Se os Peixes Pudessem Sonhar escrita por Mahucp


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

Vocês devem saber que no sincretismo religioso, Iemanjá corresponde com várias figuras do catolicismo, mas como se trata da lenda do Negrinho do Pastoreio, utilizei a relação de Iemanjá com a Virgem Maria.



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Era um menino muito pequeno. Diziam que não tinha pai, nem mãe, por isso o chamavam somente de Negrinho.

Um menino que não podia ir à escola, pois não tinha dinheiro para pagar aos garotos grandes, que ficavam vigiando a porta do lugar. Um menino que não tinha casa e passava as noites na morada de estranhos caridosos, que lhe davam comida e cama.

E nada, nada disso incomodava o Negrinho, porque Iemanjá cuidava dele. Ela era a mãe do Negrinho.

O menino sabia disso. Sempre via Iemanjá caminhar sobre as águas e os peixes pularem de lá e voarem pro céu, indo para o Paraíso. Iemanjá dizia ao Negrinho que os peixes, todos, eram seus filhos. E que ele era o peixinho mais bonito que ela já havia visto.

Negrinho sempre abria um sorrisão e pulava nos braços daquela que era sua mãe. Adormecia em braços quentes e acolhedores, sonhando que virava peixe e ia para o paraíso.

O paraíso era lindo. Uma escola gigantesca onde todo mundo podia entrar, mesmo o Negrinho, que não tinha dinheiro para pagar os meninos grandes. Na escola o menino fazia amigos e aprendia todas as coisas do mundo. E depois, o Negrinho e todas as crianças viravam peixe e brincavam no mar até cansar. Era o melhor sonho de todos.

E então o Negrinho acordava. Dormindo na casa de uma senhora, que era amiga de Iemanjá. O Negrinho agradecia a mulher, tomava café da manhã e ia pra rua.

Adorava a rua. Sendo pequeno, o Negrinho podia se enfiar por toda a parte. Ficava bem escondido em um buraquinho que só ele podia caber, esperando alguém passar, e quando acontecia, o Negrinho pulava pra fora dando um susto na pessoa. Era a maior graça.

O Negrinho ia brincar com os animais da comunidade. Passava horas e horas correndo com os cachorros e fazendo carinho na cabeça. Com o dinheiro que tinha no bolso, comprava um cachorro-quente e divida com os amigos caninos.

Iemanjá dizia que era sempre bom dividir as coisas e Negrinho fazia isso, porque ele tinha uma mãe amorosa.

Mas de tudo isso, o que o Negrinho mais gostava era do mar. Pegar onda, brincar na areia, dar um mergulho. O menino gostava tanto da água, que ficava dentro dela até ficar todo enrugado.

O dia de praia acabava sempre com o por do sol, em que as pessoas batiam palmas. As palmas do Negrinho eram sempre as mais altas. Risonho, batia as palmas, enquanto pulava na maior alegria.

O Negrinho via os irmãos peixes indo pro céu. E Iemanjá dançando nas águas. Era a coisa mais bonita do mundo. Todos filhos de Iemanjá. E o menino lembrava do sonho em que ele iria pro paraíso, onde ele poderia ir pra escola.

Quando o espetáculo acabava e o sol se escondia, o menino voltava pro morro, que era sua casa.

Nem sempre o Negrinho conseguia um teto pra dormir, mas nem com isso o menino desanimava. Subia em uma árvore e passava a noite tranquila. Acordava gritando junto dos galos e ria, porque gritava bem mais alto que os bichos.

A única coisa que deixava o Negrinho triste era a escola, que ele não podia entrar. Os adultos não queriam falar com os meninos grandes que pegavam dinheiro na porta, por isso não podiam ajudar o Negrinho.

O menino não podia pular o muro, porque era alto e cheio de arame de choque. Era muito perigoso, e ele era pequeno demais para se arriscar.

E o menino acabava aprendendo as coisas na rua mesmo. Sabia pegar comida e dinheiro, sem ninguém ver. Sabia entrar nas casas pra dormir sossegado, sem ser descoberto. Sabia fazer muita coisa e Iemanjá cuidava muito bem dele e deixava ele sonhar com os peixes voando pro céu. Era isso que o Negrinho fazia quando estava triste, sonhava com a escola do paraíso.

O menino sempre andava com os cachorros, os gatos e os galos, mas não tinha amigo como ele. Um amigo que viraria peixe e sonharia com a escola do paraíso.

Então, o Negrinho decidiu comprar um irmão. Um peixinho dourado, com quem poderia dividir suas aventuras e sonhar junto que voavam juntos lá para o alto das nuvens.

Com o dinheiro da comida, o menino foi pra loja de peixes.

A vendedora, uma velha de olho puxado, vendeu pro menino um peixinho dourado, que vinha dentro de um saquinho transparente.

O Negrinho abriu um sorrisão vendo o irmãozinho nadar de um lado pro outro dentro do saquinho. Iria chamá-lo de Peixinho. Ele era o Negrinho e o irmãozinho, o Peixinho.

Negrinho saiu correndo da loja, com o Peixinho enfiado de baixo da camiseta. Ia esconder de todo mundo, porque Iemanjá, sua mãe, tinha que ser a primeira a ver.

***

Era mais um dia que a PM, fazia uma ronda na favela.

O policial suspirou como se tivesse saído de uma maratona. O trabalho era duro, mas compensava. Era apaixonado pelo Rio de Janeiro e queria deixar a cidade segura para as famílias.

Por isso, estava no serviço que era o mais desgraçado de todos. Tinha de dar duro e arriscar a vida pelo bem da cidade amada. Colocar os vagabundos no lugar deles, ensinar que com a PM não se brinca, pois estão ali para defender o cidadão de bem, o pai de família.

Sabia que sozinho não podia fazer muita coisa, porque o governo não ajudava em nada, e só defendia a bandidagem. Porém, não desistia e continuava com a função.

A equipe se dividiu indo cada um para um lado. As pessoas ficavam em suas casas, ou baixavam a cabeça quando ele passava. Nenhuma atitude suspeita. Todos caminhavam devagar, sabendo que a PM estava ali para protegê-los.

Foi quando ele viu um menino correndo. Corria e ainda escondia algo em baixo da camisa. Um menino tão pequeno que ainda devia molhar as calças.

A bandidagem estava cada vez pior, começavam desde cedo vendendo drogas, para mais tarde virarem chefes do morro, com pilhas de cadáveres nas costas.

“Oh moleque, vem até aqui!” chamou o menino, que parou de correr e passou a encará-lo “Passa o embrulho pra cá, antes de eu desça o cacete em ti”. Ameaçou.

O menino abriu a boca em um “o”, arregalando os olhos. Depois mostrou a língua, fazendo birra.

“Não!” retrucou o moleque. “Mamãe vai ver antes de todo mundo!”.

E o menino voltou a correr, fugindo dali. O policial foi atrás. Para correr daquele jeito o pirralho devia ter um tijolo pesado.

Ia acabar com o esquema do moleque agora mesmo. Sacou o revólver e atirou.

A bala atingiu as costas do menino em cheio, atravessando-as e saindo pelo peito.

***

O policial correu para checar a situação.

E o seu mundo caiu quando viu o menino de pé, sem nenhum ferimento, carregando um saco transparente com um peixe dourado dentro. E ao lado do menino... ao lado do menino, estava Virgem Maria. Virgem Maria chorava... E o policial soube que o menino estava morto... que ele matara o menino.

E agora Virgem Maria estava chorando.

Largou a arma no chão, sem nem se dar conta do gesto. Ajoelhando-se na frente de Virgem Maria e do menino morto. Lágrimas de dor e arrependimento escorriam por seus olhos como cascatas brilhantes.

“Me perdoe, por favor, me perdoe”. Pedia o homem em desespero. A testa colada no chão, estando completamente vulnerável.

Mas o menino não falava nada. Só estava ali em pé, segurando o saco com o peixe dourado e de mãos dadas com Virgem Maria.

O policial viu que o perdão do menino não o salvaria. Seu arrependimento não tinha salvação.

Pegou a arma do chão e atirou na própria cabeça, perdendo a vida antes de atingir a terra.

O menino chorou, pois não queria que o homem morresse. O homem tinha ido pra escola e não precisava virar peixe pra sonhar com a escola do paraíso. Ele podia viver até ficar velho e aí podia morrer sorrindo e sem nenhum dente na boca.

Foi então, que o Negrinho viu que tinha uma missão.

E o Negrinho passou a ajudar todo mundo. Segurando um saquinho com o Peixinho dentro, Negrinho ajudava a criançada a fugir dos homens que corriam atrás delas. E ajudava os homens a não matar nenhuma criancinha.

E mesmo com tudo isso, o menino ainda tinha tempo para virar peixe, pular do mar e voar pro céu, aonde ia para a escola do paraíso.


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