Algo a Ensinar escrita por Kirol Benson


Capítulo 4
Tormenta




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ACADEMIA

Thomas estava concentrado em colocar as luvas para iniciar sua sequência de socos no saco. De longe, Alexander o observava através do vidro do seu escritório. O garoto fora sua melhor aquisição. Quando chegou a academia, era um menino cheio de marra e tão franzino, que ele se perguntava como se mantinha em pé. Crescera muito rápido e se transformou numa fonte de renda garantida. Ao contrário dos outros, o garoto agarrou a oportunidade com unhas e dentes e fazia tudo para melhorar a cada dia. Mas essa história de aulas de reforço... Alexander andou de um lado a outro alisando a barba.

–Aquela mulherzinha...- Bufou com raiva.- Se ela pensa que vai levar o meu garoto, está muito enganada. – Andou mais alguns passos em direção a sua mesa.- Vou me certificar de que isso não aconteça. Discando alguns números no seu celular, encostou o aparelho no ouvido e esperou que a voz do outro lado te dissesse algo.

Do lado de fora, Thomas socava o saco e olhava para o relógio da parede. Já passava das 11:30. Ainda estava cedo, mas já estava ansioso para ir a aula. De início, imaginou que seria uma tortura, mas Mirian fora tão dócil e gentil, que era impossível não admitir que ela estava realmente querendo ajuda-lo. Decidiu que daria uma chance para ela, que se permitiria ouvi-la sem ataca-la sempre. Na tarde anterior, aprendera mais em duas horas do que numa vida inteira na escola. Ele detestava admitir, mas ela era de uma inteligência assombrosa.

–Mas ela teve tudo, Thomas- Pensou consigo- Teve pais que a amaram, teve comida nas horas certas, as melhores escolas. Sua vida é muito boa, mas e a sua? –Voltou a bater no saco.

COLÉGIO SIR IZAQUE NEWTON, PAVILHÃO SUPERIOR

Mirian consultou o relógio. Ainda eram 12:20, Thomas estava dentro do horário. Caminhou pela sala de aula vazia e pensou no progresso que obtivera na tarde anterior. Apesar do começo difícil, Thomas parecia estar cedendo e, aos poucos, se mostrava disposto a aprender. Consultou o relógio novamente e menos de cinco minutos haviam se passado. Foi até sua bolsa e pegou seu celular, mais de vinte ligações perdidas. Ficou preocupada, ninguém nunca ligava tanto para ela, ainda mais sabendo onde estava. Apertou o visor para saber de quem se tratava e estremeceu ao ver o número registrado. Uma palavra se perdeu em seus lábios. Nessa hora, Thomas chegava a sala. Estava com um caderno nas mãos e parecia bastante animado. Mirian não notou a sua presença, nem ficou feliz pelo caderno. O garoto notou que ela estava com o celular preso nas mãos e parecia ter recebido uma notícia trágica. Ficou parado, sem saber exatamente o que dizer ou fazer. Foi o celular que quebrou o silêncio, vibrando nas mãos de Mirian.

–Não vai atender?- Thomas se dirigiu a uma cadeira e colocou suas coisas sobre ela.

–Não!- Mirian guardou o celular na bolsa e se voltou para o garoto.- Chegou cedo hoje!-Tentou mudar de assunto para se acalmar, mas suas mãos ainda estavam trêmulas.

–Bom, eu costumo cumprir minhas promessas. Eu disse que chegaria...

–Ótimo! Também vejo que se lembrou do caderno.

–É...

–Onde paramos?- Ela o encarava tentando parecer o mais natural possível, mas o garoto não era bobo e já havia notado que algo de estranho estava acontecendo.

–Posso te fazer uma pergunta?

–Estamos aqui para esclarecer suas dúvidas.

–Não me refiro a nada sobre a aula...

–Bom, então o que é?

–Quando eu entrei, você estava olhando o celular com uma baita cara de susto. Por quê? - Mirian ficou hirta. Esperava que ele fosse perguntar isso, mas não estava pronta para a resposta.

–Bom...-Ela deu a volta na mesa e se sentou em uma cadeira na frente dele.- Há algumas coisas que eu...que eu não posso falar. Me desculpe, mas é isso!

–Tem algo a ver com seu marido?- Seus olhos se arregalaram. Como ele poderia saber disso? O episódio fora a muito tempo, nem mesmo acontecera ali. Como poderia saber o que acontecera entre ela e seu ex marido?

–Eu não quero falar sobre isso. – Levantou-se bruscamente e Thomas compreendeu que não adiantava insistir.- Vamos começar a nossa aula.

–Tudo bem se não quer falar, mas eu só queria ajudar.

–Vai me ajudar bastante se prestar atenção na minha aula.

–Tá bom, a senhora é que manda- Thomas concentrou-se em copiar tudo que ela escrevia e a prestar atenção a suas explicações. Mas não era bobo. Notou que seu rosto não estava tão radiante como no dia anterior. Sua expressão não era de tranquilidade, estava nervosa, inquieta e parecia estar trabalhando no automático. Não a conhecia a tanto tempo, mas percebeu a mudança drástica de humor. Ela passou as duas horas que se seguiram sem olhar diretamente para ele, sem nem mesmo parar diante dele. A aula fluiu como a anterior, mas sem a mesma animação. O garoto se levantou, recolheu suas coisas e, antes de sair, voltou-se para ela.

–Obrigado!

–Pelo que?- Ela foi pega de surpresa.

–Ninguém nunca se preocupou comigo. Nunca perguntaram para mim se eu queria aprender, se eu precisa aprender. Sempre me deram taxas: O pior aluno da sala, o mais mal educado, o menos produtivo, mas ninguém nunca reconheceu que o problema não era só meu. Você arriscou muito para estar aqui hoje. Obrigado!

–Thomas...- Ela se aproximou e tocou seu braço.-Eu tenho um filho de doze anos, sabia?

–Não!

–É...ele, assim como você, é bastante inteligente. Mas ele não seria um terço do que é se não tivesse tido a oportunidade de aprender. Você só precisava dessa oportunidade para ir além. Não me agradeça por nada, você é que foi corajoso o suficiente para assumir suas dificuldades. Eu é que agradeço a você pela oportunidade de poder te ensinar.

–Me desculpe por tê-la tratado mal ontem.

–Você estava chateado.

–Eu fui grosseiro.

–Não se preocupe com isso...

– Prometo que vou me esforçar para melhorar.

–Isso já é um começo. Ontem você mal queria olhar na minha cara, hoje já está fazendo promessas. Isso é bom...- Mirian sorriu. Talvez tivesse conseguido quebrar o gelo. Ao menos ele estava sendo gentil e honesto. Pedir desculpas já era um grande passo. Mas ainda tinha muito pela frente, principalmente no que se tratava do aprendizado. Ele era inteligente, mas apresentou dificuldades de uma criança no começo da alfabetização. Ela teria muito que ensinar, mas primeiro precisava aprender como fazê-lo. Se despediu do garoto com um aperto de mão e desceu as escadas para o pavilhão inferior. Como todos os dias, cumprimentou o porteiro e saiu pelo portão principal. Tinha um longo caminho até o ponto de taxi mais próximo. Seus passos eram firmes, mas não rápidos. Estava com dor de cabeça, preocupada com as ligações que recebera, exasperada pela ideia de que aquele inferno voltaria de novo. Que seu passado ressurgiria como um tsunami devastado sua vida que ela tivera tanto trabalho para reorganizar. Estava envolta nos seus pensamentos, quando um tombo a fez parar de frente com algo, que ela não reconheceu logo. Um homem de capuz, com certa fúria no olhar, a prendera pelos braços, impedindo a sua passagem. Outro, que estava atrás dela, a segurava com força, impedindo que ela intentasse correr para o outro lado. Ainda atordoada, sua primeira reação foi se debater em desespero, tentando soltar-se, mas sem sucesso. Os homens eram mais fortes e pareciam dispostos a não deixa-la ir. Um deles lhe deu um tapa tão forte, que ela caiu na calçada. O outro fez sinal para que um carro se aproxima-se. Mirian ficou mais desesperada. Ainda no chão, tentou se arrastar para longe, mas um deles a segurou com força, machucando uma das suas mãos com uma pisada violenta de uma bota. Ela gritou, mas sem nenhuma esperança de que pudesse ser ouvida. Uma vã branca se aproximou lentamente e os homens a seguraram para jogá-la na traseira, mas algo os impediu. O soco derrubou um dos homens, ele a saltou, fazendo com que ela caísse de joelhos. O outro homem foi para cima do autor do soco, mas também foi imobilizado com habilidade. O terceiro, que pilotava a vã, saiu do banco do motorista e tentou, sem sucesso, atingir seu adversário, mas recebeu um chute e caiu gemendo de dor. Mirian encolheu-se na calçada, conseguiu se arrastar para lá enquanto a briga se desenrolava. Estava dolorida, mas deu graças a Deus por estar viva. Thomas foi até ela e a segurou pela mão.

–Você está bem?

–Sim...eu...

–Vamos sair daqui antes que eles acordem. – Ele a puxou para uma moto que estava estacionada a poucos metros da vã e lhe fez sentar na traseira, enquanto ele assumia a pilotagem. Ela só teve tempo de pegar sua bolsa, que ficara caída na calçada. O rapaz seguiu em alta velocidade em direção a qualquer lugar, desde que fosse seguro. Parou num parque, onde costumava ficar nas suas tardes livres. Mirian não conhecia o lugar, mas não contestou a escolha. Só queria respirar e recuperar o fôlego.

–Mas o que foi aquilo?- Ele a ajudou a se sentar em um banco.

–Não sei!- Mirian respirou agradecida por poder se sentar. Já estava ficando tonta devido a dor latejante provocada pelo ferimento em sua mão, que não parava de incomodar.

–Eles te machucaram para valer!- O rapaz tocou no rosto onde o tapa havia aberto um corte.- Vai precisar de um curativo.- Mirian soltou um pequeno gemido quando ele tocou sua mão.- E talvez precise de uma tala. Temos que ir ao hospital. E depois a polícia.- Os olhos dela se arregalaram com as últimas palavras.

–Não!

–Mas porque não? Você tem que dar queixa. Eles podiam ter te sequestrado ou pior, poderiam ter te matado.

–Você me salvou, é o que importa.

–Tem certeza que..

–Tenho! – Ela o atalhou com energia.

–Mas você precisa ir ao médico. Sua mão está muito machucada. E deve precisar de um ponto no rosto. – O garoto estendeu um lenço e começou a limpar o sangue que ainda escorria por sua bochecha.

–Tudo bem! – Ela suspirou- Mas me deixe respirar um pouco, sim?

–Tem ideia de quem eram?

–Não!

–Eles não pareciam assaltantes...- Thomas olhou para a bolsa que ela segurava na outra mão.- Não se preocuparam com sua bolsa.

–Eu não sei quem eram, também não quero saber.

–Tá legal, não precisa se irritar. Vou te levar ao hospital.- Segurando-a com delicadeza, a conduziu novamente até a moto e lhe colocou na traseira. O hospital mais próximo ficava a poucos minutos dali. Chegaram rapidamente e Thomas a encaminhou diretamente para a emergência, onde foi atendida pelo médico de plantão. Ela inventou uma história qualquer para evitar quaisquer perguntas e Thomas confirmou tudo, compreendendo que ela não queria nada com a polícia. Após ser medicada e ter a mão imobilizada e o ferimento limpo, ela aceitou a carona do garoto até sua casa.

–Precisa de ajuda!?- O rapaz a observou caminhar até a entrada do prédio de cinco andares.

–Se quiser subir...- Ele entendeu isso como um sim e a acompanhou. – Subiram dois vãos de escada até o segundo andar do prédio. Seu apartamento era o primeiro do corredor, quase de frente para a escada. Ela procurou as chaves na bolsa com a mão que estava boa, mas se atrapalhava.

–Deixe comigo!- Thomas achou a chave e a colocou na porta. O apartamento era modesto, mas bastante aconchegante. Nada parecido com o que ele imaginava, mas bastante melhor do que o dele. A sala estava escura, mas ele conseguia ver a exata disposição dos móveis. Também notou uma estante de livros e uma enormidade de fotografias por toda ela. Quando ela acendeu a luz, ele pôde ver que todas continham o rosto de um garoto de cabelos castanhos, sorriso largo e olhos verdes iguais aos dela. O outro na foto era um homem bonito, com um sorriso de canto e feições clássicas. Imaginou que seria o marido, mas não se aventurou a perguntar. Ela seguiu para cozinha, onde colocou uma jarra de café para esquentar.

–Bebe algo?

–Não, obrigado!

–Ainda não agradeci por ter me salvado.

–Não tem que agradecer. – Thomas apoiou-se no balcão da cozinha americana e ficou observando ela pegar uma xícara no armário para se servir de café.

–Já é tarde, não quer ligar para os seus pais e avisar que está bem?- A expressão dele modificou-se imediatamente e ela notou que falou alguma coisa que tocou fundo nele.

–Meus pais não ligam se eu chegar tarde.

–Como não?

–Eles morreram a muito tempo!-Ele disse, finalmente.

–Sinto muito!

–Bobagem. Aprendi a me virar sozinho. Moro num AP aqui perto, que herdei deles. Pago as contas com o que ganho do patrocínio e ainda consigo me divertir, vez ou outra.

–O que houve?- Ela notou que ele estremeceu um pouco ao entrar no assunto. Talvez fosse doloroso demais para ele lidar com a falta dos pais. Era tão jovem e já tinha tantos problemas.

–Acidente de carro. Meu pai estava embriagado ao volante. Ele bateu em um poste. Minha mãe e minha irmã morreram na hora, mas ele ainda durou alguns dias. Morreu no hospital. Por sorte ou azar, eu preferi ficar na casa de um amigo nesse dia. Eu tinha treze anos. – Ele contava com certa naturalidade. Na certa já havia aprendido a lidar com a dor.

–Imagino que tenha sido difícil.

–Um pouco, no começo. Mas eu sobrevivi. No meio de toda essa loucura, ainda me restou o sonho de ser lutador. Estou agarrando com unhas e dentes essa última fagulha que me resta...- Agora grande parte do comportamento dele fazia sentido. Um garoto de treze anos que teve que lidar com a morte da família, a orfandade e a necessidade de se virar sozinho, tinha todos os motivos do mundo para se revoltar e agir do modo como ele agia. Mas ele era um sobrevivente, era um lutador. Conseguiu superar as dificuldades com muita garra e agora estava ali, firme, forte e pronto para a vida. Ela tocou seu braço em sinal de consolo e foi andando para sala. Agora a era a vez dele de perguntar e ela sabia que o interrogatório seria longo.

–Sei que nos conhecemos a apenas dois dias, mas...-Ele começou a se sentar ao seu lado.- Mas muita coisa aconteceu desde então. Você enfrentou meu treinador, o que considero um ato de heroísmo. Falou mais alto que a Janete, aquela diretora linha dura. Enfrentou meu mal humor, que insuportável.- Ambos sorriram.- E tudo isso para que, por quê?

–Porque eu não queria aceitar que um aluno passasse de ano simplesmente por ser a vaca de leite da escola. Isso tudo ia de encontro aos meus princípios.

–Bom, acho que devo ficar agradecido por isso!- Ele limpou a garganta. A pergunta principal era um pouco mais pessoal e ele tinha medo de que ela o jogasse pela janela caso seguisse adiante, mas a sua curiosidade falou mais alto. – E seu marido? Eu vi fotos dele e de seu filho pela casa, onde ele está? Ou melhor, onde estão?

–Essa é uma história muito longa, Thomas.- Ela se ajeitou no sofá. A pergunta a atingiu como uma bala.

–Bom, já disse que horário não é um problema para mim.

–Não sei se devo...mal te conheço. Você é aluno da escola, eu...

–Não vou sair por aí espalhando que salvei a professora de bandidos, a levei para o hospital, fui até sua casa e descobri que sua vida não é tão maravilhosa como aparenta. Não sou esse tipo de cara!- Ela sorriu com o comentário dele. Mas sabia que contar a sua história àquele garoto, seria arriscar muito mais do que isso.

–Não sei...

–Eu te contei sobre os meus pais...

–Chantagem?

–Uma troca...- Ela suspirou.

–Tá! Mas previno que a história é longa e não muito alegre.

–Bom, eu não estou muito acostumado a finais felizes.

–Aquelas fotos que viu são mesmo do meu filho e do meu...ex marido. Não sei porque não me livro delas, mas enfim. – Colocando a xícara vazia de lado, ela chegou mais perto dele.- Eu me casei muito cedo, Thomas. Com apenas vinte e dois anos. Praticamente uma criança. O Edu era um príncipe! – Seus olhos brilharam com a menção ao nome, mas voltaram a anuviar-se. – Ele enfrentou a ira do meu pai, a desaprovação da sua mãe e nos casamos.

–Ele era?- Thomas levantou a sobrancelha.

–Ele não está morto, se foi o que pensou. Apenas deixou de ser o homem que conheci.

–O que aconteceu?

– Bom, os primeiros anos de casados foram maravilhosos. Ele me tratava bem, nos dávamos bem em todos os aspectos, inclusive...- Ela parou de repente e Thomas compreendera o que queria dizer.

–Por favor, não sou mais criança.

–Você entendeu. Bom, ele era maravilhoso. Cuidava de mim, cuidava do nosso casamento. Nunca deu sinais de que não era feliz ou algo assim. Eu simplesmente o amava e pronto, não contestava nada, só vivia para amar ele. Mas tudo mudou quando eu descobri que estava grávida...

–Filhos não estavam nos planos?

–Na verdade, nunca falamos sobre. Mas eu sempre quis ser mãe. Imaginei que era um desejo dele também.

–Mas não era...

–Bom, ele reagiu muito mal a notícia. Ficou transtornado, disse que um filho só iria atrapalhar as nossas vidas. Chegou a me propor...-Mirian hesitou. Toda aquela lembrança lhe causava um nó na garganta.

–Ele fez isso?

–Sim! Mas é claro que eu não aceitei. Fiquei desolada, o meu príncipe se transformara num monstro. Mas eu precisava ser forte, pelo meu bebê. Ele ficava cada dia mais agressivo, violento, não tinha paciência comigo.

–Ele te batia?- Thomas ficou paralisado diante da possibilidade.

–Não! Não chegou a tanto, mas o terror psicológico era bem pior que um tapa. O tempo passou e a gravidez foi avançando. Depois de meses de inferno, ele finalmente pareceu ceder. Me pediu perdão, disse que tinha sido um traste, um monstro e prometeu ser o melhor pai para o nosso filho. Eu, boba e apaixonada, acreditei. O Rafael nasceu num dia chuvoso. Foi um parto difícil, mas correu tudo bem. Ele estava lá. Ficou ao meu lado, segurou minha mão. Sorriu ao ver o nosso filho. Me deu todo apoio que eu esperava dele e mais um pouco. A mãe dele, que era totalmente contra a nosso casamento, ficou tão fascinada com a ideia de ser avó, que até passou a me tratar bem.

–O que deu errado?

–Bom...o tempo passou, o Rafa foi crescendo rápido e o Edu se mostrava um pai perfeito, como ele prometera. Todavia, como marido....era terrível. Na frente dos outros, ele era um anjo. Um cavalheiro, o melhor homem que eu poderia ter escolhido para casar. Mas eu rezava que as noites passassem rápido para que eu pudesse sair daquele quarto.

–Ele?- Thomas congelou diante da possiblidade que lhe chegou a mente.

–Sim! De todas as formas mais violentas que você possa imaginar. Ele se tornou doente, um maníaco. Ele fazia comigo as coisas mais torpes, mais sujas...

–E por quê você não o mandou para o inferno?

–Acha que eu não quis? Mas eu pensava no Rafael. Ele poderia fazer qualquer coisa comigo, mas eu não aguentaria se ele tocasse no meu filho. – A lembrança de Rafael lhe fez estremecer levemente. –Eu me sentia humilhada, ultrajada, mas eu tinha que resistir, tinha que sobreviver pelo Rafa. – Thomas se ajeitou no sofá. Uma crescente vontade de amassar os testículos daquele homem tomava conta dos seus pensamentos, mas ele se conteve. – Tudo piorou muito depois que eu fui trabalhar em um colégio perto da nossa casa. O Rafa já estava na escola, pensei que estivesse na hora de começar a exercer minha profissão.

–Mas ele não gostou da ideia!

–Nem um pouco. Eu ficava apreensiva cada vez que a noite caia. Uma noite, quando ele me viu corrigindo algumas provas, derramou café nelas e eu pensei que fosse me bater. Me puxou com tanta agressividade para o quarto, que tive medo daquela ser minha última noite na terra.

–Ninguém nunca notou nada?- Thomas ficava cada vez mais furioso.

–Ele tomava cuidado para não deixar marcas. Nunca me deixou roxa, com arranhões, nada! O máximo que acontecia, era uma dor leve devido à violência do ato, mas eu conseguia disfarçar. –Ela suspirou ao lembrar.

–Esse cara é louco...

–Nem sabe o quanto. Mas o pior estar por vir.- Thomas a olhou com ternura, o que podia ser pior do que toda aquela violência que ela aguentou em silêncio por tanto tempo?- Um dia, sem nenhum motivo aparente, ele simplesmente não fez nada comigo. Não me tocou, nem mesmo se agarrou a mim para dormir. Se jogou do seu lado da cama e dormiu. Eu fiquei assustada. Não sabia se aquilo era uma estratégia para me tirar o sono ou ele simplesmente havia cansado de me usar.

–E qual era a opção certa?

–Ele arrumou uma amante!- Mirian lembrava-se bem do dia em que descobriu. Foi um misto de alívio e repulsa.- Ele deixou de me machucar porque simplesmente passou a fazer isso com ela.

–Não que eu deseje mal aos outros, mas se ela teve coragem de ser amante dele, bem que merecia.- Ao perceber que seu comentário a fez corar, arrependeu-se.- Me desculpe, é claro que você não teve culpa, não foi o que eu quis dizer.

–Não se preocupe, eu entendi. Mas enfim, eu consegui ter algumas noites de paz. As vezes ele dormia fora de casa, outras ele passava na sala. Eu acredito que era a única esposa do planeta que ficava feliz por o marido ter outra. Com o tempo, ele realmente deixou de me machucar, parecia até que eu nem existia naquela casa. Não se incomodava mais com meu trabalho, não ficava me perseguindo cada vez que eu saia de casa. Eu achei ótimo...

–Mas estava desconfiada...

–Pois é. Eu não sabia quem era a amante.

–E quem era?

–É aí que entra o colégio em toda essa confusão.

–Espera...a amante dele trabalhava no colégio?

–Sim! Era uma das minhas colegas, a que mais me ajudava e que conhecia minha história. Por alguma razão, ela se apaixonou pela doença dele e os dois começaram um caso pelas minhas costas. Eu fiquei horrorizada quando descobri e resolvi que tinha que pôr um ponto final nisso. Eu falei com a mãe dele, mas ela, claro, achou que eu estava mentindo. Eu fiquei com medo de contar qualquer coisa para o meu pai, pois eu sabia que ele iria partir para o confronto e uma tragédia poderia acontecer. Então, tomei a única atitude que me pareceu sábia naquele momento.

–Fugiu!

–Peguei o Rafa, as nossas poucas roupas, algum dinheiro e o resto da minha coragem, e fui para longe.

–E ele?

–Por alguma razão que desconheço, não veio atrás de mim.

–Isso é ótimo!

–Mas...- Mirian se ajeitou no sofá.

–Mas?

–As ligações...

–As que você recebeu mais cedo...

–Exatamente!

–Ele te encontrou!- Thomas ficou pálido. A simples ideia de que aquele psicopata estava por perto, congelou a sua espinha.

–Não sei! Eu não atendi o telefone. Se ele sabe onde estou, provavelmente virá atrás de mim. Mas se não sabe, está querendo saber. Não serei eu a dizer...

–E o Rafael?- De repente Thomas notou que faltava algo na história. Ela disse que havia fugido com o filho, mas ele não estava em casa.

–Ele está em um lugar seguro. Eu precisava salvar ele da possibilidade daquele maníaco nos encontrar.

–Posso saber onde?- Ela hesitou por um tempo. Havia contado toda a sua história, uma informação a mais ou a menos não faria diferença alguma.

–Eu o mandei para uma escola interna, bem longe daqui. O dinheiro que ganho paga as suas despesas e supre as minhas necessidades. Sempre que ele sai de férias, viajo para vê-lo. Nunca o trago para cá.- Thomas a olhou. Quando a viu naquela sala de espera da secretária, não imaginava que por trás dos olhos verdes decididos, havia uma história tão brutal. A conhecia a apenas dois dias, mas parecia que conviviam juntos a anos. Sentiu uma empatia por ela. Mas a ideia de ficar preso em uma sala de aula fez com que a rejeitasse a princípio. Segurou sua mão machucada entre as suas, tomando cuidado para não apertá-la.

–Acha que o que aconteceu hoje tem a ver com ele?

–Não! Ele é louco, mas não tem recurso e nem inteligência para montar um ataque daqueles.

–Mas quem, então?- Ela deu de ombros. Ninguém, além do seu ex marido, tinha vontade de lhe fazer mal, ao menos era o que achava até ser atacada.- Deveria procurar a polícia...

–Não! Vou deixar isso para lá. – Ela puxou a mão das suas e caminhou até a cozinha para pôr a xícara na pia. Ele a seguiu e olhou para o relógio da parede. Já passava das 21:00. Ficaram tanto tempo conversando, que ele nem notou.

–Já passa das nove...

–Você deveria ir para casa. – Ela olhou para a janela e viu que o céu começava a ficar cinzento. Pensou em tudo que aconteceu à tarde, no ato de heroísmo do garoto, em sua gentiliza em leva-la ao hospital, em parar para ouvir a sua história. Não lhe parecia justo que ele pegasse um resfriado ou algo assim por simples puritanismo de sua parte. –As roupas do Rafa não cabem em você, mas podemos dar um jeito nisso...

–Por favor, não tem problema. Eu vou para casa...

–Vai chover, não quero que se resfrie. – Ela parou perto dele e lhe estendeu um sorriso.- Você foi um herói hoje, sabia? E heróis não podem se resfriar. Vou pegar um travesseiro e um cobertor para você. Se quiser tomar banho, há toalhas no banheiro. – Ele sorriu e obedeceu.


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