Um chamado da Africa escrita por Bia_C_H_


Capítulo 4
Capítulo 4




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Me vejo sozinha novamente e paro alguns segundos observando tudo, os detalhes da colcha, as fotos que exibem sorrisos da família, de amigos e de nós três, e tento assimilar que aquele será meu novo lar por algumas semanas ou meses até. Não é difícil me acostumar com a ideia, pois realmente me sinto confortável ali, apesar de não parecer em nada com meu antigo quarto, de paredes lilases, moveis brancos e uma cama de solteiro de colcha colorida, tendo como única semelhança as margaridas, no lugar da colcha se encontravam decorando a parede atrás da minha cama.
– Bom, hora de desfazer as malas! – digo para ninguém além de mim, indo buscar as malas que já estavam ali, deixadas por algum funcionário da pousada.
Como Lúcia havia sugerido em um dos e-mail sobre os planos para a viagem, trouxe na maior parte roupas frescas para o calor, como vestidos e shorts, o que não foi difícil de arranjar, já que morando no Rio, essas eram as principais peças do meu guarda roupa, também coloquei na mala algumas roupas de frio por precaução e uma variedade de fitas coloridas que eu costumo amarrar no cabelo e que são minha marca registrada desde os sete anos. Arrumo tudo em uma cômoda de frente para cama, tentando manter organizado, o que não é muito o meu forte, e leva a um resultado final razoável, e fico satisfeita. Meus perfumes, maquiagens, cremes e outros objetos pessoais, eu distribuo entre outra cômoda menor no banheiro, que é todo de azulejo branco e tem uma pequena banheira. Quando finalmente terminei de organizar tudo, olho em volta admirando meu trabalho, e sorrio, me sentindo um pouco mais a vontade no meu novo quarto. Me jogo na cama exausta com a arrumação toda e com a viagem, e a ideia de tirar um cochilo antes de me arrumar me vem a cabeça, mas some assim que olho o relógio e descubro que demorei uma hora e vinte para arrumar as coisas, o que me deixam apenas 40 minutos para tomar um banho e parecer apresentável, já que pela manhã a preguiça de lavar o cabelo havia resultado em uma trança frouxa e bagunçada, amarrada com uma fita amarela. Com um gemido de protesto, levanto da cama indo para o banheiro e demoro um tempo considerável ate lavar e pentear aquela imensidão de cachos negros, depois finalizo com um creme e resolvo deixa-los soltos. Assim que termino tudo, colocando um vestido azul soltinho, pego as malas para guarda-las embaixo da cama, mas sinto um peso dentro de uma delas, e tento me lembrar do que eu poderia ter esquecido lá. É um porta-retratos branco, com pequenas flores em torno, emoldurando a foto de três pessoas sorrindo, uma mulher alta e elegante, uma adolescente cheia de vida, e uma criança com fitas rosas presas no cabelo, as três rindo enquanto tentam se equilibrar num abraço triplo, sem perceber que estavam sendo fotografadas naquele momento intimo. A alegria na foto me faz sorrir até hoje, cinco anos depois e cada detalhe ainda está gravado em minha memoria, as flores corando os cabelos ruivos de minha mãe, que brilham como fogo perto do preto que colore os meus e os de minha irmã, os vestidos brancos, era ano novo, sujos de areia da praia e três olhos azuis cheios de expectativa esperando os fogos começarem a subir no céu. Havia sido um ano magico aquele, e nosso único desejo era que nada mudasse no que começaria naquela madrugada, só não sabíamos ainda o quanto o mundo dava voltas.
O telefone do quarto toca, e me faz pular de susto, quase soltando o porta-retratos em minha mão, corro para atender e é Farid me avisando que James e Lucia estão me esperando na recepção. Enxugo então as lagrimas que caíram sem minha permissão e coloco com carinho a foto encima da cômoda, perto das outras que já estavam ali e sinto que agora sim o quarto está completo, o que renova minhas forças e desço animada ao encontro do casal.
– Agora que Alex já descansou e arrumou as coisas, e já fizemos nossos pedidos, será que tenho autorização para ouvir as novidades dela, capitão? – Lucia pergunta em um tom de voz serio, dirigindo-se ao marido, mas o sorriso em seus olhos deixa clara a brincadeira.
– Acredito que agora seja uma boa hora para botar as fofocas em dia e sufocar a menina com perguntas. – nós rimos e então me preparo para o interrogatório.
– Por onde devo começar... – uma ruga de concentração surge no meio da testa de Lucia enquanto ela pensa. – Bem, que tal me falar como está Mila, Felipe e a pequena Katharine, lamentei muito não estar presente em sua primeira festa de aniversario. - E então começo a contar as novidades, mato suas curiosidades e durante as horas em que fico ali só conversando despreocupada sinto como se nada tivesse mudado em minha vida e essa fosse só mais uma das muitas visitas que fiz ao casal desde que os conheci.

Quando volto para a pousada, já é noite e só consigo pensar em minha cama e em umas boas horas de sono, mas quando finalmente me deito percebo logo que não conseguirei dormir tão rápido. Estou ansiosa pelo dia seguinte, pois James me disse que teria meu primeiro encontro com um dos àsika, sem entrar em detalhes de como e onde seria esse encontro, e a única certeza que tenho é de que amanha terá inicio minha nova jornada. Penso em ligar para Mila e conversar um pouco para distrair a cabeça, mas não tenho certeza de que horas são no Brasil e não quero atrapalhar, então ligo meu notebook a fim de me distrair no Facebook, em busca de alguma novidade ou noticia interessante da vida que deixei lá. Enquanto olho distraidamente o feed de noticias, recebo uma nova mensagem e agradeço mentalmente por isso, pois agora ficaria mais fácil esquecer a agitação em meu estomago. É uma de minhas melhores amigas da época do colégio, Bianca, com quem eu não falava a algum tempo. No inico a conversa é estranhamente formal, enferrujada pela timidez e o tempo sem nos falarmos, mas aos poucos o assunto começa a fluir e ela me conta que havia ligado la pra casa para me convidar para seu aniversario, porque sentia minha falta, mas Mila havia dito que eu estava viajando então decidiu falar por aqui depois de um tempo pensando em como iniciar a conversa. Fiquei feliz por ela ter o feito, não percebi como sentia a sua falta, e me repreendo mentalmente por tê-la deixado se afastar.
A conversa dura por uma hora, até que já não estou mais aguentando manter os olhos abertos e me despeço de Bianca com a promessa de mandar noticias frequentemente. Não demorei a pegar no sono, e logo o nervosismo da véspera estava enterrado em algum lugar no meu subconsciente, pelo menos por enquanto.

Um enorme corredor estendia-se na minha frente, com o branco da tinta e das luzes ofuscando minha visão e obrigando-me a usar as paredes frias como apoio. Minhas pernas pareciam chumbo, tornando difícil andar, mas tinha que continuar, precisava chegar ao fim daquele corredor, minha mãe precisava de mim. Eu podia ouvir sua voz sussurrando meu nome, num tom suplicante que fazia meu coração se apertar, podia sentir sua dor e seus medos. Ela chama por mim diversas vezes, num ritimo continuo, como se marcasse as passadas do meu coração, e então os sussurros começam a aumentar, e ficam cada vez mais audíveis, ate se tornarem gritos desesperados que penetravam no fundo de minha mente. Sinto-me fraquejar, e me ajoelho no chão gelado, tremendo de frio, soluçando angustiada, tapando os ouvidos para abafar aqueles gritos que ansiavam por mim. “Eu não consigo, não posso te ajudar!” Era isso que eu tentava gritar de volta, mas minha voz não saia, eram apenas apelos mudos que ninguém podia ouvir além da minha consciência.

Acordei de repente, suada e chorando, meu corpo tremia e os lençóis eram um bolo jogado no chão do quarto. Há anos eu tinha aquele terrível pesadelo, sempre no mesmo lugar, do mesmo jeito e sempre me fazendo ficar apavorada. No inicio eu corria para a cama da minha irmã, ate que ela começou a se irritar com isso e tive que aprender a lidar sozinha com o medo. Repeti, então, o mesmo ritual que sucedia essas ocasiões: sentei devagar, encolhi a perna enterrando a cabeça entre os joelhos, respirei fundo ate a respiração ser controlada e cantei baixinho uma antiga cantiga de ninar:

“ Dorme, dorme menininha
eu estou aqui
vá sonhar
ainda é tempo, menininha
vá, vá dormir
Sonha sonhos cor de rosa
passeia no céu e no mar
apanha o mundo
no teu sonho, menininha
e não deixa ninguém roubar
Olha, não reparta com ninguém
os teus sonhos de menina
dorme, dorme
dorme e sonha menininha
sonha, é tempo ainda ”

Aos poucos meu coração foi acalmando e o pânico começou a se dissipar. Não sei ao certo quando e nem porque escolhi esse ritual, só sei que sempre funcionava, já a cantiga, quem cantava para mim e para Mila era meu pai, toda a noite antes de dormirmos, com uma voz de anjo e que embalava aos poucos ate que as duas pegassem no sono. Quando comecei a cantar depois dos pesadelos, já fazia muitos anos que ele não cantava para nós, eu achava que nem sabia mais a letra por isso me surpreendeu quando me dei conta pela primeira vez do que estava cantando. Nunca falei disso para ninguém, nem para Mila, James ou Lucia.
Depois de um tempo, levantei e fui tomar um banho para despertar, pois mesmo sendo sete da manha ainda, senti que não conseguiria mais dormir. Ao sair do banho e dar uma rápida olhada na janela, vi que o sol já raiava la fora, então coloquei um short e uma blusinha leve e desci em busca de algo para comer. Encontrei um Fifi sorridente na recepção, conversando com um casal de senhores que pareciam ter acabado de chegar, ele encontrou meu olhar e fez sinal para que aguardasse um pouco, de modo que me sentei numa das enormes poltronas do hall. A essa altura, a ansiedade que me tomou na noite anterior tinha começado a se esgueirar de volta na minha barriga e nos meus pensamentos, fazendo com que a ideia de comer não me parecesse mais tao interessante assim.
– Bom dia, Àyinrin. Levantou cedo! – a voz de Fifi me despertou, e sorri para ele.
– Bom dia, Fifi. Acho que o ar de Ibadan ta começando a fazer efeito em mim, nunca acordo tão cedo assim. – ele riu do comentário balançando as tranças vermelhas.
– Bom deve estar com fome, senhorita! – assenti ao mesmo tempo que me estomago roncou, deixando-me constrangida e arrancando um leve sorriso de Fifi. Pelo visto o nervosismo não fora assim tao grande para acabar com a minha fome. – Tem uma padaria aqui perto que vende a melhor Custarda de toda a África! Posso te ensinar o caminho se quiser.
– Eu adoraria experimentar a melhor Custarda da Africa, mesmo não sabendo o que isso significa! – respondi sorridente e agradecida por ter uma perspectiva de café mesmo não sabendo ao certo o que era.
Fifi me explicou como chegar na tal padaria, e me fez repetir a explicação ate ter certeza de que eu tinha realmente entendido e que não me perderia no meu dia na cidade, pois se isso acontecesse, ele tinha certeza que James faria dele um homem morto. Eu ri da cara de assustado que ele fez quando falou isso e prometi que voltaria a qualquer instante e viva. Então, depois de receber a autorização para sair, me aventurei pela primeira vez pelas ruas de Ibadan.




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