O Clube do Amor escrita por Ganimedes


Capítulo 1
O Antes


Notas iniciais do capítulo

A primeira pessoa desse prólogo só se manifesta aqui, então quem não gosta muito dessa "pessoalidade" na narração não precisa se preocupar XD. Os outros capítulos serão na terceira pessoa propriamente dita.



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As boas histórias devem começar com um episódio ruim.

Questão de fato, não duvido nem um pouco disso. Não há muito que se falar sobre pessoas felizes aproveitando um momento feliz. Além de ser alheio à realidade de qualquer ser humano que se preze (somos humanos, de húmus, aquilo que vira adubo. Nosso nome traz consigo a ideia da morte e de sermos enterrados para, então, nos transformarmos num bolo de massa fertilizante. A melancolia macabra é intrínseca até mesmo à nossa denominação), é de uma essência terrivelmente entediante.

Mas não sei como contar o que quero contar sem escolher e acomodar sozinhas na prateleira duas ocasiões especiais em que estávamos realmente felizes. Foram dois momentos, separados por um lapso de quase quinze anos, em que nos deixamos envolver por uma cápsula de proteção contra qualquer espécie de energia que não fosse boa. Só queríamos estar acolhidos e nos permitir a sensação de que íamos lembrar de cada detalhe daquela cena com saudosismo.

— Michal, não olhe para a câmera... Ahh, alguém aí perto, por favor. Gówno.

O flash engolfou o ar. Creio que sentimos ele ao mesmo tempo, uma vez apertadinhos como estávamos. Apesar das correntes de ar excepcionalmente mornas que roçavam por nós e por todo nosso país, só percebemos que a ideia do café quente não fora tão boa assim depois que sentimos a primeira lufada de ar quase tropical nos atingir como um grande tapa de mãe no rosto. Doloroso, certamente, mas doce e instrutivo. Não faremos novamente!

Reuníamos-nos todos juntos pela primeira vez desde que o desenrolar daquela série de eventos desagradáveis — e antes que o estopim chegasse ao final e o estoque de bombas que nem sequer sabíamos da existência explodisse, como pudemos verificar exatamente vinte e quatro horas depois.

A preocupação consumira nossas energias quase até o final, e creio que se não fosse aquele momento singular, sentados sobre os trilhos do quilômetro 22 da ferrovia 22, teríamos sucumbido em ruínas devido ao que se sucedeu nos dias posteriores.

— Tarde demais. — Vi os dois travesseiros que Stanis chamava de bochechas ficarem vermelhos, e não dava para ter certeza se era raiva ou ensolação. Ele não parecia muito feliz com o fato de que Michal estragara seus planos de eternizar um instante espontâneo (e, diga-se de passagem, feliz, como aquele. Havíamos feito várias coisas de forma natural, porém nenhuma muito digna de ser eternizada).

A atmosfera estava positiva o suficiente para que Lucy, sentada o mais distante dele, lhe fizesse um gesto de chamamento. Stanis correu até ela em toda a redondeza que lhe cabia e sentou-se, alegremente, ao seu lado. É estranho pensar nisso agora, pois foram exatamente eles dois os únicos que terminaram totalmente ilesos (física, psicológica e emocionalmente falando) entre todos nós.

Ah, excetuando a mim, é claro, embora eu não saiba dizer se o que me aconteceu foi, de fato, algo de todo benfazejo.

Lembro-me de reparar em cada um que estava ali. Mesmo àquela época eu já sabia que era um átimo extremamente pontual de ventura e bem-estar no grupo. Wanda, apesar das dores que ainda lhe afligiam, esforçava-se ao máximo para não deixar os espasmos excruciantes tomarem conta de si. Removeu com cuidado uns poucos fios brancos de cabelo — que somente teriam nascido com naturalidade várias décadas depois — da frente dos olhos e mordeu generosamente o pão doce que segurava. Wira, ao seu lado, notou que eu a observava e sorriu. Vi meu reflexo em seus óculos. Ela sabia de tudo sobre mim, embora eu mesmo ainda não tivesse certeza até então. Sorri de volta. Sinceramente.

Michal, ainda rindo do rosto enfezado de Stanis, tinha metido as duas mãos no saco de biscoitos de polvilho e os acomodado, com farelo e tudo, sobre o próprio colo. Ele fazia o que fazia com tanta inocência... Queria separar o seu para não acabar pegando, sem querer, uma parte que julgava pertencer a outrem. Se soubesse como o ato poderia soar egoísta a quem visse de fora teria morrido de vergonha e jogado tudo de volta na mesma hora.

Mas ninguém o julgou por aquilo. E ele comeu sem qualquer impedimento, feliz da vida.

— Não seja tão neurótico.

Konrad jogava distraidamente uma bolinha de tênis de uma mão para a outra, como se medisse seu tamanho, peso e textura para então jogá-la o mais longe que pudesse: seu rosto era pensativo. Falou isso com um sorriso, mesmo claramente preocupado, após Stanis reclamar novamente que “Quando eu revelar a foto mais tarde vou ver o rosto de Michal zombando de mim”.

— Ok, acho que a pior parte vai ser ter que ver o rosto dele naquela sala escura mesmo.

Todos tivemos que rir. Michal já estava totalmente à parte da discussão, os farelos de polvilho espalhados ao redor da boca.

— Isso tem gosto de soro fisiológico... Mas é tããão bom.

Aleksy, bem ao seu lado, apontou para a própria boca para tentar avisá-lo do desleixo, mas Michal não era exatamente mestre na linguagem corporal e levou a mão para o rosto do amigo.

— Você não precisa fazer a barba ainda.

A sutileza daquele gesto e daquela frase se repetiria alguns anos mais tarde com uma dose de melancolia levemente acentuada. Seria proposital, e com os interlocutores trocados de posição, mas igualmente singela em sua semitransparência.

Eu poderia citar, por exemplo, a angústia velada de uma das garotas que sentia um ser devorar-lhe pouco a pouco as entranhas ou então os planos de um garoto que acabaria morto no dia seguinte, mas vou me permitir somente dizer que Marion tirou Murcha, a Sanfona, da mochila.

Uma música cantada por todos os amigos ao mesmo tempo é a camada de chocolate de um bolo de cenoura, e todo mundo decidiu provar do doce. Nem mesmo Marion sabia direito a letra da canção, mas estarmos todos ali, simplesmente balbuciando qualquer coisa juntos, já valia a pena por qualquer mico grupal que estivéssemos pagando. Ninguém ia se arrepender.

Acho que é tudo que posso dizer daquele dia.

Como eu disse, não há muito que se falar sobre pessoas felizes aproveitando um momento feliz.

Por outro lado, a segunda circunstância em que nos reunimos só pôde ser chamada de feliz por sabermos que nada mais de ruim poderia acontecer. Todas as provações que estavam ao nosso alcance já nos tinha sido infligidas. Éramos apenas sete: um desfalque imenso considerando nosso número naquele dia do calor e da sanfona Murcha.

Aconteceu no mesmo lugar. Aconteceu no quilômetro 22 da ferrovia 22.

Havia alguém no banco do passageiro da picape vermelha estacionada a uns bons vinte metros dos trilhos. Ele não queria descer. Acho que era um pouco de culpa minha. Eu o assustava e não tiro sua razão.

Diferentemente de praticamente quinze anos atrás, o clima estava congelante como era correto e de praxe em nosso país exageradamente setentrional. O frio, por incrível que pareça, nos acalentou. Podíamos nos refugiar em nossas roupas grossas em vez de buscar consolo uns nos outros. Não seria nem um pouco agradável ter que fazer isso.

— Então estamos de volta. — Eu reconheci sua voz mesmo através dos agasalhos. Ele olhou em volta, imaginei que fosse comentar sobre como a vegetação tinha sido quase dizimada.

— Parece tão... menor. — ele disse, apenas.

— Não.

Uma mulher alta e magra se aproximou, acompanhada daquele que certamente era seu marido. Ele trazia consigo uma daquelas caixas térmicas de plástico onde se guarda comida.

— Não estamos de volta. O esqueleto de alguém que amamos não é quem amamos. Falta a vida, falta a carne, falta sangue.

Ela se aproximou dos trilhos e deu um chute na barra de ferro enferrujada, encarando-a com a expressão de quem sentia repúdio.

Mas ela não me enganava.

— E isso aqui, velhos amigos, é só um esqueleto.

Ninguém acreditou.

As lembranças não passam de um diabinho em forma de musgo. Não importa quanto tentemos arrancar, tocar fogo, jogar o mais mortífero dos venenos, ao ser atingido pelas primeiras gotas de chuva o tapete verde retorna mais vívido do que antes.

E quis o destino que começasse a chover.


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