Corações Perdidos escrita por Syrah


Capítulo 35
35. Três coisas que não permanecem escondidas




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A ATMOSFERA DO cômodo havia se tornado consideravelmente desconfortável.

Nenhum dos irmãos disse uma palavra sequer. Dean e Sam permaneciam impassíveis, atentos à situação, porém inertes. O olhar incrédulo e vacilante de Sara sobre mim denunciava que seus pensamentos naquele momento não eram dos mais agradáveis. Não que eu pudesse culpá-la, mas sabia que não tinha muito o que fazer a respeito.

Procurei não desviar o olhar, encarando a garota de maneira determinada enquanto suas íris castanhas assumiam um tom gélido e examinador. De repente ela se levantou em um ímpeto, dando alguns passos na minha direção e cerrando os punhos.

— Sara — a voz de Dean veio de algum lugar bem próximo, baixa e fria, um claro sinal de alerta. Eu senti a presença do Winchester em minhas costas e não pude evitar um suspiro frustrado.

Qual é, ele achava que eu estava com medo de uma adolescente? Ela podia ser uma lobisomem, mas eu era uma das melhores caçadoras da Califórnia, não estava em desvantagem alguma.

— Por que não? — Sara perguntou em um sussurro, ignorando o aviso de Dean e soando um tanto desolada. — Depois de tudo o que contei a você sobre os clãs, meus pais, Adam — sua voz vacilou um momento, incapaz de soar coerente diante de seu semblante arrasado. — Eu pensei... — ela não terminou a frase, seus lábios estavam trêmulos demais para continuar.

Sendo sincera, eu não a culpava, era realmente um banho de água fria sem qualquer aviso prévio. Ainda assim, não era como se minha concordância naquela história toda fosse algo óbvio. Primeiro, estávamos falando dos Remanescentes — e se tudo o que Sara acabara de contar fosse realmente verdade, não havia muito o que eu pudesse fazer para ajudá-la sem colocar a minha cabeça a prêmio também. Segundo e não menos importante: Sara era uma lobisomem; e não qualquer lobisomem, mas justamente o que estivera no radar do meu pai nos últimos meses. Considerando esse último fato em específico, as palavras de Castiel de semanas antes — quando estávamos reunidos com os irmãos no parque florestal de Denver, à procura de pistas sobre meu pai próximas à montanha — de repente dançaram em minha cabeça:

Novos ataques de origem licantrope foram registrados na cidade. Pode ser que pertençam a outro lobisomem, claro. Mas, Emma, saiba que o mais provável é que, você sabe... o mesmo lobisomem de antes...

Tenha sobrevivido, feito meu pai sangrar até a morte e agora voltou a comer corações humanos, eu tinha completado.

Eu não sabia o que pensar agora, exceto que, se Sara fosse a responsável por aquilo, era melhor que não houvesse sido estúpida o suficiente para vir até mim por livre e espontânea vontade, e ainda por cima pedir por ajuda. Dito isso, eu esperava que ela pudesse esclarecer algo a respeito do suposto ataque.

A garota me olhava atentamente, à espera de uma resposta. Respirei fundo, fixando meus olhos nos seus antes de falar.

— Você está literalmente sendo caçada por uma organização sobrenatural — comecei, arrancando um suspiro decepcionado de seus lábios. Ela sabia bem onde aquela explicação terminaria. — Você os conhece bem mais do que eu, Sara. Por que acha que a minha ajuda mudaria alguma coisa pra você?

Ela respirou fundo, parecendo um tanto exasperada. Fechou os olhos por um momento, então os abriu e me fitou com uma expressão séria.

— Não estou dizendo pra você invadir a sede e clamar a minha liberdade, Emma — a garota cuspiu as palavras com uma irritação clara, embora contida, como se estivesse se segurando para não ir mais longe. — Tudo o que eu quero é que me ajude a tirar Adam da jogada. Quero dizer, distrai-lo, fazer com que me esqueça de vez, sei lá — ela rapidamente se corrigiu ao notar meu olhar sobre o seu. — Eu só não tenho como manter um maldito rastreador longe por muito mais tempo. E considerando que você é a filha dele e está em uma busca cega pelo seu paradeiro há meses, imaginei que não fosse ver problemas em colaborar comigo.

Balancei a cabeça negativamente, cruzando os braços. Sara de repente parecia bem menos confiante; ela não contava que eu recusasse ajudar, isso era óbvio, especialmente depois de mencionar meu pai no assunto.

— Imaginou bem errado, nesse caso — respondi friamente. — Não tenho interesse algum em me envolver com os Remanescentes outra vez, sinto muito.

Sara deu mais um passo em minha direção. Dessa vez eu recuei, determinada a deixar claro o meu ponto.

— Mas... seu pai está trabalhando pra eles! Eu posso te ajudar a encontrá-lo! — seu tom era suplicante, mas fiz questão de negar rapidamente.

— É engraçado você dizer isso — retruquei, sentindo meu sangue esquentar um pouco. Sara franziu o rosto, parecendo confusa com meu comentário. — Ele não estava atrás de você há meses? — perguntei friamente. Ela assentiu devagar, sem entender. Suspirei enquanto buscava pelas palavras certas. — Ele foi atacado por um lobisomem nesse meio tempo, sabe? — completei. — Só é estranho o seu interesse pelo paradeiro agora.

O estado de confusão durou por mais alguns segundos, até que ela pareceu enfim entender. A garota puxou o ar com força, arregalando os olhos e me encarando como se de repente houvesse se dado conta de algo terrível. Eu não sabia dizer se a expressão em seu rosto era de ofensa ou horror.

— Atacado? — repetiu, incrédula. Seus olhos se estreitaram enquanto me examinava com cautela. — Emma, você não acha que eu...? — Sara deixou a frase no ar, hesitante. Meu silêncio foi suficiente para sanar suas dúvidas. — Tá de brincadeira? Eu nunca ataquei ninguém na vida! — protestou. Seu tom havia se elevado consideravelmente e ela agora parecia realmente zangada.

Dei de ombros, não acreditando muito naquilo. Ela era uma lobisomem, qual é, precisaria arranjar uma desculpa melhor.

— O que me garante isso?

— Talvez o fato de que eu tenha nascido em uma organização da minha própria espécie? — respondeu com sarcasmo, sua voz subindo outra oitava. — O que acha que fazem com os jovens do clã? Pensa que colocam eles em campos de batalha pra lutarem entre si até restar um único sobrevivente? — Sara parecia realmente ofendida. Ela cerrou os punhos ao me encarar, não se incomodando em conter o próprio tom desta vez. — A primeira coisa que um remanescente aprende quando criança é a lidar com a própria natureza, Emma, justamente para que não ataque humanos. Eu sou capaz de controlar as minhas transformações desde que tinha nove anos. Alguns conseguem até antes disso!

— Isso é impossível — protestou Dean, surgindo de repente na conversa e surpreendendo a nós duas. — Lobisomens não são capazes de controlar as próprias transformações, nunca foram.

Sara sequer piscou.

— Você convive frequentemente com um anjo e já presenciou seu irmão ser possuído pelo Diabo em pessoa — rebateu sem pestanejar, os olhos dourados faiscaram rapidamente na direção do loiro, desafiando-o a contestá-la. — Além disso, já conheceu a Morte pessoalmente, e literalmente também — eu arregalei os olhos, chocada, mas fui deliberadamente ignorada por ambos. Sarah continuou: — Imaginei que coisas banais como transmutações licantropes controladas não fossem mais te surpreender tanto assim, Winchester.

Dean fechou a cara, parecendo não gostar da resposta. A garota deu um sorriso displicente, inclinando o rosto para o lado sem dizer mais nada.

— Certo, você tem um ponto — ele por fim concordou, embora claramente a contragosto. — E como vocês fazem então? — continuou, perpetuando a dúvida que certamente incomodava a todos ali. — Você sabe... pra se alimentarem?

Lobisomens morriam caso não se alimentassem corretamente após um certo período. Então é claro que o Winchester — assim como todos ali — já havia sacado o óbvio: os Remanescentes podiam ser bem treinados, ensinados e todo o resto, mas no fim das contas continuavam devorando corações humanos, independente de todo o resto.

— Hospitais. Bancos de doação de órgãos. Às vezes até necrotérios — Sara respondeu prontamente, sem hesitar. Dean fez uma careta ao ouvir a última frase, mas não comentou nada. — Podemos ser selvagens em alguns aspectos, mas não somos completos animais. Um remanescente não machuca um humano, é a nossa lei mais importante e é estritamente proibido.

— Não parecem ter visto problema em matar um semelhante — Dean replicou secamente. — Eu não sei você, mas a vida de um humano nesse caso teria um valor bem menor que o meu próprio sangue. Não é assim que vocês se tratam lá dentro?

Sara engoliu em seco, dando a ele um olhar tão frio que seria capaz de causar uma provável hipotermia instantânea. Suspirei. Apesar da gravidade dos fatos, ainda tínhamos o assunto principal em aberto, e eu fazia questão de resolvê-lo por completo antes de deixar que a lobisomem adolescente e o caçador iniciassem uma briga provavelmente mortal na minha frente.

— Então, a respeito do meu pai... — eu rapidamente interrompi os dois, ganhando novamente a atenção de Sara. Dean não pareceu feliz por ter sua discussão cessada daquela forma, mas não disse nada, apenas me encarou irritado como sempre fazia. — Como explica essa sublime coincidência? — perguntei, me referindo ao ataque que meu pai sofrera durante sua busca pelo paradeiro da garota sentada à minha frente. — Não acredito em carma, Sara. Você precisa concordar comigo que é bem estranho alguém estar à procura de um lobisomem específico e acabar atacado por outro que não seja seu alvo, justamente nesse meio tempo. Não é surpresa que eu não acredite no que você me diz.

Ela assentiu, fechando os olhos por um instante e respirando fundo.

— Sim, bem, acho que posso tentar te convencer quanto a isso — ela franziu o rosto, séria, parecendo pensar em algo. — Quando foi que esse ataque aconteceu mesmo?

Cruzei os braços, voltando a me encostar na parede, pensativa.

— Há alguns meses — respondi. Honestamente, parecia ter sido há uma eternidade. — Próximo a uma das reservas florestais em Denver.

O rosto da garota se iluminou automaticamente. Ela me encarou e o brilho estranho em seu olhar me deixou desconfiada, eu não sabia dizer o que Sara estava planejando e aquilo me irritava profundamente.

— Sei onde é isso, foi meu esconderijo durante semanas — foi o que ela brilhantemente respondeu, me fazendo erguer uma sobrancelha. Minhas desconfianças não pareceram abalar Sara, que continuou tranquilamente com sua explicação: — Pela data que você está me dando, eu suponho que se refira a época em que contrataram Adam. Os Remanescentes haviam acabado de descobrir sobre o meu paradeiro, mas não iam arriscar mandar alguém atrás de mim sem ter a certeza de que a pessoa poderia me rastrear novamente — seu semblante se fechou por um momento, quando ela pareceu se lembrar de algo. — Eu escapei da primeira visita do seu pai por sorte, já que estava atrás de comida na época e não me mantinha parada. Acho que meu clã não gostou muito disso. Alguns dias depois eu retornei ao esconderijo e descobri que tudo havia sido destruído. Além disso, eles tinham montado um cenário de carnificina pra mim — contou, pesarosa. — Trucidaram corpos de animais e deixaram para que eu encontrasse, perto do pé da montanha — meus olhos se arregalaram ao perceber do que ela estava falando. — Acho que foi um aviso. De qualquer forma, depois de ver aquilo eu soube que não poderia mais ficar ali e tratei de fugir. Não tive coragem de remover os corpos, tive medo de que um segundo a mais naquele lugar resultasse em tragédia.

Instantaneamente me lembrei do dia em que voltara à montanha com Sam, logos após termos sido resgatados das garras do Wendigo; nós havíamos encontrado diversos corpos mutilados e sem coração, juntamente com um pingente do meu pai. Na época, eu estava desesperada com a ideia de ele ser uma das vítimas, mas acabei descobrindo que eram só de corpos de animais. Agora, Sara estava dizendo que aquilo não passava de uma mensagem passada a ela através de seu próprio clã.

Meu coração se apertou com a ideia de que meu pai estivesse envolvido naquele show horrendo. Um frio terrível se apoderou do meu estômago, causando uma ânsia profunda que fez com que eu automaticamente me inclinasse para frente.

— Emma? — Dean já estava ao meu lado, segundo meu braço e me encarando com preocupação. Como ele se movia tão rápido?

Eu me sentia tonta e o cenário à minha frente oscilava, mas obriguei meu cérebro a se concentrar.

— Estou bem — foi o que respondi, sem me incomodar em esconder a voz trêmula. Brilhante, Emma, eles com certeza caíram nessa, pensei. Encarei Sara, que me observava com certa solidariedade. O sentimento em seus olhos foi o suficiente para que eu sentisse raiva de mim mesma por estar sendo tão fraca. — Continue — pedi, a garota assentiu.

— Sei o que está pensando — ela disse enquanto me olhava diretamente. — Mas não acho que Adam seja responsável por aquilo. O motivo de ter ido à cena, e eu tenho certeza de que ele foi, era justamente examinar o local atrás de pistas que posteriormente pudessem levá-lo até mim — ela comentou, pensativa. — Acho que ele deve ter encontrado algo. Do contrário, eu definitivamente teria mais tempo para me esconder do que tive nas últimas semanas. Tem sido um inferno, a propósito — acrescentou categoricamente.

— Em outras palavras — continuei, indiferente, mas a verdade era que me sentia como se guardasse um furacão dentro do estômago —, você não tem culpa de nada.

Sara assentiu sem hesitar. Ela parecia usar o pouco de coragem que lhe restava para mostrar que estava sendo sincera.

— Sei que pode ser difícil acreditar, mas eu nunca machuquei uma alma viva — respondeu com firmeza. — Eu não suportaria viver comigo mesma se fizesse isso.

Eu suspirei. Era difícil considerar as alternativas, levando em conta que todas elas pareciam apontar para Sara como culpada. Porém, estranhamente eu sentia que a jovem falava a verdade, por mais desesperada que sua atitude pudesse parecer. Ainda não era razão para que eu me jogasse de cabeça em uma missão suicida por sua causa, mas devo admitir que era um começo.

Eu descruzei os braços, olhando diretamente para a adolescente. Havia algo naquelas brilhantes orbes castanhas que me deixava intrigada e ao mesmo tempo confusa. Era quase como se Sara possuísse um campo gravitacional próprio e único, de modo que todos ao seu redor parassem para admirá-lo em sua presença.

Será que ela valia a pena o benefício da dúvida? Eu estava prestes a descobrir.

— Me dê só um motivo pra que eu te ajude nisso — pedi em um tom calmo. — E por favor, use algo mais convincente do que a fábula do papai desaparecido.

Sara de repente sorriu; um sorriso frio e sem qualquer resquício de humor. Aquela expressão não combinava em nada com seu rosto delicado e sereno, o que só a tornava incontestavelmente assustadora.

— Max — respondeu a garota calmamente.

Eu franzi o rosto. Ela iria apelar para a morte do pai? Se sim, já poderia contar como causa perdida.

— O quê?

— Meu pai, Maxwell — repetiu, agora me encarando diretamente. Eu podia jurar que seu olhar me examinava minuciosamente, de dentro para fora. — Onze anos atrás, depois de Alice. Você prometeu, Emma. Ou talvez tenha esquecido?

Não sei se foi pela força daquelas palavras ou pela forma como foram ditas, mas confesso que até então não me lembrava de nada e não fazia ideia do que Sara podia estar se referindo. Contudo, o brilho em seus olhos deixava claro que era algo sério, e é claro que a jovem sabia qual seria o meu gatilho de memória.

Depois de Alice. Era tudo o que eu precisava, e logo as lembranças já eram cristalinas em minha mente, como a água de um riacho ou qualquer besteira poética que se possa pensar.

— Não acho que esqueceu — ela disse tais palavras calculadamente. Aos poucos, a antiga pose de adolescente superconfiante voltava aos eixos. — Eu esperava que não.

Dei alguns passos em sua direção e ela automaticamente recuou na mesma proporção. Um brilho diferente percorreu seus olhos cor de mel, e acho que eu conhecia aquele sentimento: medo.

— Como você sabe disso? — perguntei friamente. — Como pode saber?

Era possível sentir a presença de Dean apenas alguns centímetros atrás de mim. Sam, que estava mais perto de Sara que qualquer um de nós, franziu o rosto diante do rumo que a conversa havia tomado. Estavam em território desconhecido agora; ele e Dean.

Sara respirou fundo, recuperando a postura e me encarando fixamente.

— Minha mãe me disse. — Revelou sem rodeios. — Ela disse que eu podia contar com você caso algo desse errado nesse caos todo, e é claro que daria. Meus pais já deviam saber disso.

— Do que ela está falando, Emma? — Dean perguntou, completamente perdido.

Eu não pretendia responder, e de qualquer forma, não sei se conseguiria — estava começando a me sentir um tanto catatônica ali. Mas não tive muita escolha, pois Sara foi mais rápida:

— Ela fez uma promessa a meu pai onze anos atrás, por causa da irmã — disse séria, sem fazer questão de retribuir o olhar do loiro. — Não sei exatamente o que discutiram, mas foi sério o suficiente pra que meus pais a considerassem de confiança caso algo acontecesse à filha deles, mesmo depois de tudo.

E era isso. Enfim, os detalhes finais haviam sido jogados no ventilador. Nas últimas duas horas, não havia tido uma única parte restrita da minha vida que Sara não houvesse desenterrado e deixado no ar para que os irmãos questionassem livremente.

— "Depois de tudo"? — Dean perguntou, não necessariamente para Sara, pois eu sentia seu olhar esmeralda cravado em minhas costas. — Por que estou sentindo que tem um pedaço de informação faltando nesse quebra-cabeça? E que história é essa de "irmã"? — Ele soava tão acusatório quanto eu imaginava que pretendia, a repreensão parecia escorrer de seus lábios juntamente com as palavras. — Emma, o que você não está nos contando agora?

Eu não respondi, até porque estava atônita demais para isso. De repente parecia que o ar fugia de meus pulmões e que as paredes ao meu redor se moviam contra mim, me esmagando lentamente. Eu sentia o mundo girar em um ritmo violento e sabia que estava prestes a desmoronar por isso. Mas eu não podia, de modo algum; precisava me manter firme, mais do que em qualquer outro momento.

Eu não havia desabado antes, e definitivamente não faria isso agora.

— Eu preciso de um minuto — declarei em um estado robótico, ciente da atenção do trio sobre mim. — Preciso... pensar.

— Emma? — eu senti os dedos do Winchester mais velho tocarem delicadamente meu ombro, mas me desvencilhei com agilidade. Por algum motivo, minha pele parecia queimar sob sua mão. Foi doloroso.

Então eu deixei a sala rapidamente sob os olhares apreensivos dos irmãos e a expressão indiferente — embora indiscutivelmente avaliativa — de Sara. Eu sabia que aquela atitude só resultaria em mais dúvidas e questionamentos, mas não me importava com aquilo no momento. Eu só queria fugir dali; precisava escapar do sentimento esmagador que havia se apoderado de mim no momento em que a represa de memórias havia estourado.

Me dirigi aos fundos da casa, ignorando a sensação insana de que a gravidade me puxava para baixo com muito mais força que o habitual. Caminhei em passos largos até o primeiro local afastado que vi; o celeiro de Bobby. Ele estava trancado, obviamente, mas não fiz questão de entrar, apenas me sentei nas escadas em frente à entrada e deixei que meu corpo enfim deslizasse em direção ao solo e tocasse os degraus. Parecia difícil respirar, mas eu estava me adaptando aos poucos, como sempre fazia.

Olhei ao redor por um instante, constatando minha solidão, antes de afundar a cabeça em meus joelhos e suspirar pesadamente. Eu sentia uma vontade avassaladora de gritar ou socar algo. Com força.

Por que tudo aquilo estava acontecendo comigo? Por que todas as lembranças precisavam vir à tona justo agora? E por que parecia que todo o meu progresso nos últimos meses não havia passado de uma simples ilusão? Pelo amor de Deus! Eu sei que a vida de um caçador passa longe dos padrões de normalidade, mas qual é! As coisas estavam indo para outro nível agora. Eu gostaria de nunca ter sequer ouvido falar desses clãs estúpidos. Infelizmente, minha vida parecia amarrada a eles em todos os aspectos, especialmente os mais desagradáveis.

A torrente de memórias havia chegado, e junto a ela alguns detalhes que até então não haviam feito muito sentido. Agora as coisas se encaixavam. Como por exemplo, na manhã em que eu retornara com Sam à montanha e havíamos encontrado os corpos, além da gigantesca pedra movida por sobre a armadilha que havia nos capturado. Na época, parecia inacreditável que uma única criatura houvesse sido capaz de mover algo daquele tamanho, mas refletindo melhor, por que um clã de criaturas com força sobre-humana não seria o suficiente para tal feito?

Me lembrei do episódio com a raiz Oblivionem. As palavras de Sam vieram à mente, claras como o dia: "É uma raiz famosa, não porque faz com que as pessoas percam a memória, mas porque seu efeito é bem mais complexo que esse. Ela age diretamente na parte do cérebro que guarda informações, excluindo uma em especial."

Ela apaga da sua mente o que você mais quer, o seu desejo mais forte no momento, ele dissera.

Haviam tentado me impedir de prosseguir com a minha busca, e agora eu sabia bem quem "eles" eram; os Remanescentes. Era surreal que estivessem envolvidos nessa história toda. Eu não conseguia acreditar que meu pai havia topado um acordo com aquele clã, especialmente considerando tudo o que haviam feito minha família passar. E o pior de tudo, ele havia comprado a raiz, provavelmente ciente de seu uso posterior. Ele tinha parte naquilo tanto quanto aquele clã estúpido. Eu me sentia enojada só de pensar no assunto.

Meu pai. Adam Grace. A pessoa pela qual eu mais ansiava encontrar, havia protagonizado todos os obstáculos que eu tinha encontrado pelo caminho; ou pelo menos a grande maioria. Ele havia feito um trato com o clã em segredo. Ele tinha comprado a Oblivionem. Meu pai sabia da minha procura pelo seu paradeiro e mesmo assim tentou interromper minha busca, de propósito, sabendo que eu perderia o foco por sabe-se lá quanto tempo. E tudo isso por um motivo óbvio que eu vinha negando há semanas: ele não queria ser encontrado.

A questão era: por quê?

Era inacreditável como sua imagem havia mudado para mim nos últimos cinco minutos. Eu quase sentia vontade de encontrá-lo agora mesmo somente para gritar o quanto eu havia passado a odiá-lo. Como ele podia ter feito tudo aquilo comigo? Me impedir de encontrá-lo ao ponto de quase apagar sua lembrança da minha memória. Sua própria filha.

Talvez os Remanescentes não fossem os vilões, afinal.

De repente, um som característico de passos chamou a minha atenção; alguém se aproximava. Automaticamente me encolhi um pouco mais na posição em que estava. Eu não queria falar com ninguém por enquanto, mas sabia que era inútil — cedo ou tarde eu teria que juntar os pontos e revelar a verdadeira história, e quanto mais cedo isso acontecesse, melhor.

Mas, para a minha total surpresa, minha companhia não disse uma palavra sequer. Ela apenas se sentou ao meu lado, ficando completamente quieta e deixando que o silêncio tranquilo do ambiente nos envolvesse. Vez ou outra um som de pássaros ou um motor de carro ao longe quebrava a monotonia, mas fora isso não havia um som sequer se propagando por ali.

Após alguns minutos de calmaria, ouvi um suspiro suave, seguido de um pequeno sopro — aquele que você ouve sempre que alguém toma fôlego antes de dizer algo. Minha companhia havia decidido se pronunciar. Eu, por outro lado, permaneci imóvel, apenas esperando por suas palavras, que de certa forma pareciam vir se arrastando por sua garganta.

— Você está bem? — perguntou, sua voz vinda de algum lugar bem próximo. Sacudi os ombros, dando uma risada breve e sem humor, não tardando a reconhecer meu companheiro. — Ok, pergunta idiota, eu sei. Mas é que perguntar sobre o tempo pareceu pior ainda, sabe como é.

Ergui o rosto lentamente, mirando seus olhos. As íris escuras de Dean me observavam com atenção e sua expressão denunciava que estava preocupado com algo, ainda que tentasse inutilmente esconder. Esfreguei os olhos, mas felizmente estavam secos; acho que não havia mais lágrimas para derramar. A verdade é que elas haviam parado de descer há um bom tempo, e de certa forma isso era tranquilizador, por mais que fizesse com que eu me sentisse estranhamente vazia às vezes.

— A pergunta sobre o tempo seria mais fácil de responder — falei, qualquer resquício de humor que eu pretendia usar simplesmente não saiu na frase.

Dean deu um sorriso amarelo, assentindo. Seus olhos, que naquele momento pareciam brilhar em um tom profundo de verde, se fixaram no horizonte, enquanto seus lábios se moviam para pronunciar a frase que eu menos ansiava ouvir:

— Precisamos conversar, M.

Concordei roboticamente. É, acho que estava na hora do meu parceiro saber de algumas coisas.

— Eu sei, mas é tudo muito complicado — admiti, sentindo um nó se formar em minha garganta. — Eu preferia não ter que contar as coisas a vocês desse modo, mas acho que Sara não me deu muita escolha.

O Winchester assentiu novamente.

— Você sabe que uma hora vai ter de voltar lá e falar com ela, né? — sua voz soou calma e natural, como se estivesse me contando um simples fato, do tipo "O céu é azul, você sabe, né?".

Eu ergui o rosto apenas o suficiente para retribuir o olhar daquelas íris verdes com a mesma intensidade.

— Saia, Dean — respondi. Não soou seco, rude, tampouco frio ou qualquer variação disso. Era só um simples pedido, eu queria ficar sozinha. — Eu vou voltar pra lá e contar tudo o que vocês quiserem saber, não tem mais sentido algum esconder. Mas agora eu só preciso de um tempo, então só... saia. — Abracei um pouco mais os joelhos, mirando o solo arenoso que se estendia à minha frente. — Por favor — completei, baixo demais para que ele ouvisse.

Mas o loiro não parecia muito disposto a colaborar.

— E te deixar aqui remoendo as mil e uma maneiras de como sua vida se tornou um inferno em tão pouco tempo? Não, valeu. — Tarde demais, pensei, mas me perguntei como ele sabia daquilo, até me lembrar com quem eu estava falando.

Um Winchester. A família que sabia e entendia o significado de tudo o que eu estava passando. Eles haviam passado por um inferno ainda pior que o meu, literalmente.

Acenei negativamente, sentindo um gosto ruim na língua ao falar:

— Minha vida está um inferno, Dean. Eu simplesmente aceitei isso, mas prefiro refletir um pouco mais o processo — comentei, mais para mim mesma que para ele. — Sozinha, de preferência.

Desta vez meu tom foi um pouco mais rude, mas o loiro não se abalou. Pelo contrário, seus olhos se fixaram em mim como presas, se negando totalmente a me abandonar. Ótimo, eu precisava mesmo da companhia da pessoa mais teimosa da face da terra.

— Ninguém naquela sala entende completamente as coisas pelas quais você está passando agora — ele disse. Suas mãos se moveram em um ímpeto e ele tocou meu ombro, enviando pequenas descargas elétricas pelo meu corpo. — É por isso que nenhum de nós está julgando sua reação.

— Minha reação — repeti com desdém. — É claro, nenhum de vocês pode me julgar por achar ruim que meu pai tenha se aliado a uma organização sobrenatural em prol da captura de uma criança. E o pior de tudo, ele sabe que vão matá-la caso a capturem, mas está servindo de mercenário mesmo assim.

— Talvez ele não saiba — sugeriu Dean.

— Talvez eu tenha passado os últimos três meses perseguindo um sociopata sem escrúpulos — cuspi, me arrependendo no mesmo instante. As palavras queimaram em minha garganta, como ácido. Senti meus olhos marejarem, mas não me daria ao luxo de chorar ali. — Eu... eu não quis...

— Eu sei. — O aperto em meu ombro aumentou ligeiramente, ao passo que Dean tocou meu rosto em um gesto solidário. — Eu sei, M.

Em um gesto que eu definitivamente não esperava, o Winchester me puxou para si e me abraçou com força. Eu ainda não havia me acostumado com as demonstrações de afeto de Dean, especialmente as que eu presenciava em pessoa, mas não reclamei. Pelo contrário, o alívio quando suas mãos me rodearam em um aperto firme e seguro foi instantâneo.

Apoiei minha cabeça em seu ombro, fechando os olhos e rodeando suas costas com as mãos, retribuindo o gesto. Inspirei lentamente — Dean cheirava a sabonete de maçã, shampoo e álcool —, desejando que aquele momento durasse para sempre, apesar de saber que era uma esperança falha.

— Me desculpe — sussurrou Dean baixinho, me surpreendendo outra vez. Eu estava prestes a perguntar o motivo, quando ele acrescentou: — Me desculpe por ter falado daquela forma sobre você e Justin. Eu sei que todos temos os nossos demônios, e ele parece ser um dos seus. O seu passado não tem nada a ver comigo, e eu sei disso. É só que, quando eu vi você defendendo aquele cara, mesmo depois de tudo... — ele hesitou, parecendo não saber como continuar.

Dei um pequeno sorriso, apertando as mãos ao seu redor.

— Tudo bem, Winchester — sussurrei de volta. — Desculpas aceitas.

Ficamos em silêncio outra vez, e não sei quantos minutos se passaram até que eu decidisse sair de seus braços — o que foi uma decisão difícil, devo admitir. Era inegável o sentimento de segurança que Dean me passava, ainda que ele mesmo não parecesse ciente disso na maior parte do tempo.

Quando nossos olhares se encontraram por um breve momento, notei que ele me observava. Havia uma expressão de curiosidade em seu rosto que eu não saberia decifrar.

— O que foi? — perguntei, erguendo uma sobrancelha.

Dean não respondeu de imediato, provavelmente perdido em devaneios. Porém, quando sua fala enfim veio, não foi nada do que eu esperava, isso posso afirmar.

— O que foi que aquele Djinn mostrou a você? — o olhar de Dean era compenetrado e direto.

Encarei o loiro, confusa.

— Por que isso é importante agora?

Ele deu de ombros.

— Não me lembro do momento em que deixou de ser.

Suspirei. Seria uma história longa, de fato, mas não poderia ficar vetada por muito mais tempo.

— De qualquer forma, acho que você merece saber — sussurrei, dando-me por vencida. — Não faz mais sentido esconder.

O loiro não disse nada, apenas assentiu em silêncio. Respirei fundo, tomando coragem para a avalanche de lembranças que estava por vir outra vez. Aquela história não terminaria ali, apenas serviria de gancho para todo o resto que eu mantinha preso dentro de mim, inalcançável para Dean, Sam e todo o resto, exceto duas pessoas. Estava na hora de dizer a verdade. Toda a verdade. E sim, eu estava com medo de minhas próprias lembranças, apavorada. Mas isso não importava agora. E, sendo sincera, acho que já havia deixado de importar há um tempo.

Dean se virou para mim outra vez. Seus olhos estavam sombrios quando acrescentou:

— E você precisa me dizer de uma vez por todas quem é Alice, e o que essa garota tem a ver com você e os Remanescentes — seu tom era sério.

Novamente a concordância robótica. Sim, eu precisava dizer a ele. Eu estava prestes a fazê-lo, inclusive. Pelo menos dessa vez ele iria ouvir a história que eu queria contar, e não a que os outros haviam forçado em sua cabeça com ideias sugestivas e erradas. Não, agora eu contaria tudo.

Buda costumava dizer que existem três coisas que são incapazes de permanecerem escondidas por muito tempo; o Sol, a lua e a verdade. Bem, ele estava certo, afinal.

E já estava na hora de desenterrar a verdade.


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Notas finais do capítulo

No próximo capítulo: Emma conta a Dean um pouco mais sobre sua infância. Neste capítulo, descobrimos um pouco mais sobre Alice e sua relação com a nossa amada caçadora. Por que será que é tão difícil para a Emma tocar no assunto da irmã? E Dean, como ele irá reagir diante de tudo o que está prestes a descobrir?



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