Quase Inocente escrita por ArkhNine


Capítulo 1
Um Jantar em Família




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– O que tem pra hoje, Michael?

O legista, que examinava cautelosamente a cena do crime, se surpreendeu e sorriu com aquela voz familiar. Ele tirou os olhos da mesa de jantar e os virou para a entrada, por onde dois homens de gravata entravam. Ambos carregando o distintivo no peito. Detetives.

– Ralph! Há quanto tempo não trabalhamos em um caso juntos? – Indagou ele, feliz – Parece que foi só virar herói que esqueceu dos amigos.

– Nunca esqueceria! – Ralph riu – Infelizmente, toda aquela perseguição ao Maníaco dos Ossos exigiu mais da minha cabeça e do meu tempo do que o previsto.

– Pois é, eu fiquei sabendo. – Michael se aproximou, tirou sua luva e cumprimentou o detetive amigo. Ele então olhou para o parceiro de Ralph e ficou confuso por não o reconhecer.

– Onde eu estava com a cabeça, perdão. Esse é o detetive Parker, meu novo parceiro. É o primeiro caso real dele, então pega leve com o garoto, ok? – Ralph deu um par de tapas leves na costa de Kurt Parker com um sorriso no rosto. O novato demorou um pouco para entender que não estavam subestimando ele, mas sim brincando para descontrair e eliminar um pouco da tensão existente em uma cena do crime. Ele não sabia ainda, mas aquele pequeno ritual de risadas era comum nesses momentos e extremamente necessário.

– É um prazer, Parker, eu sou o Michael, legista. – O especialista cumprimentou o detetive novato com um sorriso e, na inocência, virou curioso para Ralph. – O velho Jenkins finalmente decidiu se aposentar?

Não houve resposta, inicialmente. Ralph apenas desviou o olhar e negou com um movimento leve da cabeça.

– O maníaco? – Perguntou Michael

O detetive então voltou o olhar para o seu amigo e confirmou com a cabeça. Claramente insatisfeito com aquilo.

– Desculpa, cara, eu não sabia. Sinto muito. Você sabe que eu não sou muito antenado. Sempre o último a saber das coisas. – Michael tinha suas peculiaridades, mas ele sabia ler uma pessoa quase tão bem quanto sabia ler um corpo morto. O olhar de Ralph foi tudo o que precisou para saber que aquele assunto ainda era muito delicado para ele. Foi então que a clareza bateu e, como uma lâmpada acendendo, ele entendeu. Ralph não tinha sumido por causa de caso nenhum. Ele tinha sido afastado para avaliação psicológica. Sessões terapêuticas obrigatórias após um trauma no campo. Tão repentinamente quanto a entrada dos detetives na cena, aquele ritual de descontração foi despedaçado.

– O que temos aqui? – Ralph cortou direto para o assunto, finalmente parando para olhar para a cena do crime.

Três corpos, sem vida, descansavam suas cabeças em pratos cheios de comida. Uma mulher e duas crianças. Um quarto prato de comida permanecia intacto, às moscas. As luzes, acesas no meio de uma iluminada manhã, indicavam que aquela comida na mesa teria sido, possivelmente, o jantar. O cheiro no local não era o melhor também, outra dica de que o alimento estava lá a mais tempo do que o desejado. O resto intacto. Uma sala de jantar moderna e bem decorada. Se tratava de uma família com dinheiro, claramente.

– O horário da morte foi provavelmente há umas 13 horas. Lá pras 9 ou 10 horas da noite. Envenenamento. – Explicou o legista - Ainda vou analisar no laboratório para ver exatamente qual foi o veneno usado. Sei que é bem improvável que os três tenham engasgado e se sufocado com a comida, ao mesmo tempo. Não há sinais de agressão em nenhum dos corpos, o cômodo tá mais arrumado do que a minha casa. Não consigo enxergar outra causa possível, nesse momento.

– E o pai? – Perguntou Ralph, apontando para o prato intocado. Ele imaginou que faltava a figura paterna naquele jantar de família e só precisou olhar de relance algumas fotografias na parede para suspeitar que o quarto lugar, realmente, seria o do pai.

– Provavelmente pegou as coisas e partiu para alguma ilha paradisíaca com a amante. – Sugeriu Kurt, tentando ajudar.

– Eu não descartaria essa possibilidade. Sinceramente, até invejaria ela. – Michael riu.

– Prefiro não tirar conclusões precipitadas. – O detetive veterano cortou logo – Eu vou dar uma olhada no resto da casa. Você vem, Parker?

O garoto confirmou com a cabeça e ambos saíram do cômodo. Não passaram cinco minutos fora da sala antes de voltar. Kurt não estava acostumado com aquilo ainda, então olhou tudo e não enxergou nada. Ralph, por outro lado, sabia exatamente o que buscar e quando procurou, encontrou. Ele retornou para a cena do crime com uma resposta pronta para a teoria tão admirada por Michael e Kurt.

– Se o marido fugiu com uma amante, com certeza não foi para fora do país. – Ralph retirou um passaporte do bolso e mostrou para o legista. – Estava na mesa de cabeceira. Derek Johnson. – O detetive entregou o passaporte para um dos ajudantes no local que ensacou para evidência – Suas roupas também estavam intocadas no guarda-roupa. Então, seguindo a hipótese de vocês, temos um casal em fuga, em algum lugar dentro dos Estados Unidos, comprando um guarda-roupa inteiro novo. Eu não descarto a possibilidade, mas acho bem improvável a ideia do marido assassino em fuga. De qualquer jeito, não tem como negar que o quarto prato na mesa é suspeito. Kurt, se importa em pedir para a central uma busca pelo marido?

Sem jeito após ter sido surpreendido pela eficácia de seu parceiro veterano, Parker, sem palavras, se afastou com o celular nas mãos para obedecer o pedido de Ralph. Enquanto isso, a investigação na cena do crime continuou.

– Você já deu uma olhada na cozinha? – Ralph começava a se concentrar no veneno agora.

– Dei, mas não vi nada suspeito. O único ingrediente venenoso que achei lá foi um spray contra insetos, mas nem uma lata inteira daquilo na comida seria capaz de matar os três. Mandaria para o hospital? Sim, provável, mas matar tão rapidamente assim? De jeito nenhum. Olha, eu só vou conseguir te dar uma resposta direito depois de analisar a comida no laboratório e fazer uma autopsia dos corpos. Antes disso, nada vai passar de suposições.

– Entendi. Em quanto tempo você consegue verificar isso? – Ralph perguntou, querendo fechar o caso o mais rápido possível. Ele estava torcendo para ser um caso simples, já que havia acabado de retornar e já tinha pesadelos o suficiente. Cortesia de um caso longo envolvendo o Maníaco dos Ossos.

– Acredito que em umas três ou quatro horas. Depende do quão rápido o pessoal do transporte chegar, para retirar os corpos.

– Ótimo. Eu vou tentar conversar com os vizinhos.

O Detetive agradeceu ao companheiro de trabalho e se afastou. Pensou em chamar o novato, mas preferiu deixar ele se virar. Até porque trabalhava melhor com seus próprios pensamentos. Gostava de Parker e achava que o rapaz tinha futuro, mas odiava ter que parar e explicar seu raciocínio toda vez que descobrisse algo. Ao abrir a porta da frente da casa, se surpreendeu. Ele não lembrava o quão rápido se aglomeravam os curiosos. Deviam ter umas quinze cabeças do outro lado da faixa policial, todas tentando olhar para o que acontecia dentro da casa. Ralph se aproximou de um dos policiais responsáveis pela contenção da faixa, Williams era o que dizia o nome em seu peito. Pensou em perguntar quem dentre aquele pequeno grupo era vizinho da casa aonde aconteceu o crime, mas não o fez. Sabia que dos quinze, trinta levantariam a mão e cinquenta diriam informações duvidosas apenas por uma chance de se aproximar da cena ou talvez ter cinco minutos de fama se alguma emissora resolvesse aparecer. Ao invés disso, dirigiu a palavra para o oficial ali presente.

– Oficial Williams, por favor, disperse o grupo. Os especialistas precisam de silêncio para trabalhar no caso e logo mais irão retirar os corpos. – Pediu em tom baixo, para não ser escutado.

– Sem problemas, senhor. – Obedecia o policial – Vamos lá, pessoal! Não há mais nada para ser visto aqui! Voltem para as suas casas!

Alguns ignoraram o oficial, mas aos poucos, um e outro foram obedecendo. Com desanimo nos rostos, a maioria se afastou, deixando apenas uma minoria ali, esperando ver algo. Ralph aguardou um par de minutos e então sorriu. Bingo! Ele achou os vizinhos. Um casal, perto dos seus 50 anos, entrou no jardim ao lado, se dirigindo a porta principal da casa vizinha. O detetive se apressou e os alcançou antes de destrancarem a porta.

– Com licença, desculpa incomodar. – Ralph alcançou o homem com o braço, gentilmente – Sou o Detetive Adams, responsável pela investigação na casa ao lado. Se importariam se eu fizesse algumas perguntas para vocês? Seria de grande ajuda.

O casal não teve como recusar. Convidaram o detetive para dentro e o serviram com um copo d’água. O homem, Bill, era quem falava mais, sua esposa só adicionava um detalhe ou outro. De maioria, a mulher contava fofocas que o detetive preferia ignorar. Aparentemente, eram vizinhos dos Johnson há alguns anos. Disseram que presenciaram o crescimento dos dois filhos. De cabeça, Ralph chutou um mínimo de 6 anos, imaginando a idade da menina na mesa, que era, claramente, a mais nova. Rosie, a esposa, confirmou o jantar na noite passada. Disse que o casal conversava alto e parecia discutir, mas que isso era comum. Segundo ela, Derek volta e meia voltava estressado do trabalho e o casal entrava em uma discussão. Bill fez questão de pontuar que, embora discutissem, os dois pareciam se amar muito. O detetive, como tinha costume, perguntou de movimentações estranhas ou eventos suspeitos, mas o casal negou. Foi uma noite comum, tirando a briga, eles contaram. A única movimentação foi a do marido, que chegou no final da tarde e saiu após o jantar. Ralph agradeceu os dois pela água e pelos comentários, se levantou e foi embora. Seu cartão ficou na mesa de Bill e Rosie.

Ralph sentia que tinha conseguido juntar as peças básicas do quebra-cabeça, só que algumas não se encaixavam. O seu trabalho de campo estava feito, faltava o maior dos trabalhos: O mental. Isso e esperar a resposta de Michael. Pensou em olhar no relógio para ver quanto tempo faltava para terem os resultados, mas desistiu. Conhecia Michael e confiava que ele ligaria assim que conseguisse algo. Verificou seu celular para ter certeza que estava com o som habilitado. Essa é uma chamada que ele não poderia perder. O detetive pegou seu carro e foi para a delegacia. Seu corpo o mandava voltar para casa, mas ele ainda tinha um horário para cumprir e uma papelada para se livrar. O que ele fez com facilidade robótica, já que aquilo já havia virado rotina. Sua mente, porém, estava em outro lugar. Em uma mesa de jantar com três acompanhantes. Uma mulher e dois filhos. Uma família que não era dele.

Ele conseguia visualizar a mulher gritando e as crianças tristes, porém acostumadas com aquilo. “Eles brigavam muito”, lembrou que os vizinhos contaram. Só que não havia marcas de briga nos corpos, segundo Michael, então foi apenas uma discussão. Adultos falando besteira em voz alta. Ele olhou para baixo. Seu prato estava cheio, mas ele não o tocou. Óbvio que não tocaria, a comida estava envenenada e ele sabia. Apenas observou a família comer, se levantou e se retirou. Não levou mala, não levou passaporte, nada. Só se foi. Eles ficaram e morreram ali mesmo. “Morreram por volta das 9 ou 10 horas”, foi o que o legista estimou. Isso vai além da hora comum do jantar. Então ele não se levantou e se foi. Ele ficou e observou até o fim. Ralph sentiu um calafrio correr o seu corpo. Ele conseguia imaginar cada passo dos assassinos que investigava, mas nunca conseguia entender o tamanho da frieza nas ações dos mesmos. Sua mente saiu da mesa de jantar e voltou para sua mesa de trabalho.

– Ralph! – Gritou Kurt na sua frente.

– Oi. Fala. – Respondeu, desnorteado.

– Cara, eu tô te chamando faz meia hora, você tá bem?

– Sim, sim. Só estava pensando. O que foi? Aconteceu alguma coisa?

– Aconteceu. Acharam o marido.

– Aonde? – O detetive foi puxado completamente de seu mundo de volta para a realidade. Se levantou como se tivesse tomado um choque da cadeira. – Deixa eu só pegar minha jaqueta e nós vamos.

– Não, Ralph, calma. – Parker segurou o parceiro pelo braço antes que o mesmo pudesse se afastar – Ele está morto. Suicídio.

Ralph parou, incrédulo. Por breves segundos, ele esqueceu como falar. Mil palavras corriam sua mente, mas pareciam ter esquecido o caminho até sua boca. Ele olhava para Kurt mas nada saia.

– A pior parte não é essa. – Avisou Kurt – Ralph, o corpo foi encontrado por um passante que ligou para a emergência na mesma hora. Oito e vinte da noite foi o horário em que a ocorrência foi registrada pelo telefonista.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado!Não esquece, por favor, de deixar um comentário. Me ajuda muito a melhorar e evoluir.Obrigado. :)