The Bastard Heir escrita por Soo Na Rae, Lady Ravena


Capítulo 25
Capítulo 21 - Um Caís, a Ruiva e o Primeiro Amor


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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Capítulo 21

Princesa Serafina da Dinamarca, Suécia e Rússia

“Se estão dando, pegue. Se vierem buscar, corra” – Provérbio Russo

Emilie Simons – Mon Chevalier

Enxugou o suor das palmas das mãos, esfregando-as no tecido duro e áspero que vestia. Há muito a fuligem se grudara a seu rosto e cabelos e as lágrimas secaram. O sangue parou de escorrer pelo ombro e a dor só lhe vinha quando movia o tronco. Mamãe firmou a flecha contra o ferimento e em seguida enrolou com um pedaço de tecido de seu vestido, feito do mesmo material dos panos de limpar o chão do Castelo de Kronborg. Gemeu e trincou os dentes.

– Perdão, perdão. – a rainha pediu, porém Serafina apenas negou com a cabeça e soltou o ar lentamente. A dor passou, porém a região continuou pulsando, quente. Levantou-se, sentindo os pés congelarem dentro dos sapatos. A sola havia se gastado, afinal aqueles não eram sapatos especiais para caminhada. Assim como ela mesma não nascera para aquilo.

Ao redor, as árvores fechavam a estrada. Pinheiros enormes e de longos anos sustentavam a neve em seus galhos que às vezes caía sobre suas cabeças sem aviso prévio. Os pés afundavam na neve, até os joelhos. Ergueu uma das pernas e fincou-a logo a frente, prosseguindo assim uma caminhada lenta e exaustiva. Não havia casacos para vestirem, muito menos guardas para vasculhar a estrada em busca de casas com lareiras quentinhas. Qualquer um que as visse jamais diria que eram princesa e rainha da Dinamarca. A fuga do convento fora precipitada, porém necessária. Tinham de sair dali de qualquer forma e a primeira oportunidade veio como doce em boca de criança.

– Vamos esperar uma carruagem. – disse Cristina da Saxônia, Rainha da Dinamarca, Suécia e Rússia. Seus cabelos ruivos foram cortados rentes às orelhas e seus olhos azuis ostentavam olheiras profundas. Seu vestido era fino, porém melhor que o de Serafina.

– Não há carruagens na neve, mãe. - A garota menor exibia cabelos vermelho fogo até os ombros, embora antes eles tocassem a cintura. Vestia um vestido feito de saco velho de batatas. Era tosco e irritava sua pele, porém grosso e ajudava com o frio.

Juntas, estremeciam a cada passo, enquanto seus pés congelavam, suas mãos perdiam a cor e o nariz trancava. Espirravam, tossiam. O ombro de Serafina que fora ferido durante a fuga poderia infeccionar caso não cuidassem dele. Respiraram fundo, e continuaram. Um passo após o outro. Foram feitas como mulheres da Corte, mulheres nobres. Tinham de dar filhos, tinham de orientar seus maridos, tinham de sorrir e falar palavras doces. Mesmo que o céu estivesse caindo sobre seus ombros. Deus misericordioso, poupai-nos disto.

Como se os anjos realmente tivessem levado suas preces ao Pai e ele respondesse com toda a sua bondade, ouviu-se o som de gritos e de repente logo a frente havia um trenó, puxado por cães parecidos com lobos. Caçadores. Eram raros os que se utilizavam deste meio de transporte tão ao sul da Suécia, porém a neve subira muito mais que o comum e eles se preveniram bem. Os caçadores provavelmente estavam indo recolher suas últimas armadilhas, afinal com o inverno as criaturas da floresta se recolhem e hibernam e por isso não há muita caça. Vestiam longos casacões de lã e pele de animal. Calças grossas, cachecol, gorro e botas. Mesmo assim, seus narizes estavam vermelhos e suas baforadas saíam brancas no ar.

Serafina sentiu a esperança crescer em seu peito.

– Não é uma miragem, mãe. – disse, piscando bem os olhos, tentando não se enganar com as lágrimas, embora não houvesse mais nenhuma.

– Sim – a rainha sorriu e acenou – Senhores, por gentileza!

Os homens trouxeram o trenó até elas e a subiram, tomando cuidado com o ombro de Serafina. Falavam em bielo-russo, um idioma comum para a rainha e a princesa, que conseguiram explicar que vinham de um convento onde foram feitas prisioneiras de guerra. A revolta dos homens que as tiraram de suas terras devastou todos os homens que tinham a seu comando e quase custou-lhes a vida. Por sorte os outros filhos de Cristina da Saxônia estavam visitando o pai na Noruega.

– Tire os sapatos – exigiu um deles, enquanto os cães corriam pela neve como se ela não fosse nada além de relva quentinha no final da tarde. O vento passava rapidamente por eles, porém agora agasalhadas com toda a sorte de roupas de frio, isso não as incomodava. Serafina conseguiu arrancar as sapatilhas com a mão boa e revelou grandes bolas inchadas e vermelhas, com dedos latejantes e cortes profundos. Havia hematomas no peito do pé e bolhas. – Quanto andaram?

– Três dias a Sul. – apontou pela trilha que seguiam. – Não sei quantos quilômetros dão.

– Com esta neve, talvez doze. É pouco – ele disse e então piscou. Quando segurou seu pé entre as mãos, Serafina notou o quanto eram calejadas e grossas, a pele era dura e os dedos quase sem digitais, de tão gastos. Ele trabalhava em alguma forja, com certeza. Sua pele estava queimada de Sol e ele parecia duas vezes mais velho que sua mãe. – Vocês nunca andaram tanto antes? São alguma espécie de nobreza, talvez senhoras de algumas terras distantes?

Serafina lançou um olhar suplicante a sua mãe, que apenas confirmou com a cabeça, massageando os próprios pés. A princesa encolheu os ombros e sentiu o leve arrepio quando o rapaz começou a apertar seus hematomas. Ele era gentil, leve, porém a dor ainda era a mesma. Intensa, vívida e terrível.

– Somos da nobreza, sim. Senhoras de terras. Mas não terras distantes, somos senhoras destas terras.

– Impossível, estas terras pertencem a família de meu senhor, o Duque Battlewater.

– E meu pai é o senhor de seu senhor. Meu pai é o Rei da Suécia.

– Qual deles? – sorriu o rapaz. Porém Serafina não sorriu, e ele logo entendeu que aquilo não era uma brincadeira. – Espere, vocês são as filhas da rainha Cristina que foram presas pela esposa de Sten Sture? Realmente? Bem que duvidei pelo cabelo e os pés delicados. Vocês são da realeza. – ele piscou os olhos, admirado.

– Na verdade, eu sou filha da Rainha Cristina e ela – disse apontando a cabeça na direção da mãe – É a própria Cristina. – e então sorriu ao ver o rapaz empalidecer. – Acho que contaram a história errada por esta região.

– Santo Deus. Precisamos levá-las até a Guarda...

– Não! – um dos homens mais velhos virou-se na direção de ambos. – Quer matá-las de vez? A Guarda está apoiando Sture, eles a levarão de volta a este tal convento e as torturarão, como fazem com todos. Vamos mantê-las em sigilo, protegidas.

– O chalé tem espaço? – o rapaz ergueu uma sobrancelha.

– Eu não me importo de dormir no chão, pela princesa e pela rainha – ele se curvou levemente – Vida longa ao rei bondoso e sua família, João, Cristina e filhos. – e então voltou a olhar pelo horizonte.

º º º

O chalé era realmente apertado. Após quinze minutos no trenó, Serafina descobrira que eles eram caçadores por herança dos pais, uma tradição que vinha de gerações mais antigas que os próprios reis. Descobriu também que o rapaz que lhe manteve entretida chamava-se Matteo e o velho era Marco, o avô. O pai de Matteo dirigia o trenó, Michel. Descobriu que Matteo na verdade tinha dezessete anos, apenas cinco a mais que ela. Porém trabalhava intensamente debaixo do Sol e fabricava os arcos e flechas que a família utilizava para caçar. Tanto é que a flecha que haviam encontrado na estrada e usado para firmar o ombro de Serafina era feita por ele.

O frio do lado de fora era violento, porém ali dentro tinham lareira. As camas ficavam ao redor dela, nas paredes. No centro, havia uma pequena mesa, algumas cadeiras e xícaras sujas de chá. A luz que entrava pelas janela era suficiente para lhes dar toda a luminosidade que precisavam. Os ferimentos nos pés e no ombro de Serafina foram lavados e enfaixados, junto com um unguento que Matteo disse fazer milagres. Era uma receita de família. Bebeu um pouco de chá e conseguiu dormir por seis horas, antes de despertar de um pesadelo.

– Você está bem? – ele perguntou acima de sua cabeça. Serafina sentia-se desorientada e só conseguiu se acalmar quando viu a mãe logo ao lado, sorrindo serenamente. Concordou com um meneio e sentou-se. Havia pão preto em um prato e a rainha comia com mordidas pequenas seus cantos. – É o que nós temos, Alteza.

Serafina virou os olhos para ele, sentindo que enrubescia. As bochechas facilmente se tornavam vermelhas como seu cabelo. Puxou o cobertor por cima dos ombros e escolheu um dos pedaços de pão preto, comendo-o assim como sua mãe. Era duro e murcho, parecia queijo estragado. Mas era melhor que nada. Bebeu mais uma xícara de chá e se aconchegou nos braços de Cristina da Saxônia. A noite virava lentamente, enquanto recuperavam horas de sono perdidas, enchiam o estômago e principalmente sorriam uma para a outra, ignorando a situação em que se encontravam. Sim, eram da realeza. Sim, elas nunca estiveram em um local tão apertado quanto aquele, mesmo os banheiros do castelo eram maiores. Porém estavam vivas. E era isto que importava. Os homens se mostravam gentis e respeitosos, nunca abusando demais da fraqueza de ambas. Matteo era um piadista nato e fez Serafina rir a noite inteira, até que a rainha acordasse e se deparasse com sua filha mais nova, um camponês comum e cartas de baralho espalhadas no chão. Ambos pareciam concentrados na partida. Observou-os.

– Pode jogar. – disse Matteo, com calma.

– Compro. – Serafina estendeu a mão até o monte de cartas e colocou uma ao lado das demais. Seu sorriso aumentou. – Venci – colocou as cartas no chão, onde poderiam ver. Matteo bateu palmas, porém sorria ainda mais.

– Boa jogada, princesa. Mas ainda assim, não é o suficiente para vencer o veterano. – Matteo abaixou uma sequência de cartas perfeitas. A boca de Serafina abriu-se num tremendo O e a própria rainha gargalhou, sentindo uma leveza que há muito não pousava em seu espírito.

Ela deu de ombros. Era a terceira partida seguida que perdia para Matteo. Não queria admitir, mas ele tinha um talento especial para os jogos e as piadas. Matteo tinha cabelos longos, até os ombros e lindos olhos grandes. Seus lábios formavam uma linha fina e ele exalava relaxamento e diversão. Aquilo empolgava Serafina a também se sentir relaxada e divertida. Cristina não via sua filha tão sorridente há dias, algo que costumava ver todos. Serafina sofrera muito com a partida do castelo. Seus 12 anos marcavam bem a fase em que ela passaria de uma simples menina para uma mulher. Mas ainda há tempo para isto.

Os caçadores cortaram lenha, acenderam a lareira, fizeram o almoço e todos comeram e riram. As convidadas sentiam-se em casa, embora aquela não fosse a casa delas. Cristina imaginava um modo de percorrer a estrada de trenó até a capital da Suécia ou quem sabe a Noruega, onde seu esposo e filhos estariam. Pagaria aos caçadores por tal serviço e lhes daria novos cães caso os seus morressem durante a viagem. Porém antes que expressasse o plano, algo terrível aconteceu.

De algum modo, a guarda da cidade mais próxima soube da aparição de duas mulheres de cabelos vermelhos na casa dos Caçadores Ruh. Assim, no segundo dia, durante a noite, o chalé foi invadido e seus ocupantes expulsos. Por sorte, Matteo e Serafina estavam acordados, observando os desenhos nas estrelas. O jovem era forte e pensava rápido. Levou a rainha e sua filha até o trenó, entrelaçou os cães e saiu em disparada sem qualquer suprimento floresta afora. Os demais caçadores foram dizimados com armas de fogo recém descobertas nas mãos dos guardas.

Matteo não se deixou abalar por isso, porém Serafina caiu em prantos.

º º º

“Ter saudade do passado é correr atrás do vento” – Provérbio Russo

Emilie Simons – Quand Vient La Jour

A volta da Família Oldemburgo para a Dinamarca foi marcada por explosões de revoltas entre os camponeses. Tanto os que apoiavam ao rei, quanto os que o queriam morto. Enquanto a carruagem se aproximava dos arredores da cidadela, Serafina via do lado de fora a relva queimada, corvos e abutres enormes, todos empoleirados em restos mortais que poderiam ser tanto de homens quanto de outros animais. Desejava que fosse algum burro doente.

– Finalmente, de volta a casa. – sorriu Cristina a seus filhos, e eles retribuíram o sorriso. João, seu esposo, observava calmamente a paisagem, sem demonstrar satisfação. Serafina assemelhava-se a seu pai neste aspecto. Desde que abandonaram Matteo na Suécia e lhe deram uma certa quantia em dinheiro, não conseguia parar de pensar em quê o rapaz estaria fazendo agora, sem casa, sem comida, sem roupas, sem família. Ele perdera tudo para salvá-las e tudo o que fizeram foi lhe entregar pesadas moedas de ouro, que para ele não teriam tanto valor quanto o que tinha antes.

– Pensar no passado é correr atrás do vento, Taty. – disse a rainha, gentilmente. Porém sua filha lhe ergueu um olhar frio e soturno. Sem qualquer indício da garota calorosa e risonha que era.

– O certo é “ter saudade do passado é correr atrás do vento” – respondeu, voltando a observar a paisagem.

Até mesmo o céu parecia mais cinzento. Os muros do castelo estavam negros provavelmente por causa do incêndio. Criados corriam para todos os lados e as manchas de sangue no chão do pavilhão anunciavam que ali ocorrera uma batalha sangrenta. Soldados abriram as portas da carruagem e a família real desceu. Nobres duques e barões lhes curvaram a cabeça, junto do cocheiro, da criadagem e dos demais que ali estavam. Serafina não notou isso, apenas deixou a todos, caminhando em direção às portas de sua casa.

Não havia tapete no chão, nem tapeçarias nas predes. Muitas janelas estavam quebradas, a escada não possuía mais corrimão de madeira dura que ela usara tantas vezes para escorrer até o último andar. Subiu degrau por degrau, observando o lustre pendurado sobre um quadro semi-destruído. As portas dos quartos estavam abertas e a luz solar iluminavam todo o local. Seu quarto era um dos primeiros. Entrou nele e observou a cômoda negra. Suas roupas foram espalhadas por todo o chão, havia cinzas no local onde antes houvera um vaso com flores perfumadas. Seu espelho fora quebrado e havia sangue nos cacos que restavam no chão. As cortinas queimaram e o colchão por pouco escapara. Sentou-se sobre ele e ouviu a cama chiar, talvez por causa dos pés queimados.

Deitou-se.

Ao redor, as paredes estavam negras, o chão estava chamuscado, havia cheiro de fuligem, sangue e poeira. Havia também fumaça emanando da janela, onde os criados queimavam o resto de todos os objetos já destruídos pelo incêndio que os rebeldes causaram. Sten Sturan pagaria por aquilo. Ele pagaria muito caro.

Por hora, apenas virou de lado, fechou as pálpebras e adormeceu. Tendo um doce sonho onde seu corpo ardia em chamas. Até que acordou e descobriu que realmente estava ardendo. O suor escorria por seus membros, nuca e empapava toda a cama. A febre era intensa e calafrios lhe percorriam todo o corpo. Sua cabeça explodia de dor e seu corpo não conseguia se sustentar por mais de alguns minutos antes de desfalecer cheio de pontadas de dores musculares. Sentia enjoos, fraqueza constante, dormir era a única coisa que queria em todo o dia. Em toda a semana, em todo o mês. Poderia dormir o resto do ano! Mas apenas após a primeira convulsão, é que por fim notaram que não se tratava de um simples resfriado que passariam em menos de um mês.

Serafina tinha infecção bacteriana causada pela Yersina pestis, ou mais popularmente conhecida, Peste Negra.

Foram sete meses de luta contra a doença. Os médicos se recusavam a atendê-la pessoalmente, mas lhe recomendavam tônicos e poções que garantiam a cura. Seus irmãos não tinham permissão para visitá-la e a porta do quarto foi selada. Apenas escravos cuidavam de Serafina, pois os criados não queriam adquirir a doença. Seus pais ousavam todas as noites para orar ao pé de sua cama. E Deus ouviu as orações, e pela segunda vez, salvou a princesa da Dinamarca da morte.

Ao final de seus 13 anos, pouco antes dos 14, Serafina livrou-se da Peste. No tempo em que esteve enferma, conseguiu ler todos os livros da biblioteca, estudar línguas e treinar canto. Quando pôde sair do quarto, não o fez. Suas roupas foram queimadas, junto com o colchão, o travesseiro e todos os objetos em que tocara durante o isolamento, inclusive os livros, mas Serafina não quis sair de lá. As paredes ainda estavam negras, o chão ainda tinha manchas avermelhadas.

Ali, viveu quase dois anos. Como uma princesa na torre, isolada de todo o resto do castelo. Só permitia que os criados entrassem para trazer comida ou preparar o banho. Recusava as visitas de nobres, velhos amigos e mesmo de sua família. Ninguém sabe o que realmente aconteceu com Serafina, apenas que nunca mais voltou a ser a mesma. Talvez a doença, ou antes disso, os seguidos traumas de sua luta pela vida durante a grande revolta que a expulsou da Dinamarca a tenham tirado do mundo das fantasias para de repente colocá-la no mundo real. Mesmo os adultos ainda se mantêm em parte no mundo fantástico, como um pé oscilando. Porém não existia mais inocência em seu coração. Não havia qualquer sentimento. Apenas o desejo de se manter só, com livros e pensamentos.

º º º

“Saber demasiado é envelhecer precocemente” – Provérbio Russo

Emilie Simons – Chanson de Toile

Rolou os olhos pelas linhas bem escritas de Conrad. A letra do príncipe era impecável, porém trêmula enquanto estremecia de frio. A luz da Lua era o suficiente para conseguir ler. O silêncio em todo o castelo aumentava o tom de seus pensamentos, enquanto devorava cada palavra com a fome de um morto.

...ando um pouco ocupado, mas nada que me faça deixar de escrever, é claro. Há um bom tempo conversamos e não creio que logo agora seja o momento de quebrar isto. Meu pai está abalado emocionalmente por causa de Gretel, minha irmã. Ela se foi há quase um mês, mas ainda consigo ouvir sua voz pelos corredores do castelo. Será que estou alucinando? É normal isto? Sei que você não perdeu qualquer um de seus irmãos, mas você já teve esta sensação, de desejar tanto a presença de alguém que consegue vê-lo, ouvi-lo mesmo que não esteja realmente aqui?

Serafina pensou um pouco. Conseguia lembrar-se dos cabelos louros de Conrad e de seus olhos grandes. Lembrava-se de seu beijo, e de seu espírito livre. Lembrava-se de sua voz e se quisesse, poderia ouvi-la. Sorriu consigo mesma.

Este mês, nada de muito interessante aconteceu. Creio que agora que meu aniversário se aproxima, possa oferecer uma festa, quem sabe um Torneio ou Baile. Convidarei sua família, sem dúvidas. Então poderemos nos reunir, eu, você e Wanda, assim como quando éramos crianças. Poderia lhe contar todos os segredos que encontrei no castelo até hoje. Poderia lhe levar até nossos esconderijos mais secretos e poderíamos explorar toda a Floresta Proibida.

Serafina animou-se com a ideia.

Não compreendo porquê uma floresta tem o nome de “Proibida”. Isso não a torna ainda mais desejável? Há uma floresta inteira em meu quintal. E ela é proibida. Somente um louco imaginaria que eu não iria até lá. Wanda é medrosa, mas aposto que você iria comigo, pois é mais corajosa que ela. Assim poderíamos segurá-la e levá-la conosco e vê-la gritar de medo sempre que um esquilo corresse por seus pés.

Serafina soltou uma risada contida.

Tenho de ir agora, Taty. Mas não se preocupe, assim que a primavera começar, enviarei outra carta. Provavelmente respondendo a sua.

Um grande abraço de seu amigo,

Conrad Von Strauber,

Príncipe de Overath.

Soltou a carta e escorregou pela cama. Enrolou-se nos cobertores e riu.

Riu até perder o fôlego.

E então sussurrou o nome que tão bem conhecia, com todas as sílabas, todas as entonações possíveis.

Com’rad.

º º º

Arrumou o cabelo sobre o ombro. A trança alcançava o final das costas. Seu vestido era leve, assim como o verão exigia. O cavalo entre suas pernas trotava ao lado de João, rei da Dinamarca. Pai e filha percorriam toda a extensão dos campos ao redor do castelo da família na Suécia. Com a reconquista do território contra os rebeldes, passaram a viajar com mais frequência até lá, por segurança.

Os quinze anos de Serafina aproximavam-se. Há cerca de quatro anos, ela fugiu de um convento com sua mãe onde era feita refém. Há cerca de um três anos, adoeceu violentamente. Há cerca de dois anos, trocou sua última carta com Conrad e até agora não tinha notícias dele. Provavelmente o príncipe estava ocupado. Mesmo que fossem dois anos. Há um ano, os rebeldes fecharam a Dinamarca e impediram qualquer transição entre as fronteiras com os demais países do continente.

– Veja – apontou João, para o horizonte. O Sol estava a se pôr e aves voavam do Norte para o Sul. Em formato de V, cruzavam as luzes do Sol, formando uma sombra fantasmagórica no céu. Serafina sorriu, impressionada com tamanha beleza. Deus realmente era bom e perfeito.

– É lindo. – comentou.

– Não tanto quanto você. – ele lhe tocou a bochecha – Minha pequetuxa.

– Pai, tenho sua altura. E “pequetuxa” é algo utilizado com crianças.

João, rei da Dinamarca, Suécia e Rússia, riu.

º º º

“Para todo homem, como para toda fechadura, é preciso encontrar a chave certa” – Provérbio Russo

Emilie Simons – Fleur de Saison

Os galhos riscavam sua pele, causando cortes leves que mais tarde seriam apenas cicatrizes e então desapareceriam. O frio cortava todos os movimentos, deixando-a dura. As baforadas brancas que lhe escapavam da boca a cegavam levemente, enquanto a cabeça balançava de um lado para o outro. Sangue escorria pelas pernas, e infelizmente não era seu chamado da natureza. O grande corte ao redor da coxa fora feito por uma faca pequena. Puxou a manga do vestido para cima do ombro, sustentando o seio que não podia ser coberto pelo tecido esfarrapado das roupas.

O vento era intenso, deixando-a ainda mais despida. A pele arrepiava-se. Não sentia a ponta dos dedos, os pés ou o nariz. Não sentia nada, nem dor, nem frio realmente. Estremecia. Cambaleou por cima de uma pedra e tossiu violentamente. O pulmão estava cheio de muco e a voz desaparecera da garganta há dias. Seu estômago já não roncava, estava vazio e quieto, aceitando que não havia comida. O sono a deixava ainda mais trôpega. Segurou-se a uma árvore, lançando olhares assustados ao redor. Aquela tinha de ser a floresta certa. Ouviu o som de cascalho. A neve se abriu, como uma trilha. A esperança queimou em suas entranhas, aquecendo-a mais do que conseguira em semanas.

Semanas.

Caiu, a neve abraçando todo seu corpo. Cuspiu e segurou o vestido com os braços. Ao seu redor, a neve se manchava de vermelho.

Faminta, enregelada, ferida e virgem. Deste último, podia se orgulhar, pois quase perdera a coisa mais importante em si mesma. E por isso agora ostentava aquela ferida no interior da coxa, algo que o estuprador deixo como forma de lembrança. Um presente não muito agradável.

A cidade estava de braços abertos para ela. Caminhou até a ponte do castelo e atravessou-a, ignorando os olhares que lhe lançavam. Os cabelos ruivos foram cortados novamente nos ombros e pouco cobriam de suas costas nuas. Os portões do castelo, abertos, apresentavam a feição mais gentil que ela vira em toda uma semana. Guardas vieram ao seu encontro, talvez reconhecendo seu semblante. Ergueu as costas e se colocou ereta. Era mais alta que um deles.

– Senhorita, lamento informar, mas é proibido mendigar no castelo.

– Ora, está me confundindo com qualquer outra pessoa. – resmungou empurrando-o e passando pelos três. Um dos homens segurou seu ombro com força.

– Espere aqui. – disse.

– Espere aqui você! – Serafina esquivou-se da mão e ergueu um dos dedos para ele – Não ouse provocar a princesa da Dinamarca, ouviu bem? Não ouse me tocar!

– Se você for a princesa da Dinamarca, então eu sou o rei Willian, milady – um deles riu e se curvou de maneira desajeitada. Os seus colegas riram junto. Aquilo irritou ainda mais a Serafina e ela virou as costas, deixando-os com sua ignorância. Assim que voltaram correndo para impedi-la, ouviu as vozes que apenas um nobre sabe se fazer ouvir, era a voz de alguém no comando. Virou-se nos calcanhares e viu deslizar pelas portas principais do castelo uma figura de vestido longo, madeixas louras e olhos esverdeados.

– Rainha? Rainha Regina! – gritou, segurando a barra do vestido e correndo até ela. – Rainha, senhora, que prazer encontrá-la – curvou-se.

A moça a olhou de cima a baixo e ergueu uma sobrancelha.

– Rainha Regina? – e então abafou uma risada – Não sou rainha, muito menos Regina. – ela a olhou melhor – Você é... Alguém que eu conheça?

– Temo que não. – Serafina sorriu. – Mas também não a reconheço. Por acaso é uma das duquesas da Corte? Talvez a filha de Hartwig, ou Otto. Lembro-me que era loura.

– Não sou duquesa, e vim até a Corte há pouco. Sou Hannelore, princesa de Overath. Mas acho que não devemos nos importar com isto, enquanto você congela aqui. Venha, entre, prepararei um banho quente.

º º º

O castelo estava muito mais quente, é verdade. A princesa Hannelore levou-a até a torre de seu quarto, onde mandou as criadas arrumarem a banheira e chamou suas aias, todas bem vestidas e perfumadas. Serafina sentiu-se como um peixe fora d’água naquelas condições. O rosto abaixou-se, como se de repente não fosse uma princesa, e sim uma simples viscondessa. Hannelore as apresentou como Edith, Dominique, Cora e Wanda. Os olhos de Serafina captaram bem toda a essência de Wanda. Os cabelos castanhos, os ombros erguidos, o nariz arrebitado e o sorriso torto. Assim como Conrad descrevera em suas cartas, uma duquesa bem humorada. Wanda, por outro lado, não a reconheceu. O que era de se esperar.

– Esta é uma nobre que veio até nós. Provavelmente foi assaltada na estrada, creio? – e então virou-se para ela.

– A fronteira com a Alemanha foi um pouco complicada. – afirmou e então sorriu amarelo. – Rebeldes e hereges para todos os lados. Quase fui morta pelo menos duas vezes e estuprada.

Edith e Dominique colocaram a mão sobre a boca, horrorizadas. Cora assentiu com a cabeça, compreensiva e Wanda deu de ombros. Hannelore tomou seu ombro, que por mais que estivesse sujo e esfolado, ainda ostentava o orgulho da nobreza. O silêncio perdurou até que as criadas anunciassem que o banho estava pronto. Todas despiram-se e foram às banheiras, como era costume em Overath, o banho comunitário. Serafina ainda lembrava-se de quando tomara banho com Wanda e Conrad. Falando nisso, onde estaria ele? Não o vira do lado de fora do castelo, onde esperava encontrá-lo.

– Acho que não me apresentei ainda – Serafina piscou os olhos, constrangida – Sou Serafina Tatyana Von Oldemburg, princesa da Dinamarca. Meu pai é João Von Oldemburg, rei da Dinamarca, Suécia e Rússia.

Hannelore a estudou com calma.

– Então é você Serafina. Meu tio contou-me sobre quando veio visitar a Corte, anos atrás.

Serafina sentiu as bochechas ganharem vida.

– Sim, eu vim. Quando tinha seis anos. Wanda deve se lembrar. – e então voltou os olhos para a menina – Lembra-se de nossas brincadeiras? Eu, você e Conrad?

O rosto de Wanda fechou-se em uma tempestade e mesmo Dominique se afastou da garota enquanto ela afundava na água, até estar completamente abaixo dela. Serafina sentiu o peito encolher. Falara algo errado. Talvez Wanda e Conrad estivessem brigados. Talvez Wanda não gostasse mais de Conrad. Talvez Conrad não gostasse mais de Wanda. Nunca fora sua intenção ferir os outros, mas era sempre o que acabava fazendo. Com sua mãe, seu pai, com Matteo, com todos. De alguma forma, sempre tirava mais do que poderia dar. Roubava a felicidade das outras pessoas para devolver menos da metade. Para devolver saudade. Mordeu os lábios.

– Não se preocupe, Wanda é sentimental. – explicou Cora, sorrindo gentilmente. – Ela só não se acostumou com a ideia de que Conrad não está mais entre nós.

– Como não está? É verdade que não o vi pelo castelo. Ele viajou?

Os olhos de todas, inclusive Wanda, voltaram-se para ela. Hannelore foi a primeira a desviar o olhar. Em seguida Edith e Dominique, Wanda e por fim Cora. Que desatou a rir descontroladamente. A morena tinha lágrimas nos olhos quando enfim parou.

– Qual a graça? – Serafina perguntou, sentindo a irritação aflorar em seu peito. Por que ninguém a encarava a sério ali?

– Ora, qual a graça? Conrad está morto. Há meses.

º º º

Serafina sentiu o coração faltar em um batimento. E então agitou-se de maneira desenfreada, como jamais sentiu antes. A adrenalina explodiu pelas veias e seu rosto se tornou um borrão de vermelho, assim como os cabelos. Não se importou com sua nudez, enquanto levanta-se, enrolava-se em uma toalha e partia, deixando o quarto de banho. Encontrou um vestido sobre a cama e colocou-o, sem se importar a quem ele pertencia. As mangas eram longas, porém a saia era curta demais para seu corpo alongado. As barras batiam nos tornozelos. Penteou os cabelos, mordendo os lábios até deixá-los brancos. Fios e mais fios arrebentavam-se, enquanto usava toda a força e fúria que conseguia para desatar os nós que o tempo lhe dera. Por fim, o couro cabeludo estava dolorido, e a escova cheia de tufos de cabelo vermelho. Abandonou-se sobre a cama.

E então começou a chorar.

A boca abriu-se em um berro e não controlou os soluços. Chorou como uma criança, de uma maneira que jamais chorara. Soltou todos os anos de silêncio, soltou todos os sentimentos reprimidos. Desatou os nós de seu peito, a voz que antes desaparecera de repente voltava com força de um trovão. Gritou, esmagou os travesseiros entre as mãos. Debateu-se e por fim estancou. Como um ferimento após sangrar continuamente.

Adormeceu sem perceber e despertou apenas quando já era noite. O quarto estava em silêncio. Sentou-se no colchão e tentou lembrar onde estava, por que estava. Ah, sim, estava em Overath. Estava ali porque era um local seguro e havia seu casamento. E ela era Serafina Tatyana Von Oldemburg. E Conrad estava morto.

Há meses.

Por que não enviava cartas? Por que desaparecera de repente, sem qualquer explicação? Por quê? Por quê? Será que sempre fora tão cega ou tão ingênua? Será que era tão burra? Enxugou as lágrimas que ainda escorriam pelo rosto. Os olhos estavam inchados e avermelhados, e o nariz escorria. Limpou-o com a mão, embora fosse uma das coisas mais nojentas para uma princesa fazer. Quem se importava? O que seu título importava? O que qualquer coisa importava? Fantasiara aquele momento em sua mente por anos. Ficou até contente por tomar um bom banho antes de encontrar Conrad. E então aquilo. Reprimiu um soluço.

Não, não iria chorar novamente. Esgotou todas as suas reservar sentimentais. Era hora de olhar para cima e continuar. Como sempre fizera. Como sempre era. Como sempre seria. Encarou o teto, cerrando os punhos fortemente. A escuridão a envolvia. E talvez tenha sido isso, ou o fato de que fora naquela torre onde tudo acontecia, que a fez ceder novamente. Mas dessa vez, chorou em silêncio. Chorou para si. Chorou para Conrad.

Um caís, a ruiva e Conrad


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do capítulo! :3