Quando consegui me acostumar com o fato de ser uma herdeira, e meus meios-irmãos peças – mais precisamente, minhas peças –, e meus pais adotivos, caçadores, tudo mudou. Eu não os enxergava mais como uma família feliz. Eu apenas pensava que, a qualquer instante, Richard e Mariana podiam matar seus próprios filhos, por não serem da mesma “espécie”.

Pensava, também, em como Kevin e Bianca tornaram-se peças. Como eles descobriram isso, sem nem ao menos perguntarem á seus pais. Como os pais deles ainda não tinham feito o “serviço”, se eles já sabiam que os filhos eram peças. Estava tudo muito estranho. Essa família tinha muitos mistérios. Eu tenho que desvendá-los. E foi numa manhã de quarta-feira que eu fui ao quarto de Bianca, tirar essas questões á limpo.

– Bia? – Perguntei batendo na porta. – Posso entrar?

– Sim.

Entrei e fechei a porta atrás de mim. Percebi que Kevin estava lá também, que bom, melhor assim.

– Preciso fazer perguntas á vocês – Eu disse, tentando ser o mais séria possível.

– Claro – Sorriu Bianca, que estava lendo um livro, mas parou, marcando a página. – Sente-se.

Sentei-me na beira da cama; Bia estava sentada em cima dos travesseiros, na cama; e Kevin estava numa cadeira, apoiado nos próprios joelhos. Eu era o centro das atenções.

– Então... Vocês são peças, não? – Afirmaram com a cabeça. – Se vocês são peças, e seus pais são caçadores... Porque eles não... Hum... Aniquilaram vocês quando vocês nasceram?

– Meu Deus – Riu Bianca, junto á Kevin. – Aniquilaram? Essa é nova. Bem, é simples. Caçadores só podem aniquilar peças após as mesmas conhecerem seu herdeiro.

– Quer dizer, então, que agora que vocês sabem que eu sou a herdeira de vocês, seus pais podem matar vocês?

– Isso.

– E que negocio é esse de vocês serem meus guardiões?

– Bem... – Começou Kevin. – Todos os herdeiros têm dois guardiões, um masculino e um feminino. Esses guardiões protegem o herdeiro á todo custo, e sabem mais que as outras peças. Mas, tecnicamente, os guardiões não precisam ser os primeiros a entregar seus corações. Isso varia de herdeiro para herdeiro, de peça para peça.

– Entendi. E... Como vocês sabem tanto?

– Nós demos uma pesquisada – Sorriu Bianca. – Ah, caso você queira saber onde estão suas peças, você vai precisar disso – Jogou-me um colar com um pingente.

O pingente era redondo, como um círculo. Nele, estavam sete pedaços partidos como fatias de pizza. Eles estavam sem cor; sem vida. Em cada pedaço, tinha o nome dos sete pecados escritos. No meio, estava um coração, bem pequeno.

– Para que é isso? – Perguntei.

– Esse colar indica onde estão suas peças. – Explicou Kevin. – E, quando você conquistou o coração de uma, um desses pedaços fica com cor.

– Mas para que o coração no meio?

– Vou lhe explicar melhor – Bianca chegou mais perto de mim. – Cada um desses pedaços são os sete pecados, como você vê, têm os nomes ali. Quando você estiver tentando conquistar a inveja, por exemplo, você verá que o pedaço da inveja acenderá. O coração começará a encher, e quando ficar totalmente cheio, indicará que você conquistou o coração da inveja. Simples – Tomou folego, e quando o fez, virou o pingente. – E, aqui atrás, você tem que cravar seu nome.

– Por quê?

– Porque, se você estiver perto de uma peça sua, o pingente vai acender.

– Ah, entendi.

– Crave agora. – Kevin disse, jogando-me logo em seguida um pequeno objeto pontudo.

Fiz o que ele mandou, escrevi desajeitadamente “Elizabeth” no pequeno espaço do pingente, e logo coloquei o colar em meu pescoço. O mesmo era comprido, batera na medida do meu busto, então ficava fácil ver o pingente. Logo, duas luzes acenderam. Ira e preguiça.

– Ira e preguiça? – Murmurei baixinho. Bia, ao meu lado, comentou para Kevin.

– Então agora podemos mostrar nossas verdadeiras faces, Kev?

– Sim.

Do nada, Bianca deitou-se na cama, espreguiçando e bocejando. Kevin, com um olhar de reprovação, levantou-se da cadeira em que estava.

– Ah, eu aguardava tanto para esse dia. – Disse sem ânimo. – Não aguentava mais segurar minha raiva.

– Espera... Bia, você é a preguiça e Kevin é a ira? – Arregalei os olhos. Até que não é tão difícil quanto achei que seria.

– Não, eu sou a gula. – Ironizou Kevin. – Sim, é isso mesmo sabichona.

Oh, meu Deus. O Kevin vai ficar insuportável. Olhei para Bianca, ela parecia estar dormindo. Kevin abriu a porta, pronto para sair do cômodo.

– Ei! – Exclamei. Kevin parou na porta e Bia acordou. – Vocês poderiam me dar seus corações, por favor?

Depois de varias gargalhadas dos dois, Bianca respondeu:

– Não é assim tão fácil Lize. Você terá que nos conquistar.

– E como faço isso? – Perguntei desesperada.

– Ache uma forma. Essa é a parte em que nós, guardiões, não podemos lhe ajudar. – Disse Kevin, saindo do quarto, ainda rindo.

Cabisbaixa, comecei a olhar para o pingente. Só a luz da preguiça estava acesa, e o coração, estava vazio. Suspirei.

– Lize – Chamou-me Bianca. Levei um susto, achei que ela estivesse dormindo. – vou lhe dar uma dica.

– Ah, por favor!

– Há uma forma bem fácil de conquistar meu coração... – Aproximou-se de mim, sussurrando em meu ouvido: – Eu estou no outro time.

Demorei a entender. “Outro time”. Outro time... Hã? Ah, meu Deus. Bianca é... Ela é... Ah! Ela gosta de meninas!

– O... Que? – Falei tão baixo que Bianca não deve ter escutado.

– Bem, essa é minha dica – Sorriu e deitou-se novamente na cama. – Agora você terá que dar seu jeito. Pode me dar licença? Quero dormir...

Saí do quarto, ainda não acreditando nisso. Terei que conquistar a Bianca... Com amor... Estou tão confusa!

Comecei a procurar por Kevin, queria saber como conquista-lo. Se fosse com amor, isso sim seria uma coisa que eu não conseguiria fazer.

– Kevin? – Encontrei-o na cozinha.

– O que foi? – Ele parecia irritado. Vou ter que me acostumar com isso.

– Tenho uma pergunta. Crianças podem ser peças também?

– Podem. Qualquer pessoa pode ser uma peça.

– E como a pessoa sabe que é uma peça, sem ter conhecimento algum nisso? – Sentei-me em uma das cadeiras.

– Ela vai ganhar uma marca, assim como você ganhou uma. Essa marca só aparece depois que um herdeiro sabe que é herdeiro. Veja – Mostrou-me, em sua mão direita, uma marca branca. Nela, tinha uma estrela, com um “P” no meio.

– Porque a sua é branca? Achei que seria preta, como a minha...

– Isso é porque você ainda não me conquistou. A marca das peças é branca, até você conquista-la; aí ela se torna preta.

– É tanta informação... – Murmurei, colocando a mão em minha testa.

– Você ainda não viu nada, pequena herdeira. – Riu e começou a comer um sanduíche, que nem notei que ele estava fazendo.

– Ei, onde estão Richard e Mariana? Eles não estão na casa faz um tempo, não?

– Estão viajando. Só notou agora?

– S-sim... E, hum, quando voltam?

– Não sei. Porque tantas perguntas? – Ele parecia irritado novamente.

– Eu preciso proteger minhas peças, não preciso? Então. Preciso saber quando os caçadores estarão aqui. Não quero que ninguém machuque vocês.

– Ah, que linda declaração. – Ironizou, logo depois ficou sério: – Parece que você está levando a sério, não? Muito bom isso.

– O que vocês estão conversando sem mim? – Perguntou Bianca, adentrando a cozinha, coçando o olho.

– Nada demais – Murmurei. – E então, quando começamos a procurar as outras peças?

– Amanhã mesmo. – Respondeu-me Kevin, terminando seu sanduíche.

– Mas já? – Esbravejou Bia. – Kev, não dá para ser depois de amanhã? Droga!

– Não, será amanhã. Quanto mais tempo pouparmos, melhor será. Além disso, Elizabeth... Há algum lugar que você queira começar a procurar pelas peças?

– Sim, há.

– E onde seria esse lugar?

– O lugar onde eu passei minha vida. O lugar onde estão meus amigos, ou melhor, minha grande família. Tayo’ Kids.