Mesmo Que Não Venha Mais Ninguém escrita por Leoh Ekko


Capítulo 3
Coisas Frágeis




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A primeira ressaca é uma experiência inesquecível, este é um fato incontestável.

Dor de cabeça. Músculos cansados. Gosto de bile na garganta.

Artie se lembraria daquela sensação de pré-morte para sempre.

O mundo rodava como um carrossel. Não um daqueles com cavalinhos fofo que ele andava quando sua mãe o levava no parque em York Shire, mas sim com monstros horríveis com enormes garras que apertavam sua barriga sem nenhuma piedade.

Ele só queria ficar deitado na cama até que a morte finalmente desse as caras.

Deitado, ainda repassava a noite anterior em sua cabeça — tanto a parte divertida quanto o sei epilogo nada bacana no banheiro. Ainda não acreditava que tinha saído com pessoas normais para fazer coisas normais. Em comparação com o seu estilo de vida, ele era a Alice acordando após seu sonho de estadia no pais das maravilhas. Era tudo tão magico e surreal.

A música tocando na sua vitrola velha também falava sobre experiências com sonhos:

Sweet dreams are made of these

Who am I to disagree?

Travel the world and the seven seas

Everybody's looking for something

— Artie? — Chamou sua mãe, fingindo bater numa porta invisível que não existia. Era altamente nada recomendável que houvesse uma porta no quarto de Artie, uma que ele pudesse trancar e fazer o mesmo que fizera Naquele Dia.

— Hum? — Sua voz era como um gato que se engasgou com o próprio pelo.

— Eu comprei pão, querido. E aquela geleia que você gosta.

Foi quase tentador. Quase.

— Aquela de maçã?

— Sim.

— Ok. Daqui a pouco eu vou descer. Só preciso dormir mais um pouco.

— Mais um pouco? Mas já são quatro horas! Se eu não te conhecesse bem, diria que você está de ressaca.

Exatamente. Já eram quatro horas e ninguém havia ligado para ele para confirmar sua presença na festa. Era uma festa em uma maldita piscina, que ele com toda certeza não entraria... Só que mesmo assim não custava nada eles ligarem.

Artie estava a ponto de responder quando foi interrompido pelo som do telefone tocando. Sua mãe desceu para atender e ele aproveitou a oportunidade para levantar —os "sinais" de sua seção no banheiro na noite passada ainda eram bastante visíveis, ardiam e soltavam pus, ele nem conseguira vestir sua calça de pijama; por nada no mundo poderia deixá-la ver aquelas marcas.

Foi até o banheiro. Cheirava a tristeza e solidão. Teve o cuidado de não de olhar seu reflexo no espelho.

Escovou os dentes para tirar o gosto de cerveja e tomou suas duas pílulas da felicidade.

— Artie? Telefone!

Desceu a escada com passos de tartaruga e ergueu as sobrancelhas em sinal de "quem é?". Sua mãe sussurrou "uma tal de Nora" e resposta. Foi uma dose instantânea de ânimo para Artie, que correu para atender.

— Alô?

— Onde diabos você está? — Perguntou Nora, com uma voz de quem já estava embriagada, atropelando uma sílaba na outra — Por que ainda não está aqui? Precisamos de um Dg! Venha logo...

—Mas eu...

— ... E traga bebidas!

— ... Não vou.

Bip. Nora desligou. E Artie ficou sem saber o que fazer. Seu lado consciente o dizia que era melhor apenas comer os pães com geleia de maçã e voltar para a segurança debaixo do seu quarto, manter-se NP nível da normalidade. Mas outra parte lhe dizia para seguir o impulso, ir até a festa sem importar com as consequências, ele esteve se importando por toda a sua vida, e isso não tinha resultado em nada de bom. Resolveu seguir o impulso. Resolveu arriscar.

Subiu as escadas correndo. Foi até a sua pilha de discos animados e foi colocando-os na mochila enquanto calçava o seu all star vermelho. Colocou os olhos e passou um pouco de perfume, nem se deu ao trabalho de tentar abaixar seu cabelo.

Gritou um "estou saindo!" para a mãe e saiu.

* * *

O trajeto de ônibus até New Neigan leva apenas quarenta minutos, mas Artie nem se importou. Da janela, viu um balão vermelho planando sozinho perto dali. Ele era como aquele balão, leve. Queria voar até que os problemas que o prendiam no chão se transformarem apenas em um pontinho escuro insignificante. Ele não diria que estava feliz. Isso seria pedir demais. Sentia-se bem. Todas as pessoas querem que tudo fique bem. Nem mesmo desejam que as coisas sejam fantásticas, maravilhosas ou extraordinárias. Satisfeitas, aceitam o bem, porque, na maior parte do tempo, bem é o suficiente.

Ao descer no ponto, já notou a diferença entre o seu bairro e aquele. New Neigan não era conhecido por ser um lugar onde pessoas ricas moravam. Então muros grafitados, lixo jogado debaixo de viadutos e pistas de skate cheio de jovens drogados era o que ditava a paisagem do lugar.

Foi uma surpresa ver que a casa de Nora era até melhor a maior que a dele. Era uma de estilo americano — dois andares, um sótão e um porão, garagem grande e um quintal enorme. Bateu duas vezes na porta.

Nora atendeu.

— Achei que você não iria aparecer — disse ela. Ela estava maravilhosa com o seu maiô vintage cor bege, que se modelava ao seu corpo perfeitamente e faz parecer que ela ter mais curvas do que realmente tinha.

Artie apenas deu um sorriso tímido em resposta e estendeu a sacola com bebidas para ela, que as pegou com uma piscada de olho.

— Que casa bacana.

— Se eu não odiasse esse lugar, até iria agradecer. Entra logo, pode se trocar no meu quarto, é só subir a escada e entrar na terceira porta à esquerda.

Dito isso, ela deu meia volta e voltou para os fundos. Artie conseguia ouvir a risada de Lynn dali. E também conseguia ouvir uma cacofonia horrível. Uma música que parecia ser um hip hop alemão misturado com música pop francesa. Como conseguiam se divertir ouvindo aquela música?

Apressou-se para ir até lá quando notou algo.

Stanley estava sentado no sofá da sala, com uma cerveja na mão e olhando para o nada. Artie sorriu e se aproximou.

— Oi.

Stanley ergueu os olhos e pareceu surpreso em vê-lo ali.

— Olá.

Artie sentou-se ao lado dele, querendo fazer aquilo parecer natural, sendo que por dentro estava como uma coca cola prestes a estourar.

— O que está fazendo aqui? Por que não está ha piscina com os outros?

— Ah... Eu não gosto de piscinas.

— Ah. Sério?

Stanley bufou, tinha no rosto uma expressão de que estava envergonhado por alguma coisa.

— É que... Eu sei que é idiota, mas tenho uma cicatriz horrível nas minhas costas que não quero que ninguém veja.

Artie deu uma risada contida.

— Não deve ser tão horrível assim, deixa eu ver.

— Não! — Stanley parecia horrorizado com a possibilidade de alguém ver a sua cicatriz.

— Vai logo.

— Tudo bem.

Stanley virou o corpo e levantou um pouco a camiseta nas costas. Artie aproximou um pouco para poder ver melhor. E ali, à esquerda de sua coluna, onde os rins ficam, em meio a várias pintinhas, estava uma cicatriz em formato de ferradura de cavalo. Era até um pouco charmosa. Não havia motivo para Stanley ficar envergonhado de mostra-la.

— Seu bobo, nem dá para ver direito.

— Sério? — Stanley não conseguia esconder o alívio em sua voz.

— Sim. E todo mundo ali está bêbado, duvido que alguém vai notar.

— Oh, isso é bom então.

Ficaram em silêncio por um instante.

Os pensamentos de Artie davam cambalhotas, procurando algum assunto interessante para falar. Queria parecer engraçado sem soar idiota. E queria parecer inteligente sem ficar tedioso. Deuses, essa coisa de flerte era mais difícil do que os filmes faziam parecer.

E então, de todas as coisas estupidamente estúpidas para serem ditas, ele escolheu a pior.

— Você namora?

Oh, merda. Arrependeu-se instantaneamente ao dizer aquilo. Virou o rosto para o outro lado para esconder suas bochechas coradas. Bochechas idiotas.

— Não — respondeu Stanley. — Estou dando um tempo nessa coisa de relacionamentos.

Primeiro, ao ouvir o "não", Artie voltou a se sentir como aquele balão vermelho voando no céu azul. Depois, ao ouvir o "estou dando um tempo nessa coisa de relacionamento", agora ele se tornara um balão que foi esperado por um alfinete e que, murcho, disparava em direção ao solo novamente.

— Hum.

— E você? — perguntou Stanley.

— Não. Acho essa coisa de namoros muito insípida, que esvai muito fácil. Não estou disposto a enfrentar essa fragilidade.

E então, Stanley disse algo que Artie se lembraria para o resto de sua vida:

— Eu prefiro gastar meu tempo com coisas frágeis do que viver a vida toda sem ter a certeza de que alguma coisa sólida irá aparecer.

Artie pensou em algo igualmente profundo para dizer, mas foi interrompido.

— Ei! — gritou Nora atrás deles — O que estão fazendo aí? Venham logo.

Artie e Stanley trocaram um olhar, o nervosismo um do outro espelhado em seus olhos.

— Se você for eu vou — disse Stanley.

— Tudo bem — respondeu Artie, se levantando. — Mas antes preciso tirar essa merda de que chamam de música, meus tímpanos estão quase sangrando.

Pegou seu cd do Queen na mochila e foi até o cd player, ele ainda era pouco familiarizado com aquela tecnologia, mas sabia se virar. Dois apertos nos botões certos e a mágica começou.

Is this the real life?

Is this just fantasy?

Caught in a landslide

No escape from reality

Quando foi para os fundos, Stanley já estava dentro da agua. Artie ficou decepcionado por ter perdido a chance para ver as maravilhas que a camiseta de Stanley escondia bem de perto, aquela era, muito provavelmente, a sua única chance de ver aquilo.

Revirou os olhos para o próprio pensamento e tirou a camiseta. Por fora parecia bem à vontade fazendo aquilo, mas por dentro era um poço de vergonha. Todavia, analisando a cena ao seu redor, com os seus quase-amigos indiscutivelmente bêbados e parecendo não ligar a própria aparência, ele viu que estava sendo ridículo.

E então, ele tirou a calca, ficando apenas com o seu short de banho, que tinha desenhos de pica-paus — ele não usava aquilo a décadas.

Foi como se o mundo tivesse parado o que estava fazendo e começado a encarar ele. Melhor ainda, a encarar as suas marcas. Eram muitas. Verticais e horizontais. Superficiais e profundas. Algumas eram antigas e já cicatrizadas, outras eram recentes e ainda estavam vermelhas. Artie sentiu-se exposto. Como se fosse uma pequena célula em um microscópico. Mas, no fundo, ele sabia que aquela sensação, era apenas a sua imaginação depressiva querendo deixa-lo mal. Na verdade, todos ali continuaram bebendo, rindo e jogando agua uns nos outros.

Quer dizer, quase todos.

— Você vai entrar logo ou vai continuar aí com cara de bobo? — perguntou Andrew, que estava sentado na beira da piscina, com a sua mesma cara mal-humorada. Artie fingiu não notar o corpo incrível que aquele garoto tinha, que pouco importava para ele. Afinal, ele era insuportável.

— E você se importa? — retrucou Artie.

Andrew apenas deu de ombros.

— Que seja.

Artie chegou à conclusão que não valia a pena perder seu precioso tempo discutindo com aquele idiota. Simplesmente pulou na piscina e nadou para perto dos outros.

Mais tarde, Artie percebeu que o melhor remédio para a ressaca, era mais bebida. Ele, enfim, sentia-se bem melhor. Claro que teve que se empanturrar de sorvete na casa de Nora para que sua mãe não notasse que ele estava bêbado. Quando chegou em casa, apenas fingiu estar com uma dor de cabeça e subiu para o quarto.

Agora estava sentado na cama, lendo uma revista em quadrinhos. Ele as lia apenas pelas histórias interessante, ignorava os traços sexistas que transformavam as mulheres em meros símbolos sexuais.

Seus olhos já estavam pesados, prontos para serem fechados.

Colocou a revista ao lado do seu despertador — que marcava um alarme para as três da manhã, quando ele devia tomar sua próxima pílula da felicidade — apagou o abajur e se preparou para dormir.

Foi então que ouviu o telone tocar.

— Artie? Telefone.

Puxa vida, duas vezes no mesmo dia. Sera que aquilo tornaria um habito? Para alguém que estava acostumado a receber ligações apenas aos domingos, quando sua mae costumava ligar para a clinica, aquilo era surreal.

Desceu e atendeu a ligação.

— Alo.

— Artie? Sou eu Stanley.

O sono de Artie fugiu como Jerry perseguido pelo Tom.

— Ah, oi.

— Oi.

...

...

...

A respiração de Stanley era audível. Artie acreditava que as batidas do seu próprio coração também era.

— Stanley?

— O que? Ah, desculpe. O que você vai fazer amanhã?

Ai. Meu. Deus.

— Nada. Por que?

— Quer se encontrar comigo no Rogers amanhã?

Sim sim sim sim sim sim.

— Claro. Que horas?

— Umas duas.

— Pode ser. Te vejo amanhã, boa noite.

— Boa noite — respondeu Stanley, e desligou.

Artie não se sentia mais como um balão vermelho voando no céu azul. Nada disso. Ele sentia-se com um foguete da NASA decolando, saindo da Terra e partindo em direção a um oceano de estrelas. Que brilham e brilham como chuva de mil fogos de artifícios.

O que era um balão vermelho perto daquilo?


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