Abismo. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 2
Pessoas, maçãs, Esfera.




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Adélie estava em pânico.

No meio da multidão, ela não conseguia achar Joseph. Todos pareciam iguais. Ela não era baixinha, mas, de repente, sentia-se minúscula no meio de tanta gente. Abismo acima, abismo abaixo. De certa forma, o tempo havia fechado. Pequenas gotas de água caíam do chão lá de cima.

Adélie estava com Joseph há três horas, escalando, sempre pra cima, e nesse tempo, ele se recusara a dizer para onde eles estavam indo. Dizia que não era seguro falar ali. Dizia que todos podiam ouvir. E Adélie não insistiria. Sabia que não podia correr, pois seria capturada e vendida novamente, então estava desesperada em meio a multidão.

–- Joseph – ela chamou. – Joseph.

Não o via em lugar nenhum. Via negros, brancos, asiáticos, ruivos, morenos, louros, altos, baixos, magros, gordos, todos surpresos por uma mulher estar em farrapos gritando no meio do vácuo.

De repente, ela esbarrou com uma figura de marrom. Olhou pra cima, até perceber que era Joseph.

–- Olá – ele disse.

Adélie o examinou.

–- Você vai fazer isso sempre? – perguntou.

–- O quê? – ele perguntou.

–- Me deixar sozinha, pronta pra ser vendida.

–- Eu só estava comprando maçãs – Joseph estendeu uma mão com uma maçã. De repente, Adélie percebeu que estava faminta. Mas negou com a cabeça. – Por que não?

–- Não confio em você – ela rebateu.

Joseph sorriu.

–- Ora, você foi me procurar. Qual é, franceses são tão confusos assim?

Adélie não respondeu. Queria mesmo comer a maçã, mas estava com Joseph há apenas quatro horas, e ele tinha comprado-a. De certa forma, parecia errado.

–- Certo – Joseph disse, guardando a maçã no bolso. – Vamos continuar subindo.

–- Pra quê?

–- Pra chegar lá no topo.

–- Pra quê?

–- Pra provar uma teoria.

–- Que teoria?

–- Você vai saber quando chegarmos lá, Ad – Joseph sorriu. Olhou para Adélie. – Posso te chamar de Ad? Élie? Adli? Não?

–- O que acontece se a teoria estiver errada?

–- Nós descobrimos o que há lá embaixo – ele apontou para o vácuo abaixo deles.

–- Lá embaixo?

–- Sim, embaixo de tudo. Dizem que o governo está lá embaixo.

–- Não seja estúpido. O governo está lá em cima. Acima do chão.

–- Ah, Élie – Joseph riu. – Os deuses estão acima do chão, meu bem.

Adélie examinou-o.

–- Ainda acredita em deuses? – ela perguntou. Sem tirar o sorriso do rosto, Joseph pulou, agarrou a plataforma superior e estendeu uma perna, puxando a si mesmo pra cima. Estendeu a mão para Adélie.

–- A fé é a última que morre – ele disse.

Adélie pegou na mão dele, e pulando.

–- Está errado – ela murmurou, com certo esforço.

–- Tudo sempre está errado, Élie – Joseph concordou.

–- Não. A frase. Está errada. É “a esperança é a última que morre”.

–- Era assim antes da Ruptura. Agora tudo é por fé, né? Quer dizer, que somos nós, além disso?

* * *

A garota, Jacques, foi até o outro lado da árvore. Dali, segurou-se em mais e mais galhos, até chegar às raízes. Se o esquema não tinha mudado, tudo correria calmamente.

Chegou aos galhos e sorriu. Reconhecia cada pequeno fio ali. Pretos, verdes, vermelhos. Todos com circuitos de energia pulsantes, seguidos, ao mesmo tempo. Iluminava a escuridão, de certa forma. Parecia vivo.

Está vivo, uma voz disse, na cabeça de Jacques. Ela segurou-se num emaranhado de galhos, feliz ao constatar que estavam firmes. Curvou a coluna, olhando para o que chamavam de A Alma. Ali, havia uma esfera de luz, pulsante, conectada com os outros fios. Enviava cada sensor aos galhos.

Pelo menos alguma coisa eu aprendi naquele Instituto de merda, Jacques murmurou, silenciosamente. Mecânica de Ramificações Biotecnológicas não era nada fácil, especialmente depois da Ruptura. Mas Jacques aguentou firme, movida pela culpa, e pela esperança de ser perdoada por Joseph caso se encontrassem novamente.

Espantando memórias ruins da mente, ela pegou um fio próximo e leu. Água fria. Jacques pensou um pouco, pegou outro fio e leu: Conexões internas. Depois, pegou outro. Conexões externas. Cortou este último. Daquela maneira, a árvore ficaria mais difícil de rastrear. Só torcia para que aquela árvore não tivesse nada de especial.

Cortou mais fios. Aquecimento interno, Aquecimento Externo, Controle de Temperatura, Cafeteira, Geladeira, Acesso a internet, Wi-fi, Lava Roupas. Tudo era valioso, porém dispensável, naquela situação. Depois, parou um pouco. Tinha que lembrar-se exatamente da hierarquia de Utilidades dos Sistemas das Ramificações Biotecnológicas.

Lembrou-se de suas anotações, da fala do professor, dos exemplos que usavam na sala. Tinha que lembrar-se o que desligar primeiro e o que desligar depois. Afinal, se desligasse tudo de uma vez, era como se o sistema caísse por completo. Morresse. Era pura inutilidade. Era um sistema de células anormais, mas ainda eram células. Se era um ser vivo ou não, era uma questão tão enigmática quanto a do vírus.

Mas aquilo poderia morrer de Jacques não forçasse bastante a memória.

Lembrou-se que, depois dos sistemas de aquecimento, temperatura, comida, internet e lavagem de roupas e conexões externas, havia algo menos importante. A água. Muito antes da Ruptura, antes da Calmaria, aquele líquido era muito problemático. Ou tinha demais, ou tinha de menos. Alguns lutavam contra ele, outros lutavam para tê-lo. Era um círculo vicioso, no qual só se pode pensar como espécie.

Estúpidos, Jacques pensou. Um bando de ignorantes. Complicando tudo por coisas tão simples. Bem, os humanos não são sempre assim? Tentando ver um significado oculto por trás de tudo? Ás vezes as coisas simplesmente são o que são, sem importar o que mais.

Segurando-se nas bordas das raízes, Jacques quase escorregou novamente para o abismo. Porém, mantendo a firmeza nos braços e a concentração nos fios, ela apoiou-se em mais um emaranhado de raízes e puxou delicadamente alguns fios, a fim de examiná-los.

Água quente. Água fria. Controle de temperatura de água. Descarga.

Então, mais ao lado, perto da Eletricidade, outro fio: Chuveiro.

Estratégico, pensou Jacques. Cortou todos, respectivamente. A esfera parecia mais brilhante, e os fios, agora sem luz, pendiam soltos, como se fossem pedaços mortos de alguém. Tremendo, Jacques Se dirigiu ao último patamar de fios.

Lâmpadas. Televisão. Aparelho de DVD. Conexões internas.

Jacques cortou os três primeiros, depois hesitou. Fora Conexões Internas, ainda havia Desconectar a Esfera. Ela refletiu sobre qual cortar primeiro. Se cortasse Conexões Externas primeiro, não conseguiria retirar a Esfera com 100% de certeza que estava funcionando normalmente. Porém, se cortasse Desconectar a Esfera primeiro, a Esfera ainda estaria, de algum modo, ligada a árvore, tornando fácil rastreamento.

Mas isso só aconteceria se o dono da árvore fosse um gênio em Mecânica de Ramificações Biotecnológicas, Jacques pensou. Mas preferia não arriscar. Suspirando, olhou pra baixo. Havia outra árvore, há pouca distância, que parecia mais firme. Depois de tanto trabalho, não ia reconectar tudo e partir para outra ideia, afinal, teria o mesmo problema; mas a segunda árvore poderia ser útil.

Esticou um pé, testando a altura. Se esticasse os dois braços, poderia ficar em pé em cima dos galhos. Forçou seu peso, e o galho não se mexeu. Sorrindo, voltou para sua posição original. Enrolou Conexões Externas e Desconectar a Esfera nas duas mãos, puxando levemente para ver se estavam bem presas.

Então, Jacques fechou os olhos.

É agora, ela pensou.

Pulou.

Seus pés estabilizaram-se no galho da árvore abaixo dela, e ela levantou o rosto antes de abrir os olhos. A Esfera estava lá, intacta, mais brilhante do que nunca, e havia dois fios inertes enrolados nas mãos de Jacques.

Ela puxou a si mesma novamente pra cima, apoiando-se em raízes. Delicadamente, retirou a Esfera da árvore, girando-a nos dedos. Era brilhante e macia. Perguntou-se se um hardware era algo parecido. Concluindo que a Esfera era algo bem mais que um hardware, Jacques arrancou delicadamente todos os fios inertes. A conexão com a árvore estava fechada.

Sentindo-se inteligente, porém hesitante, ela voltou a ficar em pé nos galhos da árvore abaixo. Agora, sua missão era esconder a Esfera e falsificar um Formulário de Posse. Aquilo seria fácil.

A parte difícil parecia distante.


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