Julieta e Julieta escrita por Quântico


Capítulo 1
Julieta e Julieta


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo. Altar Particular - Maria Gadú
http://www.vagalume.com.br/maria-gadu/altar-particular.html



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É uma moleca chata, menina abusada que me atormenta a mente. Deus que me livre, só fica no meu rabo de saia, não me deixa em paz, sempre aparece quando eu quero ficar sozinha. Quando tínhamos sete aninhos, ela começou a estudar comigo e tudo o que havia de atividade era queria fazer junto a mim, mas o que me deixou mais raivosa foi quando nós fizemos dez aninhos, era dia de peça e eu fui escolhida para fazer o papel da Julieta e ela o do Romeu. Nos ensaios ela inventava de grudar em mim como se a peça fosse vida real.

Que menina! Como pode ser tão bonita sendo tão abusada? Eu queria ser bonita como ela, quase parece uma modelo com aquele estilo autêntico afrodescendente. Ela é uma negra um pouco mais baixa que eu— já que eu tenho uns 1,78—, com cabelos crespo-cacheados sempre ornamentados com tiaras estampadas. Suas roupas são, basicamente, calças largas e blusas folgadas, sempre com cortes e estampas tribais, africanas em geral. Era uma garota estilosa. É só pensar na guria que ela apareceu ali, mas que má sorte! Já estava ela vindo na bicicleta.

— Tudo bem, moça bonita? — perguntou a Baiana, esse era teu apelido, quase ninguém a chamava pelo nome: Ester. — Está de saída? Aonde vai?

Eu a encarei com uma expressão feia, estava atrás de mim montada em sua bicicleta. Usava um vestido azul com estampa triangular, parecia mais uma roupa indiana que africana.

— Estou indo para a avenida, irei com o Romeu, ele está me esperando lá — respondi.

— Fiquei sabendo que vocês dois estão juntos. Você, literalmente, encontrou seu Romeu.

Eu sorri encarando o chão, continuei meu percurso e ela veio atrás de mim montada na bicicleta que tanto gostava.

— Por que os chamam de Romeu? — perguntou.

— Por ele ser leitor assíduo do Shakespeare — respondi orgulhosa.

— E você é a Julieta? — perguntou a baiana.

— Sou sim — esclareço.

— Cuidado, o final dos dois não é tão legal assim.

Eu preferi não responder, continuei caminhando e escutando ela, lentinha, com a bicicleta, atrás de mim.

— Eu mudaria o final caso pudesse ser teu Romeu — disse Baiana.

Eu esperei um pouco para processar tudo. Tentei respirar e quando finalmente iria responder-lhe, ela já havia descido a rua, virada no raio, com a bicicleta.

Não consegui me concentrar em nada durante o resto do dia. Como nunca percebi que Baiana gostava de mim? Nunca fui homofóbica, nunca mesmo, mas era outro algo que me deixou aflita com isso e me perguntei inúmeras vezes o que era, pois eu não coloquei na minha mente que não tinha chances d’eu gostar dela também e tudo fora vago, ela não disse "eu amo você" ou algo do gênero.

Apesar de tudo é sempre bom saber que alguém gosta de você a ponto de sentir-se atraído.

— Acorda, Júlia! — disse Romeu. — Meus amigos já estão falando que você é “alienada”.

— Por quê? — questiono.

— Por causa da sua cara de lunática! Não me faça passar vergonha, loura. — Romeu olhou para os lados conferindo se alguém estava ao nosso redor.

— Você é um besta mesmo. — Eu sorri, caçoei dele.

— Não ria de mim — falou irritado.

Eu o ignorei e continuei a rir. Odeio receber ordens vindas de meninos que acham-se machões.

— Não ria de mim, idiota! — gritou impaciente.

— Você me chamou de idiota? — perguntei ainda com o riso no rosto. — Você me chamou de...

Ele não me respondeu, apenas me retirei da mesa que ocupávamos e desferi um tapa bem dado naquela cara, com minha mão tripa-seca que dói mais que chicote.

— Você está maluca? — diz preocupado, tocando a bochecha que fora estapeada por mim.

— Maluca seria se eu não fizesse isso. — Lhe dou outro tapa, desta vez, na outra bochecha. — Quando você desfaz de uma mulher, ela pode aceitar ou não. Espero que você saiba qual foi a minha escolha.

Os dias se passaram rapidamente, logo já estava no fim da semana. A manhã de sábado, enfim, chegou para ajudar-me a livrar de tudo que rondava minha mente. Acordei já tarde e só levante meia hora depois de procrastinação.

Tudo rodava na minha mente. A vontade de bater mais no Romeu e o desejo de esclarecer-me com a Ester, que sumiu esses dias. Por que essa neguinha fez isso comigo?

Levanto-me rapidamente, decido sair daquele quarto apertado. Fui para sala e me deparo com meu irmão mais velho jogando videogame. Adivinha quem estava ao seu lado? Baiana. Esqueci que meu irmão e a mulata são melhores amigos, esse foi um detalhe muito importante que deixei para lá.

— Bom dia, Júlia — disse meu maninho sem nem olhar para mim. Baiana fez o mesmo com exceção do cumprimento.

Esperei quieta na cozinha, mas eles estavam entretidos com o jogo e talvez aquilo demorasse mais um pouco. Voltei então para a sala e sentei-me no sofá menorzinho, finalmente, a baiana me notou, mas sem dizer nada a respeito da minha presença.

— Baiana, você está quieta hoje — disse meu irmão.

— Virgem Maria! Você que está paranoico, é a sétima vez que diz-me isso. Eu estou tão bem — disse Baiana.

Foi tão bom escutar aquele sotaque nordestino novamente.

— Está nada, concorda comigo, loura? — perguntou a mim e eu respondi balançando a cabeça afirmativamente.

— Eu estou bem sim, coisinhas — assegurou a mulata, pelo menos meu irmão, pois eu sabia que a neguinha não estava bem.

Ignorando essa conversa, os dois voltaram a jogar. Baiana ganhava quando a televisão inventou de pifar. Meu irmão ficou indignado, afirmando que estava prestes a virar o jogo.

— Que droga! Bem que papai disse, a TV está uma bosta! Agora terei que buscar as ferramentas — reclamava meu maninho.

E o que eu mais temia, talvez ansiava até, aconteceu: eu, Baiana, um mesmo lugar, sozinhas.

— Desculpe-me por ter dito aquilo, moça bonita — falou para mim.

— Se for verdade o que disse, não precisa se desculpar. — Eu mudei de sofá, sentei-me ao lado da Baiana.

— Lourinha, fará alguma diferença para você? — perguntou se distanciando um pouco de mim, mas eu me aproximei novamente.

— Claro que faz, há duvidas? — perguntei preocupada com o que ela pretendia a partir daquele pensamento.

Meu coração parecia calmo, tão quietinho, mas daí ela começou a cantar.

— Se enfim, você um dia resolver mudar; tirar meu pobre coração do altar, me devolver como se deve ser. Ou então se um dia dele resolver cuidar; tirar da cruz e o canonizar que meu peito se abre e desata os nós.

A voz da Baiana era incrível, rouca, mas uniforme. A música da Maria Gadú, Altar Particular, casou-se com aquele timbre incrível.

— Dedique a mim que lhe dou uma resposta, neguinha — falei a partir da letra da canção.

— Então dedico a você, loura — disse-me.

— E eu, de fato, desejo cuidar do teu mais belo coração, Baiana — respondi.

Pude então tocar aquele queixo quadrado. Aproximei meu rosto fino do rosto redondinho da minha neguinha. A pele mulata escura na minha pele rosada com sardas. Os olhos escuros da minha Baiana e os meus olhos verde-água. Meus fios louros e lisos e os fios cacheados cor de chocolate da minha menina. O seu sabor era tão bom quanto seu cheirinho de cacau. Por que um dia reclamei de ter aquela menina na minha cola?

Ela me beijou de modo tão singelo e inocente que pude perceber seu medo presente de afudar-se naquilo, mas prometi a mim mesma, naquele instante que nunca machucaria minha neguinha e pude dizer isso em voz alta quando nos afastamos.

— Eu estou prometendo, neguinha minha. Caso você queira tentar.

Ela sorriu para mim, seu sorriso era lindo.

— É um risco que correrei — diz a mim.

— Não confia em mim, Ester? — pergunto a encarando nos olhos.

— Eu prometo tentar, lourinha.

E eu estava feliz. Ela estava disposta a me amar, enquanto ali, eu lhe dei reciprocidade. Ela confiou em mim, mesmo sabendo que eu poderia mudar...mas eu estava disposta a não mudar, pois o que eu escolhi era a mais perfeita neguinha de todas. E como sempre diz uma amiga minha, quem desdenha quer comprar. Talvez seja essa a resposta, mas resposta melhor ainda veio: quando há duas Julietas, não se precisa de um Romeu.


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