Mesmo Que Não Venha Mais Ninguém escrita por Leoh Ekko


Capítulo 2
O réquiem para uma noite de diversão




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Adultos podem falar o quanto quiserem sobre os jovens se sentirem invencíveis. É claro que alguns têm a ousadia de se sentirem assim, mas também havia uma voz interior dizendo a eles que estavam condenados.

Eram oito e cinco quando Artie entrou no Rogers com o braço entrelaçado ao de sua amiga, Lynn. Quem olhasse essa cena de longe, do balcão do bar, por exemplo, diria apenas que eram apenas dois adolescentes comuns entrando em um bar noturno, onde usariam identidades falsas para beberam até sentirem seus ossos virarem vidro. Mas não era isso. Ali, naquela cena, havia alguém despertando para a vida. Despertando em si o sentimento - o desejo — de se sentir condenado. Condenado a ser uma peça do jogo sem regras que era a vida além da porta do seu quarto.

Você consegue, Artie, ele dizia a si mesmo. Você está vivo.

O Rogers ainda estava um pouco vazio. O lugar cheirava a cerveja e à burritos fritos, era um pouco escuro e as mesas eram de arquitetura antiga, que dava ao local um toque vintage bem charmoso. E, claro, havia aquela maravilhosa jukebox que fazia as mãos de Partir coçarem de vontade de tirar uma moeda do bolso e correr até lá e colocar uma boa música.

Lynn o conduziu até uma mesa onde quatro jovens compartilhavam uma crise de risadas.

— Ei pessoal! — gritou Lynn.

Ela soltou-se dele e foi abraçar a todos. Artie sentiu aquela ansiedade que as pessoas têm quando conhecem amigos de um amigo, sempre há a possibilidade de ser ignorado. E isso seria péssimo.

— Pessoal, esse é aquele amigo de que falei para vocês, o Artie. Artie esses são Vincent, Andrew, Nora e Stanley.

Eles deram um coral de "olá" e se afastaram para o lado para que Lynn e Artie também pudessem sentar.

Artie levou cinco segundos para fazer uma avaliação superficial daqueles jovens sentados na mesa. Vincent parecia ser mais velho que eles, tinha o cabelo cortado em estilo, militar e falava de um jeito engraçado, como se tivesse sotaque francês ou algo assim. Andrew era muito bonito, com aqueles olhos verdes e o seu cabelo castanho em um topete estilo James Dean, mas tinha uma carranca no rosto como se o mundo ao seu redor fosse insípido e chato, aquilo tirava grande parte da sua beleza. Nora era loura, com várias pintinhas no rosto muito fofas e uma covinha no queixo muito charmosa. E então, havia ele.

Stanley.

Acreditar em amor à primeira vez tinha o mesmo misticismo que acreditar que passar debaixo de uma escada vai lhe render sete anos de azar, ou que sua mãe vai morrer se o seu chinelo estiver virado. Bem, talvez não fosse amor à primeira vista. Mas com certeza era tesão à primeira vez.

Stanley era a fusão perfeita entre um geek e um vocalista de uma banda de rock. Era musculoso sem parecer um daqueles lutadores de luta livre que a mãe de Artie adorava assistir na tevê. Tinha um sorriso que era como um pedacinho de Sol sobre o chão brilhante. E olhos claros como os faróis dos carros na estrada da noite. Parecia ser tímido, a julgar pela forma que ele sorria com os cantos da boca. E todo mundo sabe que as pessoas tímidas são as mais legais.

Artie conseguiria escrever catorze mil sacanagens que gostaria fazer com ele.

— Vocês vão querer beber alguma coisa? — perguntou Vincent, tirando Artie dos seus devaneios pervertidos.

— Uma corona, por favor — respondeu Lynn.

Vincent fez um sinal de jóia com o dedo e se virou para Artie.

— E você?

— Ah, não obrigado. Eu não bebo.

— Por quê?

Porque a merda dos meus remédios antidepressivos já fazem estrago no meu fígado sem que eu precise ingerir álcool.

Lynn o cutucou na costela.

— Qual é Artie! Não seja careta.

Todos o encararam, em expectativa.

Artie quis grudar no pescoço dela e esgana-la até a morte. Mas ela tinha razão. Ele não queria parecer careta na frente daquelas pessoas legais. E ele podia fazer o que quiser. "Diversão" era o remédio para depressão. Que se fodesse o seu fígado, ele só preocuparia com isso quando fosse um quarentão solteiro.

— Tá bom. Também quero uma corona.

Todos bateram palmas. Todos menos Andrew, mas ele era um mal humorado idiota, Artie nem ligou.

Nora foi buscar as cervejas, e enquanto ela estava fora, Vincent colocou uma moeda sobre a mesa.

— Andrew, vai lá colocar uma música boa. Não aguento mais ouvir essa droga de jazz suburbano.

Okay. Se havia uma coisa sobre qual Artie sabia, era música. Cerca de um terço do seu dia era gasto no simples e prazeroso verbo "ouvir". E era uma ótima oportunidade de demonstraram isso. Então, quando Andrew estava prestes a pegar na moeda com seus dedos idiotas, Artie foi mais rápido.

— Deixa que eu faço isso.

Andrew olhou para ele como um pistoleiro do faroeste olha para um rival.

Artie apenas levantou a sobrancelha, em desafio.

— O que você entende de música? — perguntou Andrew. A voz dele era rouca e grossa, como uma unha riscando uma lousa.

— É como perguntar para um dentista o que ele sabe sobre cáries. Deixa que eu escolho a música.

— Você é surdo? O Vint pediu para mim.

Artie revirou os olhos, já estava cansado daquele babaca.

— Faz assim, se eu não escolher a música certa, vou devolver a merda da moeda. Okay?

Andrew bufou e encostou as costas na cadeira, cruzando os braços. Parecia uma criança emburrada, só faltou o beicinho. Era hora de ensinar para aquela criança o que era música de verdade.

Artie se levantou e foi até a jukebox. Ele tremia em expectativa. Colocou a moeda no buraco e correu os olhos sobre as opções. E eram várias, blues, jazz, rock clássico, punk londrino, reggie. Artie podia sentir os olhos de Andrew fuzilando suas costas. Aquilo era como uma prova de tiro em uma academia de polícia: só havia uma bala e uma única chance de acertar.

E então, seus olhos cruzaram na opção da música perfeita. A trilha sonora ideal para aquela noite.

Respirou fundo e apertou o botão e a música começou a tocar.

Dreaming, da banda Blondie.

Artie se virou para a mesa novamente. Todos aplaudiram, Nora e Lynn começaram a dançar. Andrew estava com os olhos apertados presunçosamente.

Chupa essa, babaca.

Artie abriu sua corona e deu o primeiro gole. O gosto amargo desceu pela sua garganta. E ele já sentiu seu organismo se animando.

Fechou os olhos e deixou sua mente mergulhar naquela música.

Eu não quero viver de caridades.

O prazer é verdadeiro ou é só fantasia?

Filme-bobina é uma verdadeira raridade

Pessoas param e olham pra mim,

E simplesmente passamos reto;

nós somente continuamos sonhando

Aquilo era tão incrível: se permitir um momento de felicidade. E pensar que o comum era ele estar em casa com uma revista da Marvel em uma mão e um pacote de waffles na outra, se gabando que ele não precisava de ninguém para conseguir se divertir.

De repente ele já estava bebendo sua quinta cerveja e sentindo um estranho estado de euforia. Queria rir, mesmo sem um motivo aparente. Sua alma queria sair do seu corpo e ir para a pista dançar. Era como se ele estivesse usando um óculos de lentes especiais que o faziam enxergar o mundo de uma nova perspectiva, tudo era tão mágico e tão brilhante. As pessoas ao redor pareciam tão incríveis, com suas conversas regadas a bobagens, onde a palavra "vagina" era citada a cada duas frases.

Artie, literalmente, sentia-se fora de si.

"Perca o controle de vez em quando", disse a Dra. Hathaway em uma de suas consultas. "Não há necessidade de ficar se repreendendo o tempo todo. A liberdade também é uma questão do que você vai se permitir".

Na ocasião em que ouvira ela dizer aquilo apenas revirara os olhos e se perguntou quanto tempo ainda teria que suportar aquelas bobagens. Mas agora, ali, naquele bar, embriagado junto daquelas pessoas, ele a entendia. Seu timing às vezes era uma droga.

E então sentiu os pelos do seu braços se arrepiarem.

— Ei, eu adorei a sua camiseta. Eu amo esse filme — disse uma voz ao seu lado.

Não, não era "uma voz". Era a voz.

Ai meu deus. Ai meu deus. Ai. Meu. Deus.

Okay, responda. Mas não seja idiota ou esquisito. Seja normal e não estrague tudo.

Fale logo! Pare de olhar para ele como um idiota.

Eu também. Aquela história é incrível. Todo o conceito de viagem no tempo é tão legal e identificável. Quer dizer, quem nunca gostaria de voltar no tempo?

Stanley deu aquele seu meio sorriso com o canto da boca. Artie queria que ele o tratasse como uma ovelha em Jurassic Park e o devorasse inteiro.

— Sim, é verdade. O que faria se pudesse fazer isso? Voltar no tempo. O que você mudaria.

Eu não teria feito aqueles dois cortes no meu pulso. Ou não teria me afastado de Lynn só porque ela tem coisas que nunca vou ter. Ou teria dito adeus ao meu pai e dito que o perdoava, por tudo. Ou não teria vindo para cá usando esses óculos horríveis que me deixam pouco atraentes.

Mas é claro que não podia dizer aquelas coisas. Em um jogo de flerte, verdades fundamentais nunca são boas jogadas.

— Sei lá. Acho que voltaria para o momento em que minha mãe estava grávida e a fizesse escolher outro nome. Que droga de nome é Artie? Parece uma marca de atum.

Stanley riu.

— Eu teria impedido o John Lennon de conhecer a Yoko, aquela hippie de merda.

— Boa escolha.

Continuaram conversando por quase uma hora. Artie se sentia hipnotizado por aquele garoto. Falaram sobre música, e como a música pop tinha tendência a piorar e que o futuro, Britney Spears seria uma quarentona cheia de divórcios nas costas. Ou sobre como os filmes adolescentes daquela época se tornariam objeto de adoração das próximas gerações. E sobre como os desenhos japoneses podiam fazer retratos sinceros da natureza humana.

Descobriu que Stanley também tinha dezessete e também cursava o último ano. Ele estava estudando para fazer faculdade de direito e — apesar de não dizer em oz alta —, era óbvio para Artie que ele fazia isso somente por pressão dos pais. Descobriu também que o autor favorito era o Jack Kerouac e que tinha uma grande paixão pelo New Older.

Stanley tinha aqueles olhos grandes e profundos que pareciam enxergar a alma de Artie. E ele era tão gentil, sabia ouvir e esperar o momento certo de falar. Fazia piadas inteligentes e engraçadas, e o seu sotaque de Yorkshire era tão charmoso quanto as covinhas nas suas bochechas.

Artie não tinha noção de quanto tempo fazia desde que não tinha uma conversa como aquela... talvez nunca.

Um pouco depois da meia noite, o segurança mandou que eles fossem embora. Se a polícia pegasse-os ali era problema na certa

Os seis saíram. Bêbados e rindo como loucos.

— Ei, esperem! — gritou Nora, que precisou se agachar para vomitar no meio fio e agora corria para alcança-los.

Por algum motivo, Artie se lembrou de uma passagem de um livro que havia lido, do autor preferido de Stanley. Era uma citação que descrevia bem aquele momento:

“Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas”.

— Pra onde vamos agora? — perguntou Vincent.

— Para casa — respondeu Andrew, que conseguia falar e tragar o seu cigarro ao mesmo tempo. — Estou a ponto de desmaiar de tão bêbado.

— Ora ora, quem está sendo careta agora? — Artie não pode deixar passar aquela oportunidade de alfinetá-lo.

— Que seja, ninguém se importa.

Grrr!

Por que ele tinha que ser tão antipático?

Se Artie teve amor — ou tesão — à primeira vista por Stanley, por Andrew era o contrário. Queria que um caminhão aparecesse do nada e o atropelasse.

Estava a ponto de retrucar, quando Lynn gritou:

— Galera, não se esqueçam de que sábado é a festa da Nora! Vamos estrear a piscina da casa nova dela.

Todos fizeram um coro de “uhuuu” em comemoração. Todos menos Artie, que de repente estava com o rosto sério demais. Uma festa na piscina estava fora de questão para ele. Não podia deixar que eles vissem...

— Artie, você vem não é? — perguntou Nora, com aqueles seus olhos brilhantes que pareciam engolir toda a luz em volta. Tinha algo naquela inocência velada de Nora que a tornava ainda mais bonita, ela tinha um quê de Lolita no olhar.

— Hum, claro. Eu vou sim.

Oh, ele estava tão ferrado.

Ficou calado até o momento em que se separaram, os garotos e Nora iriam pegar um trem para New Neiman. Sua volta para casa foi melancólica. Estado de embriagues só é bom quando há pessoas por perto, a solidão chapada produz uma quantidade quase insuportável de pensamentos ruins aleatórios.

Quando entrou em casa, encontrou a mãe dormindo no sofá enquanto a televisão passava mais uma reprise de Ghost. Aquilo foi um baque para Artie, ainda sentia uma grade quantidade de culpa toda a vez que se lembrava de que a mãe estava sozinha, por causa dele. Por causa da doença dele. Por que ele não podia ser um filho normal como todo mundo?

Não teve coragem de acordá-la.

Subiu direto para o quarto.

Pegou um CD aleatório e colocou para tocar.

Era um álbum de músicas tristes, como sempre. Era um réquiem para uma noite de diversão. Tentou a todo custo espantar seus pensamentos ruins, mas não conseguia. Era como uma ferida que quanto mais se coçava mais dava vontade de coçar.

Uma lágrima solitária caiu pela sua bochecha.

Ele levantou da cama e fechou a janela. Depois foi para o banheiro e ligou a luz. Sua mãe havia escondido todos os objetos pontiagudos dele, mas ele ainda tinha aquele pedaço quebrado do espelho que podia ser solto. E podia usá-lo para fazer-se sangrar.


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