Corações Perdidos escrita por Syrah


Capítulo 45
45. O temporal nos alcança


Notas iniciais do capítulo

Olá, sejam bem-vindos outra vez! :)

Como prometido, outro capítulo fresquinho de CP pra vocês, haha, espero que gostem.

Boa leitura a todos!



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A VIAGEM ATÉ Wyoming foi longa, para dizer o mínimo. Além do tempo que levaríamos para alcançar Rock Springs, restava o fato de que o episódio com Justin havia tornado o clima um tanto pesado, e ainda que tentássemos amenizar isso com ocasionais provocações e algumas piadas internas, era inegável a atmosfera desconfortável que se apossara do impala desde então.

Dean parecia sentir o mesmo, embora buscasse não demonstrar. Acho que, àquela altura, eu já o conhecia bem o bastante para saber um pouco mais sobre a sua insistente mania de tentar amenizar as coisas; o loiro parecia sempre querer que os outros vissem tudo de uma perspectiva positiva, mesmo quando não havia nenhuma. 

Ao menos era o que parecia ser quando se tratava de Sam, Castiel, Bobby e, ultimamente, eu.

— No que está pensando? — Dean perguntou de repente, no momento em que ultrapassamos uma velha placa próxima à estrada anunciando um show de uma banda qualquer que ocorrera cerca de cinco ou seis meses antes.

Estávamos em um desagradável silêncio há vários minutos, portanto, agradeci mentalmente aos céus por um de nós ainda ter ânimo o bastante para quebrar o gelo.

— O mesmo de sempre, você sabe — respondi forçando um sorriso amarelo sobre uma voz cansada. — Sara, Remanescentes, meu pai, tudo isso... É tudo meio louco pra mim, sabe? Quero dizer, não é como se as coisas não estivessem ficando dez vezes mais estranhas cada vez que encontramos algo novo — Dean riu, concordando comigo. — Pois é. Mas, mesmo assim, eu sempre sinto que, por incrível que pareça, ainda não chegamos no limite. 

O loiro suspirou, balançando a cabeça e se mantendo em silêncio. Parecia literalmente esgotado, como se fosse possível sentir o quanto aquele caso estava exigindo dele — de todos nós. 

— Dean, o que diabos é o limite dessa coisa toda?

Dean era um homem forte. Os Winchester, no geral, eram assim; uma família inacreditável, capazes de superar a mais mirabolante das expectativas. Mas, se havia uma coisa que eu tinha entendido nas últimas semanas, era que manter os outros ao seu redor calmos era uma tarefa que requeria muito dos irmãos — especialmente de um deles. Dean era do tipo que sabia como te tirar do fundo do poço com um estalar de dedos, mas que inevitavelmente cairia dentro dele no processo. E era por isso que eu vinha evitando desabar na frente dele nos últimos dias; de que adiantava que me ajudasse, se fosse para se deixar despedaçar em sequência?

Eu me mantinha forte para evitar que o caçador ao meu lado quebrasse. Soa como se eu o estivesse ajudando, mas a verdade é que essa tarefa era a única coisa que continuava me mantendo sã nos últimos dias.

— Acho que você tem razão — Dean afirmou, me encarando por um breve instante antes de se concentrar na estrada novamente. — As coisas, por piores que estejam, ainda não atingiram o limite, isso é certo. E o pior mesmo é que sequer sabemos o que nos espera depois disso aqui, mesmo que a ideia de continuar no escuro esteja me matando por dentro — ele me olhou outra vez e seus olhos brilharam ferozmente com o efeito de suas palavras. — Mas não importa, M, porque nós sempre damos um jeito.

— De ferrar com tudo? — ironizei.

Dean revirou os olhos, sem conseguir segurar uma risada.

— De vez em quando, é, mas você entendeu o que eu disse — seus lábios se esticaram um pouco mais no que se revelou como um sorriso sincero. — Emma, somos caçadores, esse é o nosso trabalho. Salvar pessoas, caçar coisas...

— O negócio da família? — completei, citando o mantra esquisito que ele e Sam já haviam repetido para mim umas duzentas vezes.

— É, por aí — ele piscou, rindo um pouco. — Mas o fato é que o negócio da família é o que se encarrega de colocar as coisas nos eixos, todas as vezes. Não vai ser diferente agora.

Por mais que eu detestasse admitir, Dean às vezes tinha um maldito otimismo contagiante, capaz de superar qualquer resistência que meus pensamentos naturalmente pessimistas pudessem oferecer. E às vezes ele só te convencia de que todas as chances dariam errado, mesmo que você tentasse todas as combinações possíveis para a solução do problema. Era tudo uma questão de humor, eu acho.

— Espero que esteja certo, Dean, de verdade — concordei enquanto encarava a paisagem do lado de fora, um tanto desinteressada. Infelizmente, eu nem sempre podia me dar ao luxo de pensar positivo. — Eu detestaria estar dando tanto de mim por alguém inutilmente. — Admiti. — Como sempre, vamos dar um jeito, eu sei disso. Vamos só torcer pra que, no fim, não optemos pelo o pior dos jeitos.

Dean assentiu, me oferecendo um meio sorriso enquanto aumentava o volume do rádio. A música do momento era algum sucesso antigo do Kansas; a melodia alegre agora inundava o carro e parecia fazer parte do ambiente, não apenas como uma simples canção dentro de um impala antigo, mas como a trilha sonora de alguma saga épica que chega ao seu fim. Como Star Wars ou Game of Thrones — se é que essas obras algum dia terão um fim definitivo. Era divertido pensar nas coisas desse ponto de vista; eu e os irmãos, Castiel, Bobby... era engraçado nos ver como heróis que enfim alcançavam o o fim de uma jornada. Bom, nesse caso, o fim da minha jornada, mas não podia de jeito algum deixá-los fora disso — sei que jamais teria chegado até ali sem aquelas pessoas, e seria eternamente grata a elas por isso.

Depois de mais três canções e uma estação de rádio estática, meu corpo começava a implorar por proteínas outra vez. Estávamos no carro há pouco mais de quatro horas, e meu estômago roncava em protesto, ruidosamente. Por fim, ultrapassamos uma velha placa na estrada com os dizeres June's Best Burguer e a frase "A melhor gororoba do Novo Mundo".

Honestamente, foi o pior marketing que já vi na vida, mas a fome falou bem mais alto. Eu precisava de calorias. Muitas. E rápido.

— Olha, sei o que eu disse sobre as paradas pra torta e tal — cruzei as mãos em meu colo, ansiosa, encarando Dean de esguelha. O Winchester ergueu uma sobrancelha, surpreso, mas o brilho em seus olhos o entregava tanto quanto os grunhidos do meu estômago. — Ok, eu me rendo. Estou morrendo de fome. — Confessei, suspirando em desagrado.

Os lábios de Dean estalaram em aprovação.

— Achei que nunca fosse pedir! — disse, exibindo um sorriso presunçoso. — Que tal uma passada nesse tal June's? Parece ser um lugar bacana.

— Desde que tenha carboidratos e cerveja, não me importo se tem cinco estrelas ou meia ponta.

O Winchester assentiu, rindo enquanto aumentava a velocidade, fazendo um desvio rápido na estrada em direção ao bar.

— Você é quem manda, chefe.

Alcançamos o lugar em pouco menos de dez minutos, tempo suficiente para que meu humor começasse a se alterar por conta da fome. Dean não fazia mais que achar graça enquanto dirigia até o bar, caçoando da minha incrível habilidade (como ele fizera questão de chamar) de mudar de humor a cada sete segundos. Por fim, eu o mandei calar a boca e felizmente o idiota me deixou em paz pelo restante do trajeto. A verdadeira surpresa, no entanto — fora o fato de Dean ter me ouvido pela primeira vez na vida —, foi o bar em si. 

Podemos dizer que o June's era... um pouco mais sofisticado que o esperado.

Com suas paredes cobertas de verniz, quadros de astros famosos do rock e as cadeiras e mesas recém pintadas, devo admitir que o lugar bem que me surpreendeu. Tirando a péssima propaganda e a localização (a melhor gororoba do Novo Mundo, bem ali, no fim dele) preciso dizer que o ambiente realmente compensava.

— Surpresa? — perguntou Dean ao meu lado, notavelmente menos impressionado do que eu.

— Talvez. — Respondi com um meio sorriso. — De qualquer forma, não faz diferença, porque não vamos ficar pra aproveitar. — O sorriso do loiro murchou um pouco após minhas palavras, mas ele não discutiu. Dean sabia bem que não podíamos demorar ali, mesmo que isso não lhe agradasse muito. — Seja breve, está bem?

Ele revirou os olhos, mas concordou com um pequeno aceno.

— Combo extra gorduroso pra viagem? — sugeriu.

— Manda ver — pisquei para o loiro, que assentiu e se virou, caminhando na direção do balcão. — E quero doces, também! — gritei para ele, que riu e concordou outra vez.

Me virei, dando uma última olhada no bar antes de me dirigir até o estacionamento, onde o impala estava. Era estranho que um lugar como aquele tivesse um espaço para carros, mas eu é quem não ia reclamar — ao menos tinha privacidade. Me encostei no carro, encarando ao redor; não havia muitos outros veículos por ali, salvo alguns modelos antigos que eu não reconhecia e duas ou três motos. O cheiro de fritura e cerveja impregnava cada metro de terreno em um raio considerável, mas, de alguma forma, a combinação de todas aquelas coisas era até agradável.

Peguei meu celular, passando por algumas mensagens novas de Moira e discando o número de Sam. Tocou duas vezes antes de ele finalmente atender, com uma voz cansada:

— Emma? — o som de conversas e talheres batendo ao fundo indicava que o moreno também tinha decidido fazer uma parada para o lanche. — Tudo bem aí? O que foi?

— Ei, grandão. Não se preocupe, tudo ok — tranquilizei-o e o moreno suspirou, aliviado. — Só queria dar uma olhada em você, garantir que nada deu errado com o bebê da família, sabe como é. — A risada dele preencheu meus ouvidos e não pude evitar um sorriso. — Como estão as coisas por aí?

Outro suspiro, seguido de um pigarro baixo. Alguém gritou algo sobre fritas com sorvete do outro lado da linha. Eu franzi o rosto para o pedido bizarro, mas ignorei.

 Muito gentil da sua parte se preocupar, sério — disse ele sarcasticamente. — Já estou em Wyoming, dentro de uma ou duas horas devo alcançar Rock Springs — anunciou Sam, voltando ao modo automático. — Decidi fazer uma última parada antes de seguir viagem. E, falando nisso, onde vocês estão? Cadê o Dean? — ele fez uma pausa, parecendo pensar um pouco no assunto, então acrescentou: — Por favor, me diga que vocês não entraram em uma batalha sangrenta com apenas um sobrevivente ou coisa assim. Eu gosto de pensar que meu irmão ainda vive.

Foi a minha vez de cair na gargalhada, totalmente surpresa. Sam às vezes sabia ser bem engraçado, mesmo que o verdadeiro herdeiro do dom fosse o palhaço do seu irmão.

— É muito fofo você pensar que eu derrotaria o Dean em uma luta, porque, sabe... eu o derrotaria mesmo — nós dois rimos outra vez. Eu encarei a saída dos fundos do bar, imaginando que tipos gordurosos de proteínas sairiam dali em alguns minutos. Levou alguns segundos para que eu voltasse para a Terra depois disso. — Seu irmão está fazendo compras pra gente, compras demoradas — respondi por fim. Eu quase podia sentir o sorriso enorme de Sam do outro lado. — Já estamos no estado, também, mas vai levar mais umas quatro horas até Rock Springs.

— Então eu vou chegar primeiro — concluiu ele. — Nesse caso, vou ficar de tocaia até vocês me alcançarem. Me mandem uma mensagem assim que estiverem por perto, está bem?

— Você é quem manda. Só tome cuidado, sim? Estamos lidando com barra pesada agora, e eu detestaria ter que te salvar outra vez.

Sam concordou, soltando um engraçadinha para a minha pessoa e pedindo que eu e Dean nos cuidássemos, avisando que entraria em contato caso precisasse de ajuda. Nós nos despedimos e aproveitei para responder algumas mensagens antes de guardar novamente o celular.

Avistei quando Dean surgiu na porta dos fundos, com algumas sacolas na mão e algo que parecia um bolinho de açúcar entre os lábios. Apenas sorri, observando enquanto ele guardava as compras do mês no banco de trás e se virava para mim com um sorriso idiota no rosto.

— Tudo bem com o Sam? — perguntou ele.

Ergui uma sobrancelha.

— Como você...?

— Era ele ou aquela sua amiga gata de Los Angeles. E quando fala com ela você fica rindo igual uma adolescente de quinze anos com o primeiro namorado, portanto, concluí que só podia ser o meu irmão — eu semicerrei os olhos, fitando-o com uma expressão desconfiada. — O quê? Não é como se eu precisasse de um doutorado em criminologia pra juntar um e um. 

Dei de ombros, suspirando ruidosamente e encarando o céu.

— Sei lá, esses seus momentos esquisitos sempre me surpreendem.

— Momentos esquisitos? — repetiu o loiro, igualmente desconfiado.

Desviei o olhar, passando a encará-lo. Então esbocei um sorriso mínimo, significativamente malicioso.

— Surtos de esperteza — expliquei. — Esse tipo de coisa é tão incomum pra você... sempre fico intrigada.

Dean revirou os olhos, cruzando os braços e inclinando a cabeça para o lado, me encarando como se estivesse decidindo como lidar com a criança de baixa mentalidade que se encontrava bem ali à sua frente. 

— Engraçadinha. Muito mesmo. — Ele bufou contrariado antes de me olhar de um jeito sério e familiar. Sinceramente? Eu ainda achava muito engraçado o quanto ele e Sam eram parecidos de vez em quando, sem nem se darem conta. — Mas e aí, tudo bem?

— Por enquanto, sim. Sam tem alguns quilômetros de vantagem sobre nós, mas prometeu ficar de vigia até que o alcancemos — expliquei brevemente. — E considerando o horário e a ideia de que nenhum imprevisto vai nos incomodar durante o restante da viagem, meu palpite é que vamos chegar lá no início da noite.

Dean assentiu, devorando o que restou do que um dia já fora um pobre cupcake em suas mãos enquanto absorvia as informações. Fiz uma careta quando ele se atreveu a lamber os dedos, cada um deles.

— Você não tem modos? — perguntei, indignada.

— Você é algum tipo de caçadora britânica viciada em chá das cinco, por acaso? — ele rebateu, igualmente revoltado. Eu cruzei os braços, irritada. — Ótimo, pensei que não. Agora, será que podemos?

O loiro sinalizou em direção ao impala, indicando o óbvio. Eu bufei, contrariada, balançando a cabeça negativamente enquanto praticamente marchava até o carro. Reprimi a vontade de bater a porta com força exagerada, sabendo que aquilo poderia acarretar consequências bem violentas por ali — se tinha algo que eu havia aprendido nas últimas semanas, era que não se deve brincar com aquele maldito carro. Nunca. Dean mataria por aquela lata velha.

Assim que terminei de me ajeitar no banco do carona, algo aterrissou no meu colo sem aviso prévio. Eu olhei para baixo, surpresa, passando então a alternar o olhar entre a embalagem de canudos fini em minhas mãos e o Winchester ao meu lado.

— Trouxe seus doces — ele resmungou sem me encarar, dando partida no motor. 

— Canudos fini, hein? — retruquei, erguendo uma sobrancelha.

— Era a única porcaria açucarada que tinha lá dentro. 

Eu o fitei, sem entender completamente a cena. Dean revirou os olhos, acelerando enquanto ligava o rádio e deixava que o som pairasse sobre uma estação qualquer de rock clássico, disposto a me ignorar por um certo tempo. Lentamente, então, a sombra de um pretensioso sorriso cobriu meu rosto. 

— Eu sabia que ainda tinha algum resquício de humanidade aí dentro! — declarei.

— Cale a boca, Grace.

[...]

Cerca de duas horas mais tarde, nos encontrávamos já dentro da cidade, bem próximos do endereço onde Justin dissera que Sara estaria, juntamente com seus sequestradores. Apesar da ansiedade que parecia impregnada no ar ao nosso redor, eu tentava manter a pressão o mais distante possível me distraindo como podia — isso resultava na conversa que eu e Dean estávamos tendo naquele exato momento, algo que estava servindo (e muito) para afastar meus pensamentos do pior.

Mesmo se o tópico não fosse dos meus favoritos.

— Você quer me dizer que os Diurnos são tipo uns demônios da encruzilhada? — perguntou Dean após uma breve explicação minha sobre o antigo funcionamento do clã. Apesar disso e de todo o trabalho que tive para detalhar algumas partes, ele ainda não parecia ter entendido muita coisa. — Que são um bando de vampiros treinados fazendo pactos por aí, cedendo favores e...

— Eu não disse nada disso — interrompi o loiro, revirando os olhos enquanto a voz barulhenta de algum cantor de rock dos anos oitenta irradiava entre nós, escorrendo daquele maldito rádio continuamente pelas últimas oito horas. Deus, como eu queria que ele desligasse aquela coisa! — O que eu disse foi que os tratos foram casos raros que aconteceram em situações emergenciais. Você prestou atenção em alguma coisa, pelo menos?

Dean me encarou de soslaio, erguendo uma sobrancelha.

— Situações emergenciais, é?

Eu dei de ombros, sabendo que ele não estava comprando muito bem aquela história, mesmo que fosse a verdade. Dean me perguntara sobre o clã dos vampiros — o líder deles em especial, claro — e eu o estava pondo por dentro dos detalhes relevantes, pelo menos os que eram do meu conhecimento. Até então ele conhecia uma parte da história de Justin, embora ainda não soubesse como ela se entrelaçava à minha própria.

— Aquele clã fez quatro contratos durante toda a sua existência, e o último deles foi o que assegurou que um dos filhos do chefe da família Blake fosse entregue como forma de pagamento — expliquei sem conseguir esconder a pontada de raiva que se fazia presente em minha voz.

Eu detestava aquela história, principalmente por estar relacionada a alguém tão próximo, mesmo que esse alguém fosse Justin. Dean não entendia a razão de aquilo me irritar tanto, naturalmente, e nem tinha como saber. Afinal, como poderia? Como alguém associaria a imagem de Justin a algo que não fosse o líder frio e sarcástico dos Diurnos, após tê-lo visto fazendo tantas coisas cruéis e estúpidas? 

Ele nem sempre fora assim, mas era impossível adivinhar isso agora.

— Essa coisa toda entre vocês dois é muito bizarra — repetiu o Winchester pela décima vez nos últimos trinta minutos. — Quero dizer, o cara é um imbecil e nada justifica isso, mas tenho que admitir que ele teve uma vida de merda.

— Sim, eu sei bem — respondi enquanto encarava o teto do carro, absorta em pensamentos. — Justin só tinha doze anos quando os Diurnos apareceram pra levá-lo. A mãe dele até tentou esconder os filhos por algum tempo, mas eventualmente foram encontrados e, bom, o final dessa história você já conhece.

Os olhos de Dean eram fixos na estrada, mas seus ombros tensos e o semblante franzido indicavam que a atenção maior estava, na verdade, bem distante dali.

— E ele era... — o Winchester hesitou antes de continuar, parecendo não saber exatamente como terminar sua pergunta ou, ainda, se de fato queria uma resposta para ela. Por fim, suspirou uma única vez, utilizando de um tom baixo para repetir a frase: — Justin era um caçador antes disso? Antes dessa droga toda do clã e tal? — perguntou o loiro.

— Sim, ele era. Os Blake, no geral, são em sua maioria uma família composta de caçadores, mesmo que muitos deles sejam amadores — algumas gotículas de água começaram a embaçar o para-brisa naquele instante, anunciando a chegada da chuva. Observei enquanto o chiar incomum do rádio e o céu pouco estrelado e repleto de nuvens carregadas davam os primeiros sinais da tempestade que estava por vir. — Os pais de Justin foram os melhores Blakes que já conheci no ramo, além de serem os únicos que viveram o suficiente pra contar as próprias histórias. 

Dean assentiu, me observando com uma expressão familiar de quem entendia do assunto por experiência particular, e não era pouca. Seu olhar era, apesar da expressão branda, minucioso. Nós dois sabíamos bem dos riscos envolvendo aquela vida, e também o quão fácil era se perder dentro dela.

— Então, sobre Justin e o irmão, ambos eram caçadores, certo? — perguntou o loiro, interessado. Eu assenti, esperando que ele completasse a frase, porque com certeza tinha mais coisa ali, dava para ver nos olhos dele. — Vocês... bom, você sabe... — eu ergui uma sobrancelha, fingindo não entender. Dean revirou os olhos, grunhindo de frustração, provavelmente se autoflagelando pela própria hesitação. — Enfim, já caçou com eles alguma vez?

Um pequeno sorriso se formou em meu rosto. Em parte porque a pergunta trazia lembranças agradáveis à memória, e, também, porque era possível perceber, mais uma vez, a pontada de ciúmes por trás das palavras de Dean, e aquilo ainda me divertia bastante. Enquanto isso, a tempestade se intensificava ao nosso redor, trazendo alguns raios ao longe; os feixes de luz provocavam sombras escuras em nossos olhos, um simples prelúdio da tormenta que estava por vir.

— Eu e Alice caçamos com Justin algumas vezes, sim, embora seu irmão não gostasse tanto assim do trabalho em equipe. Na maior parte do tempo, éramos apenas nós três.

Dean me encarava com uma expressão de profunda curiosidade e um pouco de ansiedade no olhar, quase como se tentasse examinar cada mínimo detalhe em minhas palavras através daquelas esmeraldas.

— Eu sempre reclamava do fato de precisarmos lidar mais cuidadosamente com as missões, enquanto minha irmã e Justin preferiam simplesmente pular o planejamento e partir pra ação em si. — Dean sorriu. Nós dois sabíamos que ele entendia muito bem do que eu estava falando. — No geral, quando não estávamos brigando entre nós mesmos ou escapando pra festas do colegial escondidos, nós até que formávamos um time eficiente.

Eu sorri novamente quando a lembrança de um pequeno grupo preencheu minha mente, clara como a visão do presente. Um trio de adolescentes com tanto a se viver pela frente, completamente fascinados por um estilo de vida que, em pouco tempo, mudaria irreversivelmente tudo o que eles conheciam sobre o mundo em que viviam.

De repente, o frio do lado de fora pareceu invadir o carro de forma abrupta e implacável. Estremeci por baixo do casaco, mesmo sabendo que era um gesto involuntário e desnecessário.

— Deixa eu adivinhar, você era a melhor entre os três nas lutas? — Dean puxou assunto outra vez, provavelmente percebendo que eu havia me perdido em devaneios durante a nossa conversa. 

— Na verdade, era o Justin. — Eu disse, percebendo a expressão de Dean instantaneamente se fechar após isso, precisando lutar contra uma risada por conta da reação do loiro. — Quero dizer, talvez Alice fosse tão boa quanto ele, ou até melhor. Era difícil saber qual dos dois ganhava nesse quesito, eles eram sempre muito competitivos no assunto — eu encarei Dean de soslaio, dando um pequeno sorriso que o Winchester não retribuiu. — Um pouco como...

— Se você disser que Justin se parecia comigo eu juro que vou te jogar pra fora desse carro e você vai ter que alcançar a Sara andando — cortou-me o loiro, travando o maxilar. Ele não sorriu enquanto falava. — Não me compare com aquele cara, Emma.

Eu lutei contra a vontade de revirar os olhos naquele momento. Era inegável a raiva que Dean sentia de Justin, mas eu achava que algumas coisas geradas a partir daquele ódio eram um tanto exageradas.

Afinal, eu o estava fazendo um elogio, não estava?

— Enfim... — resolvi mudar de assunto antes que o clima ficasse desagradável, coisa que eu preferia evitar. — Eu conheço bem menos da história do que gosto de admitir. — Reprimi um suspiro frustrado, voltando a encarar a estrada borrada através do vidro embaçado pela chuva. — O que sei é que, quando os Diurnos apareceram, pretendiam levar o Blake mais novo, mas Justin se ofereceu no lugar do irmão — mordi o lábio, hesitando. Realmente detestava aquela história, e não era a única; Justin considerava qualquer menção ao assunto um tabu irrevogável, de modo que nunca discutimos aquilo diretamente. — Eles não se importaram, tudo o que queriam era um caçador novo e habilidoso daquela família, não importava qual. Levaram o primogênito de bom gosto.

— Por quê? — perguntou Dean. 

— E eu sei lá, acha que faz algum sentido pra mim também? — respondi enquanto o Winchester revirava os olhos para a minha resposta. — O porquê de um clã centenário de vampiros estar atrás de um caçador com outro propósito além de um extermínio lento e doloroso sempre foi um enigma pra mim, acredite.

Dean concordou, suspirando alto. Ele mantinha a expressão tão séria quanto antes, além dos nós dos dedos bracos pela força que usava no volante. Seu rosto estava franzido e a boca suprimida em uma linha fina quase invisível; eu até podia enxergar a fumaça escapando pelas engrenagens de seu cérebro, trabalhando com todo o afinco possível em busca de uma conclusão que fizesse qualquer sentido para aquela história.

Bom, se ele conseguisse algo assim, eu estava disposta a lhe dar os méritos por ser o primeiro a alcançar tal feito.

— O porquê de uma caçadora treinada se envolver com um vampiro quase alfa também é um enigma pra mim — disse ele, de repente, me encarando brevemente enquanto falava. A abordagem me pegou totalmente desprevenida.

Tossi um pouco para disfarçar a guarda baixa, desviando o olhar para a paisagem do lado de fora enquanto respondia. 

— Isso foi há muito tempo — minha voz tinha um tom amargo que eu sempre buscava evitar, mesmo que na maioria das vezes não obtivesse muito sucesso. — Justin era um cara decente antes disso tudo. Antes daquele clã envenenar sua alma e virá-lo contra mim e todos a quem ele amava. 

Meus olhos queimaram com a chegada repentina das lágrimas, acompanhadas das memórias que eu sempre empurrava para o canto mais obscuro dos meus pensamentos. Um flash de olhos azuis cheios do mais puro ódio direcionado a mim preencheu meu campo de visão, corroendo meu interior com aquela lembrança que eu tentava frequentemente esquecer.

Estamos em lados opostos agora. Você sabe que isso não vai acabar bem, ele dissera. Um de nós eventualmente se machucará feio no processo, e não posso dizer que estou tão disposto a levar uma bala por você agora quanto já estive um dia, amor.

Justin, não precisa ser assim! Você não é um monstro, e eles não podem te transformar em um sem a sua permissão. Por favor, desista disso enquanto ainda pode!

Não há como me transformarem no que eu já sou. Sinto muito, Emma, mas não pode me ajudar dessa vez.

Essas foram as últimas palavras que ouvi antes que ele desaparecesse do meu quarto, utilizando dos dons que sua nova família lhe dera. Depois daquilo, Justin e eu éramos inimigos declarados, e a Cidade dos Anjos era a nossa zona de guerra. Ele estava certo, obviamente; eu nunca pude salvá-lo de ter se tornado um monstro. Por isso, jurei a mim mesma naquela noite que, se não poderia salvar o garoto que eu amava, pelo menos tentaria afastar as vítimas que entrassem desavisadas em seu caminho.

— Emma. — A voz de Dean me resgatou do fundo de meus pensamentos, levando minha mente de volta a superfície, onde era seguro. Onde aqueles fantasmas não me alcançavam. — Sinto muito por vocês dois. Sei que se você gostava dele, devia haver uma razão, por isso detesto que as coisas não tenham ido como o planejado. — Ele me encarou e em seus olhos havia um brilho sincero de solidariedade, e, apesar disso, havia frieza também. — Só que você precisa superar isso, M. Justin não é mais o garoto pelo qual você se apaixonou um dia, sabe disso.

Mantive o rosto fixado na janela, na direção oposta, sem encarar o loiro enquanto respondi.

— Não se preocupe, não é como se eu não me lembrasse disso todos os dias. — Afirmei séria. Aquela realidade não era mais um problema para mim, mesmo que seus reflexos ainda ousassem me incomodar depois de tantos anos. — Nós tivemos algo um dia, e poderíamos ter dado certo, mas esse é um futuro distante e impossível agora, por inúmeras razões.

Por alguma razão, Dean sorriu para mim. Vi seu rosto pelo reflexo opaco do vidro, não me segurando ao virar para encará-lo também.

— Muitas coisas ao seu respeito não faziam sentido pra mim, mas acho que entendo a maioria agora — ele disse, sem sinal de ironia em sua voz, nem nada do tipo. — E gosto da maioria, também.

Eu retive uma risada, balançando a cabeça enquanto escondia um sorriso.

— Às vezes não nos resta nada além de evoluir e superar, Dean. — Eu disse em meio a um suspiro baixo. — Mas isso não significa que o passado ficou completamente no passado.

Dean deu de ombros. Ele sempre soube que eu e Justin continuávamos nos encontrando após todos aqueles eventos, mesmo que sem qualquer romantismo depois disso. Muitas das vezes eu estava tentando matá-lo, mas na maioria delas eu só queria informação.

— Não se preocupe, Emma. Não é como se fosse a coisa mais chocante do universo — o loiro disse com um sorriso escondido no canto dos lábios. — Sam já dormiu com um demônio, então, acho que a categoria vampiro não chega nem no pódio das surpresas.

Fiquei feliz por ele ter mudado de assunto, eu não queria que a atmosfera ficasse ainda mais pesada entre nós por conta daquele diálogo. Mesmo assim, por um breve momento, eu juro que quase engasguei com meu próprio oxigênio.

— Ele o quê?

O Winchester riu da minha reação, nem um pouco surpreso, balançando a cabeça enquanto eu o encarava com a boca tão escancarada quanto um buraco negro.

— Longa história. — Respondeu sem nem se incomodar com o fato de eu ter surtado por um ou dois segundos. — Nem pergunte, sério.

Eu arquejei, chocada. Levou alguns segundos para que eu me recompusesse, mas acabei assentindo, cedendo em meio a um bocejo repentino e demorado. Sam teria de me contar algumas histórias bem interessantes depois, com toda a certeza, mas por agora parecia que meu cérebro tinha decidido virar mingau.

Dean me observou por um momento, franzindo o rosto quando nossos olhares se encontraram, parecendo um tanto impressionado, mesmo que eu não entendesse o motivo para isso.

— Você devia descansar um pouco, parece bem acabada — disse ele, me fazendo rir, provavelmente por causa do sono.

Sono. Eu podia sentir os primeiros sinais do cansaço chegando até mim, lentamente consumindo a adrenalina que eu pensava que seria suficiente para toda a viagem. O açúcar e cafeína provenientes das balas e energéticos que Dean comprara para nós no June's finalmente começavam a falhar e, aos poucos, como em um flashback monótono e tedioso, eu senti meu corpo ceder também.

Curiosamente, o Winchester ao meu lado parecia bem mais revigorado do que eu.

— Por que você não parece nem um pouco cansado? — eu perguntei, levemente irritada por ele ser aparentemente mais resistente que eu ao uso de drogas lícitas. 

A chuva agora despencava torrencialmente do lado de fora do carro, bem mais forte que antes, ou talvez fosse apenas a exaustão falando mais alto em cada célula do meu corpo, forçando minha consciência a um canto escuro e remoto da minha mente, onde ela pudesse enfim conseguir algum descanso. 

Dean sorriu para mim, me observando com uma expressão solidária. Ele tinha um sorriso muito bonito, por que eu nunca tinha lhe dito isso antes?

— Te acordo quando chegarmos lá. — Foi o que ele enfim respondeu, abaixando o volume do rádio e voltando a encarar a estrada.

Aquela foi a última coisa que vi antes de mergulhar nas sombras do meu subconsciente e apagar completamente.


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Notas finais do capítulo

Resolvi reservar esse capítulo a finalidade de explicar (a quem ainda tinha certas dúvidas) um pouco da relação entre Emma e Justin, além de contar sobre a história do clã dos vampiros pra vocês. Espero que tenham entendido e, principalmente, gostado!

O que acharam desse episódio?

No próximo capítulo: Emma e Dean finalmente chegam ao local para onde Sara fora levada. Agora, nossa dupla precisa se reunir com Sam e, juntos, resgatar a herdeira dos Remanescentes antes que seu próprio clã a mate. Mas há mais obstáculos no caminho, e Emma precisará ser ainda mais forte a partir de agora. O que mais o destino irá exigir de nossa caçadora?

Até mais, guys!



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