Luna Houston

Acordei com uma enorme dor de cabeça, tentei recordar alguma coisa, mas o único que me veio à cabeça foi ter levado com uma barra de ferro na cabeça, na tentativa de desviar Kyle da trajetória da mesma. Olhei para o lado e o vi deitado na cama ao meu lado. Sorri, ele sempre foi demasiado protetor e preocupado. Ele é igualzinho a um irmão mais novo, ou pelo menos é como eu o vejo, apesar de realmente só haver dois meses de diferença entre nós.

Queria saber o que se passou durante o tempo em que fiquei inconsciente e ele me trouxe para o hospital. Apesar de ter uma ideia, e não gostar muito dela, preferia que fosse ele a contar o que se passou. Quando abriu os olhos abri mais o sorriso.

— Dormiu bem, bela adormecida? — Ele olhou para mim confuso. Só aquele olhar já contava metade da história. ­— Quem foi que apareceu desta vez? — Sentia a minha voz trémula, tinha medo da resposta, se ele revela que foi sido Karen acho que volto a desmaiar outra vez.

— Cleo! Ela apareceu e tomou conta deles. — Senti que um enorme peso saiu das minhas costas. — Ela deixou uma mensagem para você antes de desaparecer. — Disse entregando-me o seu celular que já estava pronto para visualizar a sua mensagem. Cliquei play e o vídeo começou.

— Yo, Luna, vejo que andas a ficar mais atrevida. Até já te metes em lutas. Mas sabes? — O olhar tornou-se ameaçador— Não te devias forçar a algo que não és capaz de fazer. Sinceramente, é uma pena ter que voltar tão cedo, mas não faz mal, de qualquer maneira, este corpo em breve será meu.

A mensagem terminou e eu devolvi o seu celular. Como eu odeio quando tomam controle do meu corpo, odeio como não me lembro de nada, odeio os outros se afastarem de mim por isso. Olho para Kyle que mostra um ar carinhoso, não consigo controlar e começo a chorar como uma criança pequena, enquanto ele me conforta.

— Não te preocupes, tudo vai ficar bem. — O meu choro fica mais intenso. — Não vou deixar que ninguém te faça mal, eu prometo. — Fico mais calma e limpo as lagrimas. Aquela não era eu, não sou tão fraca como para chorar a frente dos outros, mas suponho que com alguém que consideramos família é outra história.

— Não vou esquecer disso. — Sorrio. Já me sinto muito melhor. — Mas agora também tens que lidar com al Karen. — Agora foi a vez de ele sorrir torto. Ele já teve uma experiência traumatizante com ela, por isso não o julgaria caso ele não quisesse lidar com ela. Mas ao contrário do que esperava que acontecesse ele engoliu em seco e assentiu com a cabeça. Ele é uma alma bondosa que não gosta de machucar os outros, mas se pisarem a linha em certos assuntos ele é bem agressivo.

Ele nunca teve muitos amigos. Devido à esquizofrenia que foi detetada ainda quando ele era criança, a sua mãe sempre tornou-se muito protetora e não permitia que ele saísse de casa, e cada vez que ele conseguia fazer uma amizade, eles afastavam-se como se fosse um monstro ou tivesse alguma doença contagiosa. Vocês sabem como as crianças podem ser cruéis.

Agora, que devido aos medicamentos os sintomas são muito poucos, consegue ter mais alguns amigos, mas ambos sabemos que sou a única que o aceita pelo que ele realmente é, e ele é o único que me aceita pelo que realmente sou, mesmo tendo conhecido as minhas outras personalidades. Talvez por isso somos tão próximos. Não seria capaz de suportar que algo lhe acontecesse. Algo pelo que estou curiosa, é como ambos iremos reagir quando encontrarmos alguém por quem nos apaixonaremos e contarmos isso um ao outro.

Mas uma coisa é certa, eu gosto de desafios. E por falar nisso vai ser muito interessante ir à viagem anual com Kyle e conhecer os outros alunos. Sei que ele também está entusiasmado com a ideia e tenho a sensação que ela vai ser algo que nunca irei esquecer. E se há algo em mim que nunca se engana é o meu sexto sentido. No mínimo ela vai ser peculiar.

Passado um tempo tive a permissão para sair do hospital, desta vez ele quis ir pelo ónibus, porém eu insisti em ir a pé novamente. Kyle ficou claramente contrariado mas acabou por aceitar a ideia. Ninguém resiste ao meu charme, baby. Por uma enorme coincidência acabamos dando de caras com a gangue novamente, mas desta vez quando viram a minha cara saíram correndo o máximo que conseguiram, como se as suas vidas dependessem disso. Acho que a Cleo realmente os deixou traumatizados.

Rimos da situação e continuamos com o nosso caminho. Como ele ainda era longo acabamos vendo algumas situações bizarras. Como dois macacos à luta por uma banana no telhado de uma casa ou várias pessoas saindo do zoológico muito apressadas porque um rinoceronte saiu da sua jaula e até vários gatos cantando a música Girl on Fire. Foi no mínimo estranho, mas engraçado.

Ao fim de todas essas cenas e muita risada da minha parte finalmente cheguei a casa. Despedi-me de Kyle com um abraço e entrei na casa azul. Gritei que estava em casa, mas não ouve resposta. Dei um suspiro, quase me esquecia que não havia ninguém em casa. Já faz algum tempo que meus pais decidiram que deveria morar sozinha. Subi as escadas e fui arrumar a mala para a viagem que estava bem perto de acontecer.