Abismo. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 3
Dor, documentos e o fim dos níveis.


Notas iniciais do capítulo

E me desculpem demorar para postar! Criatividade estava em falta.



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Joseph e Adélie estavam a poucas plataformas do topo. Cada vez que pulava de seu nível para segurar na mão de Joseph e subir, ela sentia a cabeça tontear. Estava quase sem forças, e teve um nível que ela caiu de cara no chão, respirando com dificuldade.

–- Você está bem? – Joseph perguntou, sentando-se ao lado dela.

–- Eu pareço bem? – Adélie retrucou, esfregando os olhos. Seus membros estavam pesados, e ela temia que, se continuasse a subir, se forçasse muito seu próprio corpo, o chip se soltaria de sua mente e ela não conseguiria mais recuperar o controle.

Reprimindo o medo, ela se sentou e olhou pra baixo. Há relativamente pouco tempo, algumas pessoas ainda tinham medo de permanecer fora das árvores. Tinham medo porque, mesmo que não tivessem vivido antes da Ruptura, no tempo em que o chão estava no chão e o ar estava no ar, eles leram muito. Liam sobre as guerras e as doenças, liam sobre os assassinatos, índices de crime, tráfico, corrupção, pragas, conflitos... Mas, ainda assim, não viam nada demais. Isso porque viviam numa constante guerra. Numa constante depressão econômica e moral, em especial, causada pelas fomes e pelas mortes – tanto em meio a conflitos ou assassinatos intencionais. O tráfico – de pessoas, de comida, de tudo o que se possa imaginar – praticamente era o modo de vida deles. Antes, lutavam contra; naquele momento, não podiam se dar ao luxo de questionar o porquê. Afinal, não era preciso perguntar por que se estava vivo, por que era do jeito que era. Era daquela maneira e pronto.

Mas a coisa que mais desestruturara todos fora a mudança drástica da atmosfera.

Muitas pessoas diriam que não era possível, mas era. Se todo o mundo não tivesse sido vítima daquilo, a maior parte da população não acreditaria. Principalmente porque aquilo fechou a conexão de internet e de telefonia. Afinal, todos os cabos se romperam.

Adélie não conseguia se lembrar como era fácil antes da Ruptura. Em parte, porque estava cansada demais pra isso. Seus únicos pensamentos eram sobre seus membros pesados, sobre sua família desconjuntada e sobre a fome que a consumia.

–- Como tudo pode ser tão merda? – Adélie murmurou. Joseph deu de ombros.

–- Sempre foi merda.

–- Mas antes era merda de um jeito diferente. Agora é muito merda. Quer dizer, estava melhor antes.

–- Estava fantástico antes – Joseph concordou. Adélie ouvia vozes distantes e seu estômago roncando. Joseph enfiou a mão dentro do casaco e vasculhou um pouco. Depois, tirou uma maçã e estendeu para Adélie. – Come. Você não vai conseguir andar desse jeito.

Adélie olhou para Joseph, depois para a maçã. Pegou-a, abocanhou-a e fechou os olhos. Fazia várias horas que ela não comia nada.

Pelo menos maçãs continuam iguais, pensou Adélie. De alguma forma, macieiras pareciam ser indestrutíveis. Por isso que a maioria da população vivia na base de maçãs, com algumas outras coisas que raramente chegavam a suas mãos.

–- Obrigada – disse Adélie. Torcendo para que Joseph dissesse “não”, ela perguntou: -- Quer um pedaço?

–- Não, obrigada – Joseph negou.

–- Eu que agradeço – ela disse, voltando a comer a maçã. Olhou para cima. Nunca estivera tão alto. Ou melhor, o chão nunca parecera tão perto. Era muito estranho pensar naquilo. Adélie terminou sua maçã e soltou o resto. Foi caindo e caindo, até se perder de vista.

–- Vamos continuar? – perguntou Joseph, se levantando e estendendo a mão para Adélie. Ela olhou para o rosto do rapaz. Ser comprada não fazia com que se sentisse bem, mas ele parecia tão indiferente em relação a isso que ela não conseguiu gritar com ele.

Levantou-se e os dois continuaram.

* * *

Jacques estava saindo da Árvore Governamental. Havia conseguido burlar um ótimo documento para ativar a Esfera em uma zona paralela a original, sendo assim, ficaria muito fácil suspender a Esfera em qualquer ponto que quisesse.

Ela gastou muito tempo pulando de árvore em árvore sem ser vista, mas, por fim, teve certeza que uma criança acabou tendo um vislumbre dela.

Eu tenho que aprender mais sobre essas merdas de chips, pensou ela.

Ficou em pé em ma árvore afastada, atrás de várias outras árvores. Levantou a Esfera acima de si e apertou-a. Uma fenda abriu-se, e Jacques inseriu seu documento de autorização ali. Logo, a luz da Esfera aumentou e aumentou, até que Jacques foi forçada a fechar os olhos.

Depois que a luz diminuiu, Jacques abriu devagar as pálpebras. A Esfera elevou-se de seus dedos e parou, suspensa, alguns centímetros acima dela. Raízes começaram a sair de baixo,e Jacques esquivou-se para deixá-las passar.

A árvore começou a ramificar, tomando forma. Fios saíram da Esfera. Jacques leu os códigos e rapidamente nomeou os fios. Foi subindo pelas raízes, apreciando o crescimento da planta. Enquanto esperava, sentou-se na ponta de uma raiz.

O próximo passo era achar Joseph.

Ele vai ficar louco comigo, ela pensou. Sorriu. Lembrava-se de Joseph brigando com ela pela edição exclusiva de um livro que ela não se lembrava qual era. Lembrava-se também que, quando Joseph era adolescente, vivia oscilando entre o certo e o errado, entre estudar pra prova ou pular a cerca do colégio.

Nem cercas existem mais, Jacques lembrou a si mesma. Agora eram apenas árvores flutuantes. O mundo tinha pirado completamente e ninguém sabia explicar como. Se fossem apostar, diriam alguma coisa sobre poluição e atmosfera, mas o relevo desmentiria.

Joseph costumava ficar longe de brigas, justamente porque era magrelo demais, e isso aumentava em 50% as chances de que alguém pudesse quebrá-lo ao meio. Mas o mundo parecia estar numa luta constante contra a incompreensão – no qual todos perdiam drasticamente – e Jacques apenas queria estar junto do irmão para eles arranjarem uma solução. Mesmo que ela tenha sido uma grande filha da puta.

Ir trabalhar no Centro de Formação para Burgueses fora seu primeiro erro. Ela e Joseph haviam concordado que jamais iriam para lá, não importava o que o pai deles fizesse. Mas Jacques achou todo o conhecimento que aquele lugar emanava fascinante demais para ser desperdiçado. O resultado foi um irmão magoado e um boletim quase brilhante de tão limpo.

Valeu a pena?, Jacques perguntou para si mesma. O mundo já tinha enlouquecido quando ela entrara para o Centro, mas aquilo, de alguma forma, parecia piorar a situação. E, desde a cirurgia, todo o encanto do Centro magicamente desaparecera.

E minha capacidade de ficar suspensa também, ela pensou. Pelo menos, com o curso de Biotecnologia, poderia tentar achar seu irmão. Joseph não conhecia Häns, por isso provavelmente ainda estava com o chip. Provavelmente ainda estava suspenso no ar.

Jacques havia lutado contra as cirurgias a sua vida inteira, dizendo para si mesma que era algo desumano. Mas, na realidade, os chips eram desumanos. Pareciam querer controlá-la. Por isso, quando ela acordou da cirurgia sentindo uma dor de cabeça lancinante, estranhou estar sentada num galho, e não suspensa no ar.

Ficara um tempo parada, refletindo sobre onde estava. Ondas de memória chacoalharam sua mente e ela percebeu, então, que ganhara maior liberdade sem o chip. Ou, pelo menos, tanta liberdade quanto era possível ganhar.

Jacques ouviu um estalo e virou a cabeça. A Esfera piscou.

Merda, ela pensou. Era mau sinal. Esticou-se até a Esfera e examinou-a. Os cabos estavam em modo de preparo, o que não era novidade. O único problema é que o protocolo necessitava de um complemento.

* * *

Adélie puxava toda a força de dentro de si para continuar subindo.

Era bom não estar de estômago vazio, mas ainda não era o bastante. Seus membros pesavam mais do que nunca. Ela não conseguia suar porque estava desidratada demais pra isso. Joseph suava, mas sempre continuava em frente, sem reclamar.

Mas que porra, ele deve ter tomado banho de desodorante, Adélie pensou. Então, percebeu que nada sabia sobre Joseph. Apenas estava seguindo-o, ignorando o fato que fora comprada.

Foi subir mais uma vez, pulando, mas ela não conseguiu. Pensou que não tinha pulado alto o bastante. Joseph, mais alto que ela, pulou novamente e continuou no mesmo lugar.

–- Que porra...? – Adélie murmurou, estendendo as mãos.

–- Calma – Joseph disse. Tirou do bolso um relógio claramente quebrado, e jogou pra cima. Objetos normais teriam parado no outro nível, mas o relógio desceu novamente, voltando para a mão de Joseph. A gravidade agira como tinha que agir, e aquilo era simplesmente bizarro.

–- Mas que porra é essa? – Adélie perguntou, pulando novamente. Uma expressão de contentamento sombreava o rosto de Joseph.

–- Acho que estamos no fim da linha – ele disse, estendendo a mão. – Os níveis acabam aqui.

–- Sério?

–- Acho que sim.

–- Será que eles... Eu sei lá... Não ficam maiores?

–- Improvável – discordou Joseph. – Todos os níveis são projetados para serem do mesmo tamanho. Caso contrário, não conseguiríamos subir. Ninguém conseguiria.

–- Quem fez esses níveis?

–- Ninguém sabe. Só sabemos que eles sempre foram do mesmo tamanho, em todos os lugares, indistintamente.

–- E o que significa não ter mais níveis?

–- Eu acho... – Joseph jogou novamente o relógio, que tornou a voltar. Ele observou o chão, que parecia muito perto. – Acho que não querem que passemos daqui.

–- Quem não quer?

–- Eu sei lá – ele deu de ombros. Remexeu os dedos para cima. – Deuses?

–- Não existe essa merda. Deve ser o governo. Eles ficam lá, né? Acima do chão.

Joseph riu.

–- Eu conheço as pessoas acima do chão, Adélie. Eu era uma delas.

Adélie levantou as sobrancelhas.

–- Era? Não é mais? – ela perguntou.

–- Bom... Meu pai me chutou pra fora de casa quando eu não quis entrar no Centro de Formação para Burgueses – Joseph bufou, mas, ao mesmo tempo, foi uma risada. Sentou-se com as pernas levemente dobradas e os braços apoiados. – Minha irmã foi. Eu nunca mais vi ela.

–- Faz quanto tempo?

–- Alguns anos. Por quê?

–- Acha que ela morreu?

–- Não – Joseph negou. – Ah, a Jacques é esperta demais pra morrer. Ela deve ter desinstalado o chip. E é por isso que eu não consigo achar ela.

–- Desinstalado? – Adélie pigarreou. – Desinstalado o chip?

–- É, ela conhece um cara. Eu não o conheço, mas ouvi dizer que ele é bom – Joseph abanou as mãos. – E agora ela tá por aí. Sem chip.

Adélie tentou raciocinar. Se ela estava sem chip, ninguém poderia rastreá-la. Também significava que ela não podia estar suspensa no ar.

–- Joe – Adélie chamou. – Sua irmã não pode ficar suspensa sem o chip. Quer dizer, é impossível.

Joseph sorria.

–- Você me chamou de Joe – ele disse. – Daqui em diante, você é a Élie. É um apelido legal. Acho que combina com você. É apelido de gente rabugenta.

–- Joseph, acho que sua irmã caiu no vácuo.

A expressão de Joseph mudou.

–- Não – ele negou. – Ela é muito esperta pra morrer.

–- Talvez não esteja morta. Se as coisas são como todo mundo acha que são, ela pode só estar caindo, caindo, pelo infinito.

–- Mesmo que ela estivesse caindo, já estaria morta. Seus membros não teriam aguentado a pressão do ar e ela provavelmente ia hiperventilar. Fora as milhões de outras possibilidades como ser pega pelo governo, por deuses, se espatifar numa árvore, todo o resto.

–- Então. Ela provavelmente está morta.

–- Ela é muito inteligente para morrer, eu já disse – Joseph repetiu.

Adélie balançou a cabeça em descrença. Ele parecia tão inteligente, mas, de alguma forma, parecia não querer enxergar a verdade. Adélie olhou para cima. O chão estava a poucos metros. Os balanços continuavam parados, como sempre estiveram.

–- Joseph – Adélie chamou. Joseph levantou a cabeça. – Por que estamos aqui?

–- Eu ia provar uma teoria.

–- Que teoria?

–- De que tem um limite para avançarmos.

–- E aí?

–- Teoria provada. Agora ela é um fato.

–- E o que isso muda?

–- Agora eu sei que eu não vou conseguir voltar pra casa sem que alguém lá de cima queira que eu volte.

–- Seu pai?

–- Me expulsou.

–- Sua mãe?

–- Morta.

–- Ah. A minha também. Mas ninguém lá em cima se importa com você?

–- Não. Eu tenho um grupo. E é pra lá que vamos agora.

–- O que estamos esperando?

–- Minhas pernas pararem de doer.

–- Esperar não vai mudar nada. Vamos continuar na merda.

Joseph sorriu.

–- Bem, vamos estar na merda andando, então.


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Notas finais do capítulo

Shippar Josélie é errado? :v



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