Mesmo Que Não Venha Mais Ninguém escrita por Leoh Ekko


Capítulo 10
Pulsos


Notas iniciais do capítulo

Hey people! Mais um capítulo < 3 . Obrigado pelos comentários, eles realmente me instimulam mais . Beijos, boa leitura



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Ele tinha catorze anos quando se se cortou pela primeira vez. Usou uma lâmina de barbear do seu, a dor física foi quase tão angustiante quanto aquela dor que ele sentia em um lugarzinho escuro e sujo na sua alma. Ele lembrava-se de ter ficado paralisado com a enorme quantidade de sangue que saíra. E mesmo depois de limpar a pia e todo o chão do banheiro, ainda conseguia enxergar toda aquela toda vermelha pelas paredes.

Era uma noite de natal. E o que era para ser uma noite feliz mostrou-se ser uma noite no inferno.

Tudo começou quando seu pai, durante a ceia, entregou-lhe o seu “presente” embrulhado em uma caixa cor de rosa. Lá dentro estava uma boneca Barbie. Um tapa na cara teria doído menos.

— Por que está fazendo esta cara? — perguntou seu pai. O hálito de uísque velho chegava antes das palavras. — Não era isso que você queria? O que mais uma garotinha da sua idade iria querer ganhar de natal?

Artie não respondeu, como sempre. Apenas chegou a olhar para a mãe sentada no outro lado da mesa em busca de apoio e, como sempre, não encontrou nada. Ela nem olhava na direção dele, evitando contato visual. Naquelas situações, ela sempre se fazia de surda, muda e cega.

Ele não respondeu porque, de algum modo, achava que merecia aquilo. Ele era o culpado por ser o que era. E foi para aliviar a culpa que Artie se cortou, ela era um monstro e precisava ser punido. Qual punição é mais válida do que a dor?

Com o passar do tempo, as agressões de seu pai tornaram-se mais frequentes e mais terríveis. Eles não se falavam, e Artie evitava a presença dele ao máximo, saindo de casa para a escola mais cedo, antes que o pai acordasse e passando a viver quase integralmente dentro de seu quarto. Durante as noites ele nunca podia se esquecer de trancar as portas. Sua mãe continuou omissa, tanto para os problemas do filho, como para os do marido, que havia desenvolvido um quadro grave de alcoolismo.

As coisas pioraram mais ainda quando seu pai parou de comprar alimentos e pagar as contas para continuar mantendo seu vício por bebida. Artie teve que vender alguns dos seus discos antigos para não passar fome.

E então, o pior — ou o melhor — aconteceu: seu pai capotou com o carro enquanto voltava para a casa durante uma nevasca e morreu antes que o resgate chegasse.

— Hoje é o dia mais feliz da minha vida — falou Artie quando a mãe lhe deu a notícia.

Ela ficou horrorizada e deu uma bofetada em Artie. Por um lado, ele ficou feliz por ter finalmente despertado alguma reação extrema na rainha do gelo. Por outro, ficou triste por ela, que agora teria que lidar sozinha com um filho adolescente todo ferrado.

O resultado não foi outro: mais culpa.

Quando ela saiu e o deixou sozinho no quarto, ele correu para o banheiro pegar a lâmina escondida dentro de uma embalagem de xarope para tosse. AS suas mãos tremiam e as lágrimas caíam como chuva, ele não soube como teve força o suficiente para fazer o corte. A culpa estava doendo-lhe as costas e ele precisava aliviar o peso. Artie nunca havia se cortado na região dos pulsos, pois sabia que ali era mais perigoso, limitava os cortes às coxas e ombros. Mas, naquela noite, sua escolha foi pulso. O corte foi mais profundo do que ele havia pretendido o suficiente. Artie sangrou tanto que desmaiou em poucos minutos.

O seu último pensamento antes de apagar fora: eu estou livre.

Contudo, dez meses depois, sentado em uma cadeira de um estudo de tatuagem, Artie soube que estivera errado. Terrivelmente errado. A morte não era liberdade, muito menos uma solução. Liberdade também é aquilo que as pessoas se permitem fazer. E agora, ele estava se permitindo tentar ser feliz.

— Artie? — Chamou Andrew. Ele ficara calado durante todo o tempo em que Artie estivera contando os fantasmas do passado.

Agora que terminara de falar, Artie voltou a ficar consciente da proximidade quase insuportável entre os dois. Um formigamento agridoce começava onde Andrew o tocava, no pulso direito, e sabia por todo o seu corpo. A presença de Andrew era tão deliciosamente opressora e seu cheiro de cigarro de cereja misturado com colônia masculina barata estava presente em cada respiração de. Andrew estava tão... ali.

— O que foi?

— Você foi corajoso — sussurrou Andrew.

— É, eu sei. É preciso muita coragem para tentar cometer um suicídio.

Andrew retirou a agulha do braço de Artie e ergueu a cabeça em sua direção. Seu olhar foi tão profundo como um mergulho no oceano, cheio de palavras não pronunciadas. Foi como se ele estivesse enxergando além de seu corpo, para dentro da alma.

— Não, não me refiro a isso. Você foi corajoso por ter sobrevivido e ter seguido em frente. Isso sim foi um ato de coragem.

O coração de Artie parou de bater por segundo. Apenas por um segundo. Porque logo em seguida seu coração começou a bater loucamente, bombeando euforia por todo o seu corpo.

— Meu Deus, eu nunca achei que viveria o suficiente para receber um elogio seu — Artie corou logo que terminou a frase, grato por isso ser imperceptível naquela luz azul.

Andrew jogou o pescoço para trás e soltou uma gargalhada, que foi tão contagiante que até mesmo Artie começou a rir.

— Agora cale a boca e deixe eu terminar meu trabalho;

A tatuagem estava quase terminada, só faltava fazer alguns contornos na vírgula. Artie esteve tão distraído contando sua história que se esquecera do pequeno desconforto causado pela agulha. Havia passado tão rápido. Era sempre assim quando ele estava sozinho com Andrew, o tempo se distorcia e passava mais rápido.

A escolha daquele símbolo para tatuar tinha um significado simples, porém, forte. Aquele ponto e vírgula representava que ele não havia terminado com a sua vida, e que ela iria continuar apesar de todas as dificuldades. Artie era, acima de tudo, muito grato por ter recebido aquela segunda uma segunda chance. E estava disposto a não ferrar com tudo desta vez.

— Ei, Andrew.

— Fala.

— Sobre aquele dia, no carro... desculpa por ter chamado você de babaca.

Andrew deu de ombros.

— Sem problemas, eu fui um babaca mesmo. Sempre sou um pouco hostil quando co0mnheço pessoas novas. Não foi nada pessoal.

Algo dizia a Artie que aquela última parte não era uma completa verdade.

— Por que?

— Eu não sei — respondeu Andrew, dando de ombros novamente. — Simplesmente sou assim.

Artie não ficou satisfeito com aquela resposta, mas não perguntou mais anda.

Quinze minutos mais tare a tatuagem estava pronta. Andrew se levantou e foi pegar o plástico para colocar por cima dela. Artie já sentiu aquela pontada de decepção por daqui a pouco já ter que ir embora.

— Eu não acho que é preciso ter coragem para tentar suicídio —- falou Andrew, ainda de costas. Pelo menos no seu caso, você estava doente.

— Mesmo assim eu deveria ter...

Andrew cortou sua frase.

— Continuar culpando a si mesmo só vai tornar as coisas ainda piores. É Só uma doença como qualquer outra. Como câncer. Só que em vez de ela te matar, ela te faz querer se matar.

Artie, de repente desconfortável, se levantou e foi até Andrew. Estendeu o braço para que ele pudesse colar o plástico na tatuagem. Suas pernas tremiam e seu coração vacilava no peito, olhou para o chão, evitando contato visual com Andrew. Tudo o que desejava naquele momento era dar mais um passo e beijá-lo. Mas não riria se permitir a sofrer outra ilusão.

Andrew terminou de colar e murmurou algo sobre esperar quarenta e oito horas antes de tirar o plástico, mas Artie não prestou atenção. Simplesmente pegou seus óculos em cima da mesa e caminhou até a porta.

— Artie, espere.

Sentiu uma mão o pegar pelo braço e puxá-lo para trás. Virou-se e encontrou seu jovem James Dean olhando-o com um semblante sério. A intensidade daquele olhar era inédita, e fez Artie querer sair correndo, e ao mesmo tempo, querer nunca mais sair dali.

— O que foi? — As palavras saíram da sua boca como um engasgo.

Delicadamente, ele puxou o braço para longe do toque de Andrew — um toque que era como fogo na neve fria. Deu mais alguns passos para trás a fim de ficar a uma distância segura. Mas, para seu completo horror e surpresa, Andrew foi se aproximando novamente. Cada passo foi uma doce ameaça. Por fim, Artie encontrou-se com as costas apoiadas na porta, com Andrew muito próximo a ele. Estavam próximos o bastante para sentirem a respiração um do outro, um movimento mínimo e estariam se tocando.

Artie não acreditava que aquilo estava acontecendo. Se não fosse a tatuagem formigando no seu pulso, iria pensar que estava sonhando.

— Andrew, por favor...

— Quero que você me prometa;

Aquele sussurro de Andrew soou como um grito nos ouvidos de Artie. Ele estava tão, tão, tão perto.

— Pro-prometer o quê?

Precisou prender a respiração para não se distrair mais com o cheiro de Andrew. “Sexy” é uma palavra estranha para descrever um cheiro, mas o de Andrew era, mais estranho ainda era ficar excitado com um cheiro, só que Artie estava, e muito — aliás, seria bom que Andrew não se aproximasse mais, pois iria notar a excitação de Artie em suas calças, e isso seria constrangedor.

Andrew, muito lentamente, ergueu a mão esquerda e tocou a bochecha de Artie. Um toque com mais delicadeza do que Artie achou que Andrew seria capaz de fazer.

Ai meu Deus.

— Prometa-me que vai continuar tentando — falou Andrew — E que não vai desistir, nunca. A vida pode ser fria, solitária e distante, mas é melhor vivê-la do que se entregar.

Cada uma daquelas palavras não foi somente ouvida por Artie. Elas foram sentidas. Cada letra ultrapassou a sua pele e mergulhou até o lado mais profundo do seu coração. Ele fechou os olhos e se perdeu no calor do toque queimando-o no seu rosto.

— Eu prometo.

Então ele abriu os olhos novamente e olhou para dentro da alma de Andrew. Era intimidador o modo como Andrew era impressionavelmente grande perto dele. Andrew era todo músculos e calor. Artie era ossos e ângulos tortos, ele tinha de erguer bastante o pescoço para conseguir enxergar os olhos de Andrew, que era quase trinta centímetros mais alto que ele. Artie sentia-se como um filhote de zebra encurralado por um leão.

— Artie, se você for esperto irá sair por esta porta e nunca mais voltar.

— A esperteza nunca foi o meu forte — sussurrou ele — E já era para eu ter ido embora, foi você que impediu de sair. Qual é o problema, Andrew? Do que você tem medo?

Andrew desceu a mão do rosto de Artie e enlaçou a cintura dele, em seguida ele encaixou o rosto na curva do pescoço de Artie.

— Tenho medo de não ter pulso suficiente para aguentar quando as coisas saírem de controle.

— Ah, mas eu posso ser corajoso por nós dois.

Artie o empurrou e depois ergueu-se na ponta dos pés. E então, com a mesma delicadeza que uma folha toca o chão ao cair de uma arvore durante o outono, encostou os lábios nos de Andrew. Naquele momento ele soube que as coisas já tinham saído do controle há muito tempo.


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Notas finais do capítulo

Esperam que tenham gostado!