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Capítulo 22
Capítulo 21 — Melancolia I


Notas iniciais do capítulo

Olá ♥



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Soul acordou com os pelos dos braços arrepiados pelo vento gelado que vinha da janela aberta da sala. Ele olhou com ternura para Lydia, deitada ao seu lado, com os cabelos espalhados pelo rosto. A garota ainda dormia – de bruços – e com os olhos visivelmente inchados. Soul tirou a coberta de cima de si vagarosamente e deslizou para fora do sofá, andando na ponta dos pés, evitando o chão gelado, então foi até a janela, debruçando-se nela. Afagou os braços de frio e observou um pouco a rua. Vazia. Não havia se quer a senhora Mildred, da casa ao lado, fazendo seu passeio matinal com seus três poodles. Após esfregar o nariz avermelhado e soltar um leve espirro, Soul fechou a janela.

— Bom dia. — murmurou Lydia, embargada de sono, sentando-se no sofá.

— Dormiu bem? — Soul perguntando, fechando a janela.

Lydia negou.

— Vou fingir que nem me perguntou isso. — ela respondeu, levantando-se e enrolando seus cabelos castanhos em um coque.

Soul massageou as têmporas, respirou fundo e enviou um olhar preocupado ao andar de cima da casa.

— Acha que eles estão bem? — ele perguntou apreensivamente.

Lydia olhou para o primo e depois para o andar de cima, e viu que não tinha resposta. Soul subiu as escadas devagar, indo até seu quarto, passando em frente à porta do quarto de Lydia e Alice, ele o observou sem entrar. A cama de Alice estava bagunçada, com roupas espalhadas, travesseiros pelo chão e descoberta. Ele ficou parado na soleira durante alguns segundos e depois seguiu para o seu quarto.

Soul escovou os dentes, pôs uma calça jeans escura e um moletom cinza. Passou as mãos pelos cabelos claros e finos e, enfim, desceu. A sala estava vazia agora. Soul calçou seus tênis e seguiu para a porta de entrada, na sala. Lydia já estava saindo do banheiro do andar de baixo, com os cabelos penteados e levemente molhados, como se tivesse tomado uma ducha. Ela então recolheu o sofá-cama, deixando-o como antes e dobrou os cobertores. Depois, sentou-se na beira do sofá com uma expressão pensativa.

— Será que poderemos velá-la hoje? — Lydia sussurrou, com cotovelos apoiados nas pernas.

— Não tenho ideia. — respondeu Soul, pegando as chaves na mesa de canto.

Lydia ergueu a cabeça e olhou em direção do primo.

— Vai à delegacia? — ela perguntou baixo.

Soul assentiu em silêncio. Lydia levantou-se e caminhou até ele em passos leves, parando bem a sua frente.

— O quanto você sabe? — perguntou em um sussurro.

Tudo. — Soul foi sucinto e deu-lhe as costas, finalmente saindo de casa.

(...)

Soul deixou sua casa às seis horas da manhã, sem sequer tomar café e o dia ainda estava meio escuro. Mas a fome e a luminosidade não pareciam fazer diferença, tudo passava despercebido assim como a dor de cabeça forte que ele sentia naquela manhã.

Ao chegar à estação de trem, Soul observou como tudo naquele dia estava mais triste, mais vazio, mais morto. O rapaz havia optado pelo meio de transporte mais lento de Madrin por que precisava pensar. Ele precisava de tempo naquela manhã, precisava se entender e entender tudo o que estava acontecendo, e sim, digerir sua culpa. Para uma manhã de segunda-feira, os trabalhadores e estudantes pareciam ter tirado uma folga da rotina assíduo e cansativa. Estava tudo muito vazio, muito silencioso. O mundo inteiro parecia em luto.

Sentado em uma cadeira em frente à maquina de refrigerantes, Soul apoiava seus cotovelos em suas pernas, com as mãos afagando seu rosto incessantemente, roçando seus olhos, enquanto a perna direita balançava impaciente. Os acontecimentos da noite passada pareciam assombrá-lo em um looping de imagens em sua mente. Mesmo não querendo pensar naquilo, era inevitável.

— Está tudo bem.

Soul ouviu uma das últimas frases de sua irmã ecoar em sua mente. Tal frase que também levava o último resquício de luz e positividade que a menina carregava em seu corpo. Ela não se abalou pela dor, ela nunca se entregaria tão fácil. Alice estava pronta para a morte quando aconteceu, e ela estava em paz, e essa era razão pela qual Soul sabia que levantaria da cama todos os dias dali em diante: sua irmã está em paz. Ele também deveria estar.

Próximo trem para: Estação Oceanside, ao norte.

Uma voz eletrônica despertou Soul de seus devaneios. Quando ele se levantou da cadeira e ergueu os olhos, percebeu que a estação encheu sem que ele percebesse. Ele foi o primeiro a adentrar no trem com destino à estação de Oceanside, que ficava próxima à delegacia do centro, seu destino final.

Então Soul sentou-se no assento próximo à janela, e quando o trem partiu, ele ficou observando tudo do lado de fora ir ficando pra trás cada vez mais rápido conforme o trem avançava. E aos poucos, os pensamentos ruins que lhe ocorreram foram substituídos por pensamentos bons. A presença de Alice na vida de seu irmão não seria marcada por sua morte brutal, mas sim tudo que ela fez em vida.

(...)

Soul chegou à Oceanside em pouco mais de uma hora, então ele desceu do trem, e pôs suas mãos no bolso da calça a fim de aquecer-se.

Agora tudo parecia diferente, o centro estava lotado de pessoas. Avenidas cheias de carros, filas amontoadas para pegar o próximo trem, cafeterias aglomeradas por pessoas que obviamente não conseguiram tomar café em casa. Após atravessar a rua, Soul andou algumas quadras e ao virar a esquina, avistou de longe o comprido prédio da delegacia.

Ao entrar lá, o silêncio era de machucar os ouvidos. Todos pareciam muito concentrados em suas mesas, algumas pessoas enfardadas se movimentavam pelo local, com pastas nas mãos ou com telefones pendurados nos ouvidos. Mas sempre se mantendo ocupados. Soul encostou a porta devagar tentando não romper a quietude, e andou a passos curtos pela sala de entrada, um tanto perdido.

Pelo corredor dianteiro, ele pôde ver uma mulher com um jaleco esbranquiçado vindo em sua direção. Alta, de pele morena, cabelos negros e olhos escuros.

— Soul Ashter? — ela perguntou enquanto se aproximava.

— Eu mesmo. — ele respondeu com hesitação.

A mulher fez um sinal para que ele a acompanhasse. Soul notou que no jaleco dela havia um crachá escrito “Vanity Jenpsen – Detetive”.

Ambos seguiram pelo corredor até uma sala conhecida por Soul. Vanity abriu a porta e sinalizou para que o garoto entrasse e após isso, ela encostou a porta atrás dele, saindo de lá. Soul observou a sala com cautela, e parou com os olhos na mesa da delegada. Elizabeth estava olhando-o com serenidade. Soul desviou o olhar da delegada até a pessoa que estava sentada à sua frente.

Um homem barbudo, de cabelos escuros, olhos fundos e olheiras enormes. Ele parecia assustado e intimidado. Soul apontou pra ele com a cabeça.

— Quem é ele e por que está aqui? — Soul questionou, hesitante, ainda perto da porta.

Elizabeth levantou-se de sua cadeira e apoiou as mãos em sua mesa, encarando Soul.

— A história vai muito além do que você sabe. — ela esclareceu. — Eu preciso que ambos me digam tudo o que sabem. Suas histórias se interligam formando apenas uma, que é de verdade a história completa sobre Enzo Monrie, Anonimato, Galeno e seja lá qual seja a definição pra isso tudo. Soul, por favor.

Elizabeth encerrou, sentando-se novamente em sua cadeira e apontando para outra vaga em sua frente, ao lado da cadeira do homem estranho. Mesmo que um tanto apreensivo, Soul seguiu até o local indicado e sentou-se.

— Soul, eu presumo que desconheça Elton Gonzalez. — Elizabeth olhou Soul e apontou levemente para o Elton.

— Quase destruí sua vida e nem sequer te conhecia direito. — Elton riu debochado em um tom embriagado. — Foi divertido.

Soul semicerrou os olhos, confuso.

— Elton Gonzalez é o antigo zelador do Westin Hills. — explicou a Marsh resumidamente, e logo fitou Elton com firmeza. — Sei que já conversamos, mas irei repetir. Enzo está morto, você não tem mais ninguém para servir ou proteger, ou de quem tirar algo. Você dirá a história verdadeira dessa vez. Lembre-se: eu não sou a juíza, mas com certeza o que eu penso irá pesar na decisão dela na sua pena final.

Elton se encolheu na cadeira. Soul se mantinha inexpressivo, nada mais o surpreenderia naquele momento.

— Comecemos por você. — Elizabeth o menino. — Obviamente você e Enzo se conheciam antes de tudo isso. Como você o conheceu?

Soul respirou fundo, fechou os olhos por poucos segundos e começou.

— A casa do Enzo era próxima à minha escola, e eu geralmente ia embora sozinho por que Lydia sempre tinha mais aulas à tarde e Alice fazia atividades extras. Eu sempre passava em frente à casa dele, às vezes havia silêncio, mas em outras vezes, era um alarde. Gritos, quebradeiras, berros insanos e desespero. Eu observava os vizinhos assustados mas que não se mobilizavam para ajudar mesmo sabendo que ele vivia sozinho e obviamente era louco. — Soul fez uma pausa. — Em uma manhã, eu estava retornando pra casa mais cedo por que havia esquecido um material importante para minha aula de química, e então eu o vi.

A porta de sua casa estava escancarada, observei vagamente seu interior, tudo estava quebrado e ele estava jogado na calçada de sua casa. Escorria uma baba espumante de sua boca, ele estava tremendo, porém, rindo loucamente como se estivesse vivendo algo muito divertido. Seus olhos reviravam, seus braços e pernas se debatiam. O sol estava ficando mais quente, e ele estava jogando na calçada fervente.

Observei todos os vizinhos escondendo suas crianças e fechando as cortinas. Larguei minha mochila, e arrastei-o para dentro de casa. Após colocá-lo no sofá, dei-lhe um copo d’água e esperei-o se acalmar. Ele dizia coisas sem sentido sobre Galeno e Cemitério das Cinzas, na época eu mal sabia do que ele dizia.

Após quase alguns minutos de histeria, ele se acalmou – após todo o êxtase elétrico, ele se tornava sonolento e cansado – então, mesmo cambaleante, ele levantou-se – após eu insistir – e foi ao banheiro lavar o rosto e quando retornou, jogou-se no sofá, com a mão no peito.

— Preciso de algo pra me despertar. — disse ele em um tom monótono, quase sem fôlego. — Minha cabeça está doendo muito.

Ele pôs a mão na cabeça e tinha um olhar vazio que se fixava no chão. Aos poucos ele se deslizou pelo sofá e deitou-se. A primeira coisa que eu pensei em fazer foi chamar alguém, mas não segui pelo meu primeiro raciocínio. Ele queria algo para despertá-lo e estava com dor de cabeça, então minha conclusão pouco inteligente foi: vou lhe preparar um bom café. Eu queria ajudá-lo. Fui até a cozinha, remexi nos armários e achei pó de café, então preparei uma xícara de forte, e entreguei-o.

— Qual é o seu nome? — perguntei hesitante.

— Enzo. — ele disse com as mãos trêmulas que seguravam a xícara de café quente. — Enzo Monroe.

— Isso faz quanto tempo? — perguntou Elizabeth, abrindo seu bloco.

— Não sei ao certo, alguns bons meses, desde o início do ano. — Soul respondeu.

Elizabeth sinalizou que ele continuasse.

— Após isso, eu comecei a passar sempre na casa de Enzo após a escola. Eu fazia minha lição lá, e também fazia café pra ele. Nós nos tornamos amigos. Até que ele me contou sobre sua história.

— Soul, eu preciso de ajuda. Você quer me ajudar, não é? — Enzo me olhou curioso pondo a xícara de café pouco cheia sobre sua mesa.

Eu estava sentado em seu sofá, fazendo meu trabalho de álgebra, ergui meus olhos até ele e assenti com a cabeça.

— Venha. — disse Enzo, fazendo um gesto convidando-me a se aproximar.

Fui até ele, que estava sentado à mesa onde havia seu computador, então ele abriu um documento que revelava um prólogo e um primeiro capítulo pela metade, do início de uma história. Uma história chamada Cemitério das Cinzas. Enzo levantou-se da cadeira e apontou para ela, pedindo para que eu me sentasse, e isso eu fiz.

Sentei-me na cadeira em frente ao computador e li as quase seis mil palavras que Enzo escrevera. Ao terminar, fiquei assustado com o talento oculto que ele tinha. Logo no prólogo dava pra entender toda a temática aterrorizante de sua história, sua escrita era impecável, seu jeito de expressar emoções e fatos era contagiante, e sua narrativa era deliciosa e dinâmica. Enzo Monroe era um gênio incompreendido. Eu estava impressionado.

— O que achou? — ele perguntou ansioso, retornando da cozinha com mais uma xícara de café.

— É magnífico. — sorri largo. — Você é muito talentoso, nunca imaginaria!

Enzo sorriu de volta e sentou-se no sofá. Logo me lembrei de um site onde Alice e Lydia liam histórias de terror, o Dark Side Home.

— O senhor gostaria de postar essa história online? Quer dizer, para outras pessoas lerem, acompanharem ou até mesmo comentarem seu trabalho? — sugeri.

— Comentar? Dizer pra mim o que acham sobre o meu trabalho? Outras pessoas poderão opinar e conhecer? — Enzo perguntou animado e com um brilho infantil nos olhos.

— Mas é claro. — afirmei com um sorriso, então pesquisei o site e cliquei em “criar conta”. — Vamos começar já! Qual será o seu nome de usuário? Podemos criar algo legal, como...

— Não. — disse Enzo, levantando-se indo até mim. — Acho que eu prefiro me manter em segredo. Permanecer em anonimato.

Sorri novamente.

— Ótimo. Então será isso. — digitei o pseudônimo de Enzo. — Anonimato.

— Enzo Monroe era um sonhador. As vezes parecia uma criança. — os olhos de Soul pesaram em lágrimas. — Ele acabou se tornando uma pessoa que eu desconheço.

— E o que aconteceu depois? — Elizabeth perguntou.

Soul limpou a garganta e prosseguiu.

— Enzo estava recebendo vários comentários pelo único capítulo postado, o prólogo. Ele estava animado, e eu fui o visitar em um domingo. Enquanto ele teclava para terminar o primeiro capítulo, eu estava na cozinha, preparando seu café.

Enquanto eu estava na cozinha remexendo nos armários a procura do pó de café, achei pequenos vidrinhos estranhos em baixo da pia, com um rótulo escrito “PCP”, eu olhei de relance para sala e Enzo estava concentrado em seu trabalho, então, rapidamente, eu pesquisei sobre aquela substância no meu celular. E logo descobri que era um alucinógeno, e quando li sobre os sintomas logo associei ao que presenciei Enzo passar quando o conheci. Deduzi que ele ainda estava se drogando. No primeiro momento decidi ignorar e coloquei os vidros de volta, daí eu terminei o café e o entreguei.

E foi assim durante dias. Quando eu chegava à sua casa, as vezes eu encontrava objetos quebrados, e cacos de vidro do chão, e seu rosto cada vez mais abatido. Ele estava terminando o terceiro capítulo de Cemitério das Cinzas, e quando desligou o computador, cambaleou até o sofá, com a aparência cansada e embriagada. Exatamente como ele ficava após uma dose alta de PCP. Primeiro vinha o sentimento de invencibilidade e adrenalina, em seguida, vem vulnerabilidade, fadiga e tonteira.

— Soul, eu preciso do meu café. Bem forte. — ouvi sua voz embargada vindo da sala e lhe levei uma xícara de café. —

Após ele beber, sua expressão se tornava um pouco mais sadia e acordada, como se a cafeína fosse seu antídoto. Percebendo o efeito do café em Enzo, comecei a fazer pesquisas e sim, a cafeína – em alguns casos – poderia anular, amenizar ou até mesmo tranqüilizar os efeitos colaterais de algumas drogas, como a fadiga causada pelo uso demasiado de PCP. De qualquer forma, eu sabia que nada estava bem.

Mais dias se passaram e ele continuava da mesma forma, se drogando antes de eu chegar e tomando café a fim de cortar a sonolência e o cansaço físico e também psicológico que sucedia os ataques.

Houve um dia que ele me pediu café novamente, mas eu lhe entreguei uma xícara fraca, com o mínimo teor de cafeína que pude, e ele, conforme eu queria, adormeceu, rendendo-se ao cansaço. Então liguei seu computador naquele dia e abri o documento de Cemitério das Cinzas, e a partir do terceiro capítulo, tudo estava desandando e ele já estava caminhando para o sexto, havia furos, péssima ortografia, narração e desenvolvimento, tampouco parecia o escritor magnífico que conheci. Eu acompanhava tudo no site e vinha criando coragem para conversar com Enzo sobre isso, mas eu não conseguia. No site, havia comentários maldosos depreciando seu trabalho que estava mesmo horrível, eu vinha entrando na conta dele e bloqueando esses comentários. Eu temi muito que ele os visse.

Eu sempre soube o quão era importante e gratificante para Enzo aqueles comentários, eu não poderia deixar que ele visse aqueles com críticas destrutivas. Isso acabaria com ele. Então, eu reescrevi tudo. Todos os dias eu o deixava adormecer e trabalhava em sua história. Eu tive novas ideias, com novos personagens, e novos enredos. Eu aperfeiçoei tudo. Eu sabia o quanto aquilo era errado, mas eu não conseguia parar. Eu havia me conectado com aquela história, e não mais apenas como leitor, mas agora como autor. E Enzo permanecia feliz, com os bons comentários e com “sua” história, ele agora apenas rascunhava – muitas vezes coisas sem sentido – e eu reescrevia de uma forma, se me permite dizer, excelente. Os comentários melhoraram e ele fora elogiado cada vez mais. E por um momento, eu achei que pudéssemos permanecer assim.

Os elogios eram meus. Era o meu trabalho. Eu me tornei Anonimato. Mas não importava, eu gostava de ver Enzo feliz.

Soul sorria ao se lembrar dos bons tempos antes que sua vida virasse um inferno.

— Quando pretendia informar isso a alguém? — Elizabeth esforçou-se para não falar tão alto. — Alguém responsável!

— Eu achei que estava com tudo sob controle! — Soul rebateu.

— Você tem dezesseis anos! — A delegada afirmou, em uma voz ríspida, batendo na pesa. Então inspirou e expirou, a fim de acalmar-se. — Continue.

Soul respirou fundo, passou a mão brevemente pelos cabelos claros, e prosseguiu.

— Realmente, saiu do controle. Eu acreditava que conseguira continuar mexendo na história sem que ele soubesse. Mas em um dia, seu cochilo da tarde não foi o tempo necessário.

Eu estava encerrando as correções do capítulo 8 de Cemitério das Cinzas quando Enzo levantou cambaleante do sofá, e veio até mim, que estava sentado em frente ao computador, ele repousou as mãos em meus ombros, e olhou para a tela do computador onde eu rapidamente salvei o capítulo e a fechei o documento rapidamente. Ou tentei. Antes de fechar, Enzo segurou minha mão sobre o mouse e sussurrou melancolicamente em meu ouvido:

— O que está fazendo, Sr. Ashter?

Minha respiração tornou-se pesada, e meu coração bateu mais devagar. Quando Enzo finalmente retirou as mãos de meus ombros ele deu poucos passos pra trás.

— Você anda mexendo na minha obra, Soul Ashter?! É isso?! Está se apoderando da minha glória como escritor, roubando-a para você?! — Enzo berrou, com os olhos arregalados, e a sua jugular parecia querer explodir. — Está com inveja!

Levantei da cadeira vagarosamente, e com as mãos brevemente erguidas, fui me afastando do computador.

— Eu estava apenas ajudando você. — respondi arfando, dando passos pra atrás, até a porta. — Você estava se perdendo, e eu sei sobre as drogas. Elas estavam te matando, eu só queria conservar a sua obra, enquanto conservava você também lhe pondo para dormir e se recompor. Eu temia que você surtasse se eu te confrontasse sobre o PCP.

 Os olhos esbugalhados de Enzo me encaravam de forma histérica. Seus dedos se curvavam como se ele quisesse segurar algo até esmagar, talvez o meu coração. Ou a minha cabeça.

— Isso não te dá o direito de ficar remexendo em meus capítulos sem eu saber! — ele berrou novamente, com a testa avermelhada, assim como o pescoço — Isto é o meu trabalho, Soul! Não quero um moleque desocupado bagunçando as minhas coisas! Minha história, meus leitores, meu lugar no mundo! E isso não pode ser seu, menino insolente!

Aquilo me atingiu como um tiro. Eu encontrei a raiva dentro de mim. A ingratidão de Enzo. Seus gritos. Acusações. Xingamentos.

— Seus leitores, Sr. Monroe?! Aqueles que estavam te denotando quando você começou a postar coisas péssimas por que o PCP estava mexendo com sua mente?! Eu apaguei aquilo, e reescrevi. Apenas para poupar você. — o encarei — Ou está achando que aqueles maravilhosos elogios e críticas excelentes vieram de leitores que leram aquela bosta que você estava escrevendo?

Enzo socou a parede com força. Meu olho estava saltando num tique nervoso maldito.

— Não julgue a minha escrita quando você não tem metade do meu talento. Invejoso. — Enzo fitou-me com nojo. — Eu sou o que você quer ser.

— Está enganado, Enzo. — peguei minha mochila, a pus sobre meu ombro e caminhei até a porta. — Eu sou o sucesso daquilo que você tentou ser. Eu criei Anonimato. E eu me tornei Anonimato.

E saí de lá, seguindo o caminho mais longo até a minha casa.

— Nesse mesmo dia, quando eu cheguei à minha casa, loguei na conta de Anonimato e transferi todos os comentários de Cemitério das Cinzas para o meu email. Eu estava com raiva e achava que merecia algo, aliás, era o meu trabalho. Fazendo assim que nenhum comentário jamais aparecesse no site, qualquer pessoa que dissesse algo sobre a história, chegaria diretamente pra mim. Mas depois de um tempo, eu desconectei os comentários do meio email por culpa. — Soul estalou o pescoço e continuou. — Enfim, depois disso, eu continuei passando em frente a casa dele. Ouvia um silêncio profundo, que chegava a ser perturbador. E decidi perguntar para alguém se havia algo acontecendo.

Vi a casa silenciosa mais uma vez, e do outro lado da rua, Sra. Mary –  há anos vizinha de Enzo – regando suas plantas, enquanto observava seu cão caminhar pelas ruas.

— Boa tarde, Sra. Mary. — me aproximei da mulher.

Ela me olhou dos pés a cabeça, com o cenho franzido e logo alternou o olhar até a casa de Enzo, e depois de volta a mim. E continuava a me fitar com um semblante desconfiado.

— Boa tarde, meu rapaz. Faz tempo que não lhe vejo por aqui. — ela fez uma pausa. — Há tempos não lhe vejo visitando ele.

Ela apontou com o queixo para a casa de Enzo.

— Sim, é verdade. Faz uns dias, quase duas semanas, que não o vejo. A casa parece quase vazia. Aconteceu algo?

— Depois que você sumiu, os ataques que ele tinha antes são quase sempre de madrugada, porém não tão alarmantes como antes. As vezes, antes do anoitecer, ele fica parado na calçada, com um semblante alienado e avoado. Como se não soubesse nada de nada a sua volta, como se não soubesse quem é, com uma expressão vaga e solitária. E também faz alguns dias que ele sai à noite.

Semicerrei os olhos.

— Ele costumava fazer passeios noturnos?

Sra. Mary repousou seu regador no chão.

— Sim. Umas duas vezes por semana, eu sempre o via saindo de casa através da minha janela.

Velha enxerida. Mas logo entendi: ele saía noturnamente para comprar suas drogas de qualquer vendedor mal intencionado. Assenti com a expressão vazia, agradeci a Sra. Mary e segui de volta para minha casa.

— Os dias passaram e eu recebi uma notificação em meu email, avisando que Anonimato havia postado um capítulo em Cemitério das Cinzas. O capítulo oito. Intitulado como Banho de Sangue. O último que eu havia escrito. E no dia seguinte, minha caixa de entrada no email, estava lotada de comentários. E no site, nada. Obviamente. — Soul uniu as mãos. — Na noite desse mesmo dia, vi passar no noticiário que Enzo Monroe, morador solitário da rua Prince, havia sido internado no Westin Hills, e na curta entrevista de Sarah – a vizinha que ligou para a polícia por estar muito assustada com os berros de Enzo – a vi dizer que ele berrava coisas loucas e sem sentido.

Eu estava sozinho em meu quarto, assistindo ao jornal local noturno, quando ouvi Sarah dizer para uma repórter local o que havia ouvido de Enzo.

— Enzo costumava surtar e quebrar as coisas. Mas nada comparado àquela noite. Foi tudo em maior proporção. Os gritos, os pratos, copos, quebrados; talheres arremessados. Tudo se podia ouvir. E seus gritos como ”leitores fantasmas malditos”, “Galeno vai matar todos”, ”ele vive”, “ele vai pegá-los” Era muito alto, muito intenso. Tudo muito sem sentido.”

Sarah dissera para a jornalista. Eu desliguei a TV e comecei a remoer minha culpa. Enzo havia finalmente notado a falta de seus amados comentários.

— Se eu não tivesse transferido os comentários para o meu email, tudo aquilo não teria acontecido, ele ainda teria seus comentários que tanto prezava. A razão de sua escrita. Eu conheço Enzo o suficiente para saber que seu surto de ódio contra “leitores fantasmas” daquela noite, foi por que ele estava acostumado a receber vários comentários e naquele dia, houve apenas silêncio. — uma lágrima brotou no olho de Soul. — Alice poderia estar viva se eu não tivesse feito isso. Eu sei que é minha culpa. E é por isso que comecei a enviar dinheiro para o Westin Hills a fim de ajudar no tratamento de Enzo, usando o dinheiro da minha mesada, que não é tão pouco. Eram esses os boletos que eu havia recebendo em casa e também recebia as cartas de agradecimento da clínica. Mas nada nunca amenizou a minha culpa.

Elizabeth balançou a cabeça um tanto tonta.

— Se você tivesse comunicado às autoridades teria evitado muita coisa. — disse a delegada, umedecendo os lábios.

— Eu sinto muito. — disse Soul, cabisbaixo.

— Mas não se culpe por ter tentado ajudar um homem que precisava de ajuda. Você não tem culpa da loucura dele. — Marsh afirmou compreensiva. — Agora vamos à uma nova parte interessante da história.

Elizabeth sorriu triunfante, observando Soul.

— Como soube sobre a sala de bate-papo? Como soube que Galeno, Enzo, Anonimato, seja lá quem fosse, queria pegar sua irmã? Como conseguiu nos encontrar naquela noite no galpão? — perguntou a delegada, com seriedade e firmeza, e em seguida, lançou seu olhar para Elton, que permanecia quieto, ouvindo tudo. — Ah, querido zelador, querido ator, querido cúmplice. Eu também quero a sua parte.


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Notas finais do capítulo


Obrigada por terem vindo até aqui ♥