Satanás gosta de cães. escrita por Gabriel Ábila


Capítulo 2
Um lugar para passar a noite.




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Uma das notícias mais repercutidas em Londres era a morte de Evie Feinberg e o desaparecimento da sua filha, Ella Feinberg, de onze anos. Já fazia três semanas que Evie morrera atropelada, e as autoridades procuravam por Ella. A cidade inteira a procurava na verdade. Algumas pessoas diziam que a viram junto com dois dálmatas, outras diziam que a viram sozinha, que estava acompanhada de um só cão, que havia fugido para outra cidade... Muitas pessoas mentiram sobre o paradeiro de Ella só para ganhar algum ibope. Mas o verdadeiro paradeiro dela, ninguém sabia e nem desconfiava.

Ella estava dormindo em cima de jornais e papelão no chão sujo de um beco escuro e fedido. Para garantir que ninguém ia reconhecê-la, caso a encontrassem, ela sujou bem o rosto e as roupas, e se escondia atrás de uns latões de lixo quando alguém se aproximava.

Rusty e Ruby também dormiam ali no beco. Estavam tão imundos que seus pelos brancos com pintas estavam cinza. Quem olhasse de longe, não diria que os dois eram dálmatas.

Ella acordou e, mais uma vez, percebeu que não estava em sua casa. Pelo menos não em sua antiga casa, pois já estava começando a considerar aquele beco horrível o seu novo lar. Estava se acostumando a viver de sobras do lixo e aproveitar a água das poças que a chuva formava.

Ela olhou para um dos jornais sobre o qual estava dormindo e leu a seguinte notícia:

“Garota órfã desaparecida está sendo procurada pelas autoridades para que seja levada a um abrigo.”

– Vocês estão vendo isso? – Ella perguntou olhando para Ruby e Rusty – Estão querendo me colocar em um orfanato! Eu não posso ir! Não posso deixar vocês. Não posso abandonar a única família que eu tenho.

Ela os abraçou e novamente chorou ao lembrar de sua mãe. Havia sonhado com ela naquela noite, como em todas as outras. Sonhou que Evie voltava para buscá-la e levá-la para bem longe de tudo e de todos, para um lugar onde só as duas viveriam felizes e em paz pela eternidade. O mais duro para Ella é que ela sabia que isso não iria acontecer nunca, pois o único lugar onde sua mãe estava viva era em seu coração.

Ella se perguntava todos os dias por que as pessoas morriam. Isso só causa sofrimento aos outros, e não acrescenta nada na vida de ninguém, principalmente de quem amava a pessoa que morreu. Pelo menos era isso o que a garotinha pensava.

– Eu estou com tanta fome... – ela disse para si mesma

Ella abriu um dos latões de lixo e começou a procurar algo para comer. Nada ali dentro era limpo, gostoso ou cheiroso. O latão de lixo possuía vários restos de carne, cascas de frutas, ossos de frango, a maioria em decomposição. Era difícil encontrar algo comestível no meio de toda aquela nojeira. Sem contar os ratos e os insetos que viviam ali dentro e “dividiam” a comida com Ella.

E assim Ella levava uma vida de mendiga. Já estava tão acostumada a viver no meio da sujeira que nem se importava mais com os animais indesejados que ali apareciam. Não era a melhor vida de todas, mas para Ella era melhor viver em um beco sujo com os seus cães do que em um orfanato onde ela tentaria fugir nos primeiros dias.

Passado um bom tempo morando no beco, um dia Ella acordou e viu Ruby parada olhando-a. Apenas Ruby. E Rusty não estava junto.

– Ruby, onde está o Rusty? Ele nunca saiu daqui para nada.

Ruby virou-se para uma rua próxima ao beco e latiu. Não era um latido escandaloso, não parecia que algo preocupante aconteceria à Rusty.

– Ele está ali na rua? Eu não posso deixar o Rusty ali, e se ele acabar fugindo? Será que se eu sair do beco para pegá-lo alguém vai me reconhecer?

Ella estava com medo de ser vista e ser levada embora, mas a sua preocupação com Rusty era maior que o medo. Ela caminhou cuidadosamente até a rua tentando não fazer barulho algum. Fazia quase um mês que ela não saía daquele beco escuro. Era tanto tempo que o sol até incomodou as suas retinas.

Quando seus olhos se acostumaram com a claridade, Ella olhou bem e viu Rusty brincando com uma mulher. E não parecia ser uma mulher muito comum. Ela usava roupas pretas, maquiagens escuras e seus cabelos eram pretos com mechas brancas. Era uma mulher quase idosa, e não agradava muito a quem olhasse pela primeira vez. A mulher parecia estar contente por conseguir atrair um cão, e balançava um osso roído para cima e para baixo prendendo a atenção de Rusty.

Ella não gostou muito do que viu. Seu cachorro nunca tinha se afastado para brincar com outra pessoa antes.

– Com licença, senhora? O cão é meu.

A mulher misteriosa olhou para a sua esquerda, e um pouco abaixo do seu nariz viu Ella olhando diretamente em seus olhos com uma expressão neutra.

– É mesmo? – Perguntou a mulher – Ah, me desculpe, querida. Eu me encantei quando vi esse cachorro. Eu adoro animais, principalmente os cães dálmatas. Eles me chamam muito a atenção.

Ella estranhou tudo aquilo. Como aquela mulher teria visto Rusty? Ela havia entrado no beco?

– Como ele veio até você? – Ella perguntou puxando Rusty para o seu lado.

– Ah não, meu bem, fui eu que o chamei para brincar. Ele estava parado naquele beco bem ali. Estava com uma carinha tão tristinha... Não resisti e fiz sinal para que ele viesse até mim. Ele estava junto com outro dálmata. Eu fiz sinal para ele que viesse até mim também, mas o cãozinho só rosnou e me olhou brabo, então eu resolvi não incomodar mais. Ele também é seu?

– Ele não, ela. – corrigiu – E sim, também é minha. Acho que foi normal ela ter rosnado para você, a Ruby nunca se deu muito bem com estranhos.

– Ruby? Que nome lindo para uma cadela. E como se chama esse brincalhão que me fez companhia até agora?

– Rusty. – Ella respondeu sentindo que não deveria ter dito àquela mulher estranha os nomes dos seus cães.

– Adorei te conhecer, Rusty. – disse sorrindo para o cachorro. – De qualquer forma, me desculpe se foi muita ousadia da minha parte brincar com o seu cão sem que você soubesse. Não foi a minha intenção.

Ella ainda estava achando tudo bastante estranho. Aquela senhora não parecia gostar de animais e não aparentava ser uma pessoa tão simpática quanto estava demonstrando ser. Muito pelo contrário. Aparentava ser uma pessoa bem rabugenta e que não gostava de companhias. Apesar de estranhar, Ella achou que foi um pouco desnecessário falar de maneira fria com aquela mulher.

– Tudo bem. – Foi o que conseguiu responder, por conta da pequena timidez que estava sentindo.

– E você? Está sozinha? Onde estão os seus pais?

A palavra “pais” mexeu com o emocional de Ella. Fez com que lembrasse novamente de sua mãe.

– Eu... não tenho pais. Eu durmo ali naquele beco onde a senhora encontrou os meus cães.

– Não tem pais? – perguntou a mulher preocupada – Por Deus! Então você é órfã? É uma menina de rua?

– Bem, eu não me considero órfã. Rusty e Ruby são a minha família, então eu não estou sozinha. Mas acho que pode-se dizer que eu sou uma garota de rua...

– Que coisa triste. Você por acaso tem o que comer? Uma criança na sua idade não deve passar fome.

Ella começou a pensar que estava errada sobre a senhora que havia acabado de conhecer. Ela não era má. Só enganava pelas aparências.

– É, eu tento me contentar com a comida que eu encontro nos latões de lixo do beco onde eu moro. Não é nada gostoso, mas pelo menos eu não fico sem ter o que comer.

– Latões de lixo? Você pode pegar uma intoxicação alimentar, meu anjo. Na verdade, eu não sei como você ainda não pegou. Vem comigo! – A mulher disse puxando Ella – Eu vou levá-la para comer em um dos melhores restaurantes de Londres. Isso é um absurdo.

– Não! – disse Ella em um tom mais alto – Eu não posso.

– Como não pode?

– É que eu... desculpe, é um segredo que eu não posso revelar à ninguém.

– Conte-me. Acredite, nossa conversa ficará entre nós. Jamais direi à qualquer pessoa qualquer coisa que conversamos aqui.

– Mas se eu contar a senhora vai achar melhor recorrer ao Scotland Yard, às autoridades, ou alguém que queira me levar para longe.

– Eu já falei que pode confiar em mim. – A mulher respondeu parecendo verdadeira.

Ella estava com medo de contar tudo para alguém que havia acabado de conhecer, mas sentiu que realmente podia confiar nas palavras daquela mulher.

– Tudo bem. Eu sou Ella Feinberg, a tão comentada garota desaparecida no país inteiro. Depois que a minha mãe morreu, eu percebi que a única família que me restou era os meus cães. Se as autoridades me descobrissem, eu seria levada para um orfanato e me separaria deles para sempre. Eu já sei que nunca mais vou ver a pessoa mais importante da minha vida inteira, e ainda não aprendi a lidar direito com isso... se eu me separar de Rusty e Ruby, a minha vida vai perder o sentido.

– Espere aí... está me dizendo que és a criança mais noticiada e procurada de Londres? Encontrar você seria um dos assuntos mais falados em toda a Inglaterra.

– Eu sei disso! Mas eu não posso ser encontrada! Por favor, a senhora precisa entender, eu não posso abandonar os meus cães. – Implorou desesperada.

– Tudo bem, tudo bem. Não digo nada a ninguém. Mas você deveria ter procurado por ajuda antes.

– Eu já pensei nisso... mas o meu medo fala mais alto.

– Eu compreendo... Bom, de qualquer maneira, você não pode passar mais fome. Eu vou comprar algo para que coma e fique bem satisfeita.

– Não, senhora. Não deve gastar o seu dinheiro comigo. A senhora deve ter preocupações mais importantes.

A mulher olhou para Ella e sorriu com pena.

– Meu bem, digamos que o dinheiro não é o meu maior problema. Fique tranquila quanto a isso. Faço questão de ajudá-la. Ah, e por favor, não me chame de senhora. Pode me chamar de Freya, meu nome.

– Freya? – Perguntou para certificar-se de que pronunciaria corretamente.

– Sim, Freya. Freya DeVil. Volto em menos de quinze minutos, Ella.

Ella voltou para o seu beco e esperou por Freya. Ella havia se tornado uma pessoa sem muita segurança de si, então imaginou várias vezes que Freya não voltaria e que a tinha iludido.

Antes que a garota pudesse pensar em alguma outra coisa ruim, Freya apareceu no beco com vários pães e um queijo super grande. Dava para alimentar Ella e os dois dálmatas sem nenhuma preocupação.

– Você voltou! – Ella disse sorrindo. Talvez o primeiro sorriso desde o ocorrido.

– Mas é claro que sim. Sou uma mulher de palavra. Você gosta de pão e queijo prato?

– Sim, eu adoro pão e queijo! Sempre comia no café da manhã! – Respondeu feliz por saber que ia comer algo bom pela primeira vez em um mês.

Freya sentou-se junto à Ella em cima dos jornais e do papelão e as duas conversaram por horas. Contaram sobre suas vidas, seus problemas, seus momentos de alegria... Ella havia encontrado alguém com quem pudesse compartilhar seus sentimentos novamente. Freya foi embora ao anoitecer, mas prometeu que voltaria no dia seguinte e traria mais comidas para Ella. E como Freya já havia dito, era uma mulher de palavra, e sua palavra era sempre honrada.

A mulher voltou no dia seguinte e trouxe mais tipos de pães e outros frios para a garota comer. Ella sentiu como se estivesse em um verdadeiro banquete. As duas tornaram a conversar, e não paravam por nada. Novamente, já estava escurecendo.

– Não é ruim dormir em cima de papelão e jornais velhos? – perguntou Freya.

– É muito ruim, mas eu já me acostumei. Ninguém me incomoda aqui. Eu coloco os latões de lixo na frente da minha “cama” para que ninguém me note e durmo sossegada.

– Ah, então deve ter sido por isso que eu não a vi quando chamei Rusty para brincar, não é?

– Deve ter sido. – Respondeu sorrindo.

– Ella, você não aceitaria ir morar em um orfanato se eu prometesse cuidar de Rusty e Ruby? Pensa comigo. Você ia ter um lar, uma cama, comida boa... e eu os levaria para vê-la quando quisesse. Eu estou realmente disposta a cuidar deles e abrigá-los na minha casa. O que me diz?

Ela pensou bem, mas sua opinião ainda prevaleceu.

– Olha, senhora... desculpe, Freya. A ideia parece muito boa. Mas eu não consigo me imaginar acordando todos os dias sem os meus cães ao meu lado. Não me imagino indo dormir sem desejá-los boa noite, e nem comer sem dividir alguma parte da comida com eles. Eu sei que pode parecer um pouco bobo, mas eu sou apegada demais à eles.

– Não é bobo, minha querida. É uma demonstração de amor muito bonita. Desculpe-me a intromissão, eu apenas sugeri isso para que não continuasse a morar em um lugar tão ruim.

– Você não precisa se desculpar por nada, Freya. Tem me ajudado bastante desde ontem.

– Você merece muito mais que isso, Ella. É uma menina mais que especial. Eu sinto dizer que está na hora de eu ir embora, mas amanhã eu prometo que voltarei, e com mais comidas ainda.

– Mais? Desse jeito eu vou engordar! – Ella falou brincando.

Freya sorriu e se despediu de Ella.

– Até amanhã, minha querida.

Quando já era cerca de onze horas da noite, Ella se preparou para ir dormir. Empurrou os latões de lixo para frente do papelão com jornais, desejou boa noite aos seus cães e deitou-se. Vinte minutos após deitar, Ella sentiu a presença de alguém no beco. Pensou que pudesse ser alguém procurando-a, um ladrão se escondendo ou até mesmo algum bêbado que havia perdido a direção. Mas quando virou-se para ver, viu que não era nada disso.

– Freya? – Perguntou surpresa.

– Ella, você gostaria de passar essa noite na minha casa?

Aquela pergunta chocou Ella. A possibilidade de poder dormir em uma cama de verdade novamente pelo menos uma noite era excitante demais.

– Eu? Você tem certeza que está chamando uma mendiga suja para dormir na sua casa?

– Ora, não fale assim. Nada que um banho não resolva. Você vai adorar. Vai conhecer os meus filhos e o meu marido, sobre quem eu tanto falei quando conversávamos ontem e vai poder dormir em uma cama macia e confortável. Vamos, por favor, eu vou adorar ter a sua companhia.

Ella não estava conseguindo acreditar naquilo. Era bom demais para ser verdade.

– Obrigada, Freya! Mil vezes obrigada! – disse Ella muito feliz – É claro que eu aceito ir passar a noite na sua casa. Isto é, se Rusty e Ruby puderem ir junto comigo.

– É claro que sim. – Freya respondeu fitando os cães e recebendo um rosnado de Ruby – Eles serão os meus... convidados especiais.


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