Diga Adeus à Inocência escrita por Mahfics


Capítulo 41
9.




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A segunda-feira foi mais tediosa que meu fim de semana, não por ser uma segunda, mas por ser um dia chata, até se fosse uma sexta seria chato. Clarice não veio hoje e tenho sérias desconfianças que foi por causa das festas que ela sempre arruma nos finais de semana. Estou parcialmente de castigo porque meu carro foi destruído no dia que o deixei estacionado no bar para voltar para casa, “aqui não é Villa Lobos”, tenho que voltar de ônibus ou táxi.

Procuro por meu celular na bolsa e tento achar dinheiro para o táxi, desço calmamente a escadaria da entrada.

– Bianca!

Ergo o olhar e encontro Heitor parado ao lado de um carro, sorrio e dou um rápido aceno. Termino de descer.

– Ei, não sabia que estudava aqui. – me aproximo.

– Não estudo. – ele sorri – Vim falar com um amigo que é daqui.

Murmuro um “hm” e dou um sorriso sem mostrar os dentes. É tão constrangedor falar com uma pessoa que já beijou e não conhece direito.

– Tudo bem?

– Estou indo e você? – encosto no carro, ficando ao seu lado.

– Estou bem também. – ele sorri.

O assunto morre.

– Tenho que ir. – desencosto do carro e dou um impulso para voltar a andar – Foi bom te ver.

– Como você vai embora?

– De táxi ou de ônibus. – dou de ombros – Me viro.

– Que isso – ele segura meu braço -, eu te dou uma carona.

Quanta gentileza.

– Como sei que não vai parar o carro em qualquer lugar e se aproveitar de mim?

– Porque eu podia ter feito isso quando você estava bêbada, ia ser muito mais fácil. – ele rebate.

Sorrio.

– Tudo bem. – concordo com a carona – E seu amigo?

– Posso ligar para ele mais tarde. – ele dá de ombros.

Consinto e me aproximo do carro novamente, ele destrava e eu entro.

O caminho foi silencioso, ele não ligou o rádio e fiquei com receio de pedir para ele ligar.

– É daqui de São Paulo mesmo? – puxo assunto.

– Sou e você? – ele me encara de canto de olho.

– Também.

Fala mais alguma coisa... O que? Ai, Deus, não sei puxar assunto com ele.

– Quantos anos você tem?

– 23 e você?

– 18.

– Que bebê. – ele ri.

Reviro os olhos e rio.

– Sabe, seu rosto não é estranho. – ele comenta, estreitando os olhos.

– Talvez porque eu já fui notícia. – sorrio – Já ouviu falar da Chapeuzinho de Villa Lobos?

– Nossa, pode crê, você apareceu naquela revista e nas notícias, não foi? – ele me encara rapidamente, sorrindo.

– Sim. – esfrego meus joelhos – Sou eu.

– Que honra.

Franzo o cenho.

– Honra?

– É, de ter ficado com alguém famosa.

Rio.

Gostaria de ter outro tipo de fama.

– Então, o que houve com o carro?

Suspiro.

– O deixei estacionado lá e quando voltei no dia seguinte, está deplorável. – ainda sinto raiva por isso – Ainda quero entender o que leva uma pessoa a destruir uma coisa de outra pessoa.

– A mesma coisa que leva uma pessoa matar a outra.

Logo já estamos na frente da minha casa, noto que minha mãe já está aqui. Pego minha mala e abro a porta, puxo minha mochila do chão do carro e o encaro. Devo beijá-lo? Ou só falar tchau e sair? Coloco um pé na calçada e busco força para dar o impulso e sair. Heitor continua me encarando. Ah, que se foda. Passo a mão por seu ombro até chegar em seu pescoço e puxo seu rosto na direção do meu. Seus lábios estão gelados e os meus quentes, dando um leve choque térmico.

Sua mão alcança meu pescoço e aproxima mais nossos corpos. Inclino-me mais por cima do câmbio e apoio uma de minhas mãos em sua coxa. Ele se vira mais no banco, facilitando a ação. Sua outra mão toca gentilmente meu braço e o acaricia. Por um truque de minha mente maldita, fantasio que ele é o Malic e posso até sentir gosto em beijá-lo. Consigo sentir o toque quente de Malic em meu braço e não, do Heitor. Seus lábios macios, seus músculos rígidos, seus cabelos macios.

Afasto-me devagar e conforme abro os olhos, posso ver o rosto de Malic. Arregalo os olhos e pisco novamente, o rosto volta a ser o de Heitor.

– Eu podia fazer isso sempre. – ele comenta.

Inclina a cabeça.

– O quê?

Ele limpa a garganta.

– Te dar carona. – ele sorri – Até seu carro ficar pronto.

Sorrio.

– Será um prazer. – mordo o meu lábio inferior.

Coloco o pé para fora de novo e, agora, eu saí de verdade. Fecho a porta e inclino o corpo para frente, encarando-o pelo vidro e aceno, ele devolve o aceno e ligo o carro. Pego a chave na minha bolsa e entro, aguardando-o fazer a volta e ir embora. Encosto a cabeça na grade gelada e fecho os olhos. Quero chorar e me esmurrar. Heitor não merece essa comparação, é uma pessoa gentil e carinhosa, sou muito cretina em fazer isso.

Respiro fundo, abro os olhos e passo a mão no cabelo. Entro em casa.

A tv está ligada e minha mãe está sentada no sofá, em choque e com as mãos no rosto.

– O que foi? – pergunto largando minha bolsa.

Ela leva um susto e muda de canal.

– Nada. – esfrega os joelhos – Tudo bem?

Se eu não sei mentir, herdei isso de minha mãe. Ela está me escondendo alguma coisa, algo sério.

– Volta no canal. – peço, indo para a sala.

– Não é nada importante. – ela insisti.

– Mãe. – estreito os olhos – Volta.

– Bianca... – ela resiste.

– Mãe! – exalto-me – Volta na merda do canal. – ordeno.

Hesitante, ela volta para notícia. Leio a legenda:

“Onde está a chapeuzinho?”

Minhas pernas ficam moles e tenho que sentar no sofá para continuar a ver a notícia.

– A jovem foi supostamente sequestrada pelo assassino enquanto regressava de sua faculdade, algumas testemunhas dizem que foi a poucos metros de sua república, onde foi colocada dentro de um carro preto, que estava sem placa e sua marca não foi identificada. Pela falta de vigilância de câmeras perto do local, a polícia permanece às cegas na investigação. O diretor da universidade não quis gravar entrevista, mas tem convicção que a segurança de suas alunas está sob o seu controle, já que nenhuma delas foi morta dentro da instituição. A grande dúvida é se isso é legítimo, pois há meses atrás houve um grande escândalo que foi acobertado dentro de sua segura universidade, ele envolvia as alunas e supostas câmeras postas nos banheiros femininos, que filmavam e fotografaram as moças em momentos privados e foi esse caso que nos levou ao antigo Lobo Mau, Jonas Asalina.

Coloco a mão na boca e permaneço estática.

­– O sumiço da moça foi denunciado no dia seguinte pela sua família na delegacia local, mas os agentes de plantão informaram que só poderiam iniciar buscas após 48 horas do real sumiço da jovem. E bem, infelizmente, a jovem não foi encontrada do jeito que a família gostaria. A assinatura do crime nos remete ao Lobo Mau, que relembrando, foi preso há meses atrás, Jonas Asalina, e a grande questão é solta: O Jonas não era o assassino e acabou sendo perseguido inocentemente, porém o jovem assumiu a culpa dos crimes e então vem a dúvida: Por quê? Estaria ele acobertando o verdadeiro Lobo Mau? E dessa dúvida nunca teremos explicação, já que Jonas cometeu suicídio logo depois de sua prisão no manicômio.

Ele ainda está à solta.

– O prefeito da cidade decretou há pouco tempo atrás que um toque de recolher será iniciado a partir de amanhã, às 20:00 horas e também, a vigilância da cidade será redobrada, principalmente para os estudantes. Diante desse fato, mas agentes policiais foram contratos pelo governo e enviados diretamente para a pequena cidade.

Encaro minha mãe e me coração dispara, como se fosse capaz de estourar minhas costelas.

A pequena Villa Lobos é uma vítima amordaçada pelo cruel assassino, que parece estar jogando com todos. Quem é o verdadeiro Lobo Mau?

Mordo o lábio inferior. Era ele aquele dia no telefone, estava certa. Não havia trote nenhum, ele estava falando comigo. Eu seria sua próxima vítima e não essa menina, se eu continuasse em Villa Lobos, essa reportagem estaria falando de mim. O pânico me sufoca.

­– O grande clímax de todo o assassinato não foi sua revelação das sombras ou a morte da jovem moça e sim, a sua perturbadora mensagem deixada ao lado do corpo.

Mensagem?!

– O bilhete digitado dizia: Onde está minha indefesa chapeuzinho?

Meu coração para e a pressão em meu diafragma me fez segurar a bile na garganta.

­– A Chapeuzinho em questão não terá sua identidade revelada por proteção, mas foi uma moça muito falada nesse caso e uma testemunha ocular de um de seus assassinatos cruéis. O delegado não quer comentar sobre o assunto e diz, para o alivio de todos, que nossa chapeuzinho está a salvo do Lobo.

Mamãe afaga minhas costas.

– Diante disso, ressaltando algo que já é óbvio para o caso, ninguém está a salvo do Lobo. Haverá mais vítimas? Quando ele atacará novamente? Onde está o Lobo? E, principalmente, onde está o nosso lenhador para lhe cortar a barriga?

A reportagem é finalizada e o noticiário volta para o âncora.

– Mãe – a frase morre em minha garganta. Talvez eu não tenho nada para falar pelo simples fato de não ter mais palavras. O pânico é a única coisa que posso pensar e ele me corroí, ah sim. Minhas mãos tremem assim como meus lábios, meus olhos estão arregalados e uma única lágrima escorre por meu rosto e pinga em minha calça.

– Bianca, você não está lá. – minha mãe me abraça – Está a salvo aqui.

Minha indefesa chapeuzinho. A bile sobe por meu esôfago e é impossível segurá-la, levanto em um salto e corro para o banheiro. Ajoelho na frente da privada e apoio minha mão na parede, mesmo tendo ânsia, não vomito nada. Meu estômago está vazio para expelir alguma coisa, se recusando a expelir apenas a bile. A força que meu corpo produz é involuntária e faz minha garganta arder, como se eu fosse colocar meu próprio estômago para fora. No meio dos enjoos começo a chorar de novo.

– Bianca! – minha mãe ajoelha ao meu lado e coloca meu cabelo para o lado – Está tudo bem.

O soluço ganha espaço e paro te der ânsia. Coloco a mão no rosto e continuo chorando.

Todos têm medo do Lobo Mau, Lobo Mau, Lobo Mau. A voz de Jonas ecoa por minha cabeça como se eu estivesse o escutando. Finco os dedos em meu cabelo e grito o mais alto que eu consigo.

– Bianca! – eu podia escutar minha mãe gritar.

Lobo Mau, Lobo Mau...

– Sai da minha cabeça! – grito e bato minha cabeça no vaso sanitário – Sai! – bato mais forte.

Minha mãe envolve e me puxa para trás, fazendo nós duas cair no chão frio do banheiro. Continuo chorando compulsivamente.

– Ele vai em pegar, mãe. – sussurro – Ele está atrás de mim.

– Ele nunca vai te pegar. – posso notar que ela está chorando – Nunca vai conseguir te encontrar.

Quem tem medo do Lobo Mau? Eu.

– Mãe – sussurro -, não deixe ele me pegar, por favor.

Ela beija o topo de minha cabeça.

– Eu prometo.

Não sei como, mas acabei dormindo e acordei em meu quarto. Posso escutar minha mãe conversar com o meu pai e sei que estão falando de mim. Será que vão me internar? Acho que preciso ser internada mesmo, nem irei resistir. Isso está me enlouquecendo e aos poucos estou sucumbindo ao jogo dele, ele está me vencendo.

Olho para a janela e tenho a estranha sensação de estar sendo observada. Há um par de olhos lá fora, eles queimam. Minha garganta seca e eu sento na cama, continuo encarando o escuro. Forço a vista para tentar localizar alguém do lado de fora, mas só vejo o escuro e os telhados dos vizinhos.

Pisco; é o movimento de distração perfeito para ele aparecer bem ali, na minha sacada. Grito em plenos pulmões e permaneço paralisada. Ele se aproxima de mim em passos pesados. Tenho vontade de vomitar novamente.

Algo gelado segura em meu pé, no impulso do susto, bato na pessoa; é minha mãe. A luz é acesa por meu pai e então noto que não há ninguém aqui a não ser eles. Minha mãe está com a boca sangrando.

Não consigo segurar o choro e desabo.

– Me desculpa. – sussurro abraçando meu corpo – Não queria te machucar, por favor, me desculpa.

Ela senta na cama, porém não toca em mim.

– Era disso que eu estava falando. – ela murmura para meu pai.

Os olhos do meu pai estão cansados, contudo há alguma outra coisa neles tirando a fadiga; tristeza, decepção, angustia, medo. Isso também e encontrado nos olhos de minha mãe.

– Trouxemos seu remédio. – ela limpa a boca e pega os comprimidos.

Pego-os sem hesitar e tomo todos de uma vez. Irei me acalmar agora. Eles saem do quarto em silêncio.

Deito na cama novamente e aperto meu travesseiro. Estou desgraçando a vida deles...

Graças ao ótimo eco da casa, posso escutar as vozes deles e sei que minha mãe está chorando – isso faz meu coração apertar.

– Minha mãe tinha falado dessas reações dela. – minha mãe sussurra – Não quis acreditar.

– Ela parece estar traumatizada.

– Não quis acreditar que minha menina estava nesse estado.

– O que acha que devemos fazer? – meu pai pergunta, mas pelo seu tom de voz sei que ele já sabe a resposta.

– Meu Deus, não. – ela começa a chorar mais alto – Não podemos interná-la. Nunca. Ela é uma menina tão inteligente, tão educada e estudada, tão bonita. Não posso colocá-la naquele inferno. Não podemos fazer isso, Marcel!

– Você viu o estado que ela está? Essa não é a Bianca.

É como se uma faca saísse da boca de meu pai e atingisse direto meu peito. Essa não é a Bianca. Realmente, essa não é a Bianca que eu já fui. Isso é um caco de vidro mal quebrado. Levanto e caminho até a janela, debruço e olho para baixo.

É alto o suficiente... Para matar. Por que não?

Não preciso passar por nenhum esforço, é só colocar um pouco mais de peso e pronto. Será como entrar em um estado permanente dos meus remédios. Dormir é bom e morrer deve ser melhor ainda. Debruço ainda mais e meu cabelo escorrega de meu ombro e cai pela parede. Por que não tenho coragem de me jogar?

A porta abre de repente, levanto rápido e olho para trás. Minha mãe me encara com os olhos arregalados.

– O que estava fazendo? – ela questiona.

– Nada. – evito o gaguejo.

Ela se aproxima de mim e me abraça. Afundo meu rosto em seus cabelos.

– Vocês vão me internar? – murmuro.

– Não. – ela acaricia meu cabelo.

– Por que não?

Ela suspira.

– Não sei. – ela confessa – Mas não posso fazer isso com você.

– Mas eu... – Eu estou enlouquecendo.

– Ainda acredito que você pode superá-lo e como pais estamos aqui para ajudá-la. – ela sussurra – Não vou desistir de você.

Aperto sua blusa entre meus dedos.

– Nunca mais se aproxime dessa janela. – ela ordena, mansamente.

Rio em meio as lágrimas.

– Sou covarde demais para me jogar, mãe.

– Isso é um consolo, continue covarde assim.

Rimos, mas continuamos chorando.

Não fui para a faculdade no dia seguinte. Nem no outro. Nem no outro. Nem no outro...

***

Heitor veio me visitar alguns dias e me dar consolo sobre as reportagens. A maioria das revistas e dos jornais tinham a mesma matéria: “Onde está a Chapeuzinho?” e todos usavam as fotos que o Rafael tirou minha em suas capas. Logicamente, minha mãe conseguiu tirar dinheiro disso pelo direito de imagem, mas não autorizou que meu nome fosse utilizado – não inteiro -, e nem minha localização.

– Você está melhor? – Heitor questiona mexendo em meu cabelo.

– Estou. – minto.

– Quando vai voltar para a faculdade?

– Semana que vem.

Ficamos em silêncio.

– Preciso ir. – ele levanta – Tenho que estudar.

Sorrio.

– Não precisa vir, estou sendo uma péssima companhia.

Ele se detém em soltar o ar dissonante, não afirmando, mas também não negando.

Assim que ele sai, subo para o meu quarto e abro o registro do chuveiro. Tomo um banho bem gelado e por mais estranho que seja, isso me relaxou.

Quando termino o banho, me visto e fico um tempo me olhando no espelho. Emagreci, estou com olheiras. Estou horrível.

– Bianca, venha aqui! – minha mãe grita.

Será que o Heitor esqueceu alguma coisa?

Desço rápido e dou uma olhada pela sala. Ele não está aqui...

– Lá fora. – ela aponta para a porta com um sorriso.

Estreito os olhos. Não é o Heitor.

Abro a porta e me deparo com alguém de costas para mim, está fumando. Malic... ?

Ele vira lentamente e seus olhos amarelos encontram os meus. Meu coração dispara e as borboletas em meu estômago ganham vida novamente. Está usando um terno, bom, ele estava. O palito está pendendo em suas costas, sendo segurado por sua mão por cima do ombro. O gel de seu cabelo não conseguiu conter a rebeldia de seus fios naturalmente bagunçados. Sua camisa social está amassada. Está segurando um vaso de orquídeas azuis.

– Malic. – sussurro – O que está fazendo aqui?

– Isso é pra você. – ele me entrega o vaso.

Sorrio.

– Obrigada.

– Respondendo sua pergunta: estou fugindo de um casamento. – ele joga o cigarro no chão e pisa em cima, abaixando logo em seguida para pegar a bituca. Quando levanta, passa os dedos pelos fios de cabelo e dá um sorriso de lado.

Então posso notar as singelas olheiras em seu rosto. Parece que não a única péssima aqui.


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Notas finais do capítulo

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