O Relicário escrita por TWorld
DE REPENTE AS LUZES SE ACENDERAM. O lustre no teto brilhou intensamente e dois abajures perto das paredes também acenderam. A mulher com o candelabro calmamente apagou a vela e deu um passo á frente, olhando inexpressiva para os adolescentes ainda abraçados num bolo maciço.
— Posso perguntar para a senhorita porque não ficou esperando no carro?
Timidamente, Elisa soltou os braços de Helena e se adiantou. Quando falou, ela soou bem diferente da maneira animada de antes. Era o tom formal que estudantes em geral usavam apenas com diretores de escola e pais zangados.
— Perdão, Miss. Eu estava ansiosa por conhecer a cidade.
— Deveria ter aguardado. Fiquei preocupada quando o motorista me avisou da sua fuga.
Com outro sobressalto, os garotos ouviram alguém gritando:
— Onde a senhorita está?
— Aqui — respondeu a mulher.
E Helena, reconhecendo a voz, se endireitou e foi ficar ao lado de Elisa.
O Prefeito Henrique surgiu á porta, ele sorria gentilmente, aquele sorriso carismático que lhe fizera ganhar várias eleições.
— Eu achei a chave principal. Eu sabia que estava no porão. E o que vocês estão fazendo aqui?
Helena recuperara a coragem agora que percebera que não havia fantasma algum.
— Estávamos caçando fantasmas, papai.
— Há-há-há — ele gargalhou forçadamente — São só histórias, Helena. Não há fantasmas no Casarão Flint... — e abriu um sorriso sem graça para a mulher.
— É uma pena! — disse Elisa.
— Uma pena mesmo! — disse a mulher.
Henrique ficou sem entender. Mas sacudiu a cabeça e continuou num tom comercial:
— Como vê, a casa é antiga, mas está em perfeito estado, Miss Glaux. Claro, toda a construção é feita de pedra. Tirando um ou outro pequeno reparo na parte elétrica, o Casarão Flint é perfeitamente habitável. Eu posso agendar a visita de um técnic...
— Não será necessário — Glaux voltou-se para o Prefeito, ainda com rosto e voz inexpressivos — Eu posso fazer qualquer reparo, sou uma... — ela hesitou —... Expert... em consertos domésticos.
O prefeito assentiu com a cabeça. Para ele pouco importava quem consertaria, ele só queria ter certeza de se livrar daquele “elefante branco” em sua vida. O Casarão só lhe dava despesas, sem falar que a casa lhe dava arrepios desde que era garoto. Vender era a única solução.
— Podemos finalizar a compra mais tarde então? Que tal um jantar em minha casa?
— Isto também não será necessário. Podemos fechar a compra agora mesmo, o senhor não trouxe todos os papéis?
O prefeito abriu a pasta de couro que trazia, tirou várias folhas grampeadas juntas e uma caneta. Glaux segurou os papéis enquanto o prefeito fechava a pasta e a segurava deitada como uma mesinha improvisada. Glaux pôs os papéis sobre a pasta e estendeu a caneta para Elisa. A garota a pegou e se curvou para assinar, mas parou e disse num tom sério:
— Sr. Coluber, tem certeza do preço? Não me parece justo...
— Srta. Heinz — começou Glaux com uma impaciência contida — Não começaremos essa discussão novamente. O Sr. Coluber já aceitou a proposta inicial e inclusive o pagamento já foi depositado em sua conta. A assinatura agora é o final do processo. Apenas assine.
— Miss Glaux, essa casa vale pelo menos o dobro. E depois de vê-la, eu pagaria três ou quatro vezes mais sem problemas.
Henrique estava nervoso com essa situação. Ele não desejava ou precisava do dinheiro, ele só queria se livrar do lugar. Mas é claro que a repentina proposta de receber mais quase o fez hesitar, mas então ele ponderou o que era mais importante: se livrar da casa mal-assombrada que temia desde menino e que ninguém daquela cidade iria comprar ou ganhar muito dinheiro com a venda do Casarão e duplicar sua fortuna?
— Srta. Heinz, como bem disse a Miss Glaux, a venda já está praticamente concluída. Seria de péssimo mau-gosto se eu desistisse da compra para regatear um preço mais alto.
Elisa se convenceu, então curvou-se e começou a assinar vários papéis, um atrás do outro.
Depois da quarta assinatura, ela parou e ergueu o maço dobrado para mostrar para Glaux.
— O que é esse valor?
— Já se esqueceu? — disse Glaux — É o dinheiro para as nossas despesas diárias enquanto estivermos no Brasil.
— Isso eu sei, quero dizer, porque é tão pouco?
— É o suficiente, Srta. Heinz. O custo de vida nessa cidade não é alto.
— Se você está dizendo... — Elisa deu de ombros e assinou a última folha.
Henrique pegou os papéis e a caneta e os guardou novamente na pasta.
— Bem, isto conclui tudo — disse o prefeito eficiente — Agora, fiz duas reservas na Pousada Valkíria, os melhores quartos...
— Não será necessário — disse Glaux voltando-se para o prefeito e estendendo a mão para cumprimentá-lo — Nós ficaremos aqui.
Henrique apertou a mão daquela mulher misteriosa. Depois, deu uma boa olhada por todo cômodo. Parecia haver menos poeira num deserto do que naquela sala. O resto da casa não estava melhor. E o porão então, parecia a origem de todas as aranhas do planeta com tantas teias.
— Miss Glaux... — gaguejou o prefeito, mas foi interrompido.
— Não se preocupe, Sr. Coluber.
Algo brilhou nos olhos de Glaux. Aquele rosto inexpressivo demonstrou uma força escondida e tal determinação, que Henrique se sentiu pequeno. Ele curvou levemente a cabeça e já estava levando o grupinho adolescente para fora da sala quando Glaux falou:
— No entanto, seria de muita frieza minha recusar completamente sua proposta de jantar. Mas posso fazer uma sugestão? Porque Helena e seus amigos e o senhor, Sr. Coluber, não vêm tomar café da manhã conosco amanhã cedo? Seria uma honra compartilhar a mesa com vocês.
O prefeito, que ainda tentava agradar aquela mulher que, quem sabe, poderia investir na cidade, aceitou o convite em nome de todos. Depois, acompanhou os adolescentes pelo corredor, deixando Elisa e Glaux sozinhas na poeirenta sala de música.
Helena, curiosa, tão logo eles chegaram de volta à luz e ao calor do lado de fora do casarão, perguntou para o pai:
— Pode explicar todas aquelas assinaturas?
— Não é óbvio? Elisa comprou o Casarão Flint.
— Não é isso que eu quis dizer e o senhor sabe.
O prefeito sorria aliviado depois de vender o casarão.
— Eu entendi sim, filha. Você é quem não entendeu. Elisa comprou o casarão porque é rica.
— Quanto rica? — disse Astride de repente.
— Muito rica. Eu tenho uma casa ampla com dois andares, uma grande fazenda e sou sócio de metade dos comerciantes de Nova Borgeby, e ainda assim, me sinto pobre perto de Elisa Heinz. Quase um remediado.
— Ela parece ter a mesma idade que eu. É incrível isso — disse Gretel.
— Sim, mas porque ela é quem assinou tudo aquilo? — disse Hans — Mesmo sendo rica é menor de idade. Não seria Glaux para assinar por ela.
— Você está meio certo — disse o prefeito — É verdade que Elisa é menor de idade, mas ela é emancipada. Glaux é apenas sua tutora. E mesmo que Elisa ainda tenha somente 15 anos de idade, é ela pessoalmente que controla seu patrimônio.
Todos se calaram. No momento eles sentiam um misto de confusão, admiração e inveja, tudo ao mesmo tempo.
— Prefeito — disse Nícolas de repente — Pode nos contar quanto era o dinheiro para as despesas diárias?
— Apesar de ser sigiloso, pois afinal estou atuando como advogado delas, eu vou contar para vocês apenas para terem uma ideia de quem é aquela garota.
Henrique parou e se virou para ver todos de frente. Eles prenderam a respiração.
— Eu não sei qual é a cotação atual e nem preciso saber. É fato que a Libra Esterlina vale mais do que o Real. Então é óbvio que meio milhão de libras não é pouca coisa.
Helena, Hans, Gretel, Astride, Kirsten e Nícolas ficaram boquiabertos.
* * *
Uma vez sozinhas, Glaux contou a Elisa que o motorista tinha deixado as malas no hall de entrada antes de voltar para o Rio de Janeiro.
— Agora vamos começar a limpar. Você limpa o térreo e o porão, e eu o primeiro andar e o sótão.
Elisa fechou a cara para a tutora.
— Que foi?
— Eu pensei que faria a casa toda. Você prometeu!
— O que eu prometi é que você poderia limpar a casa, não disse que faria sozinha. E não faça essa cara emburrada. Olha, se você terminar o térreo e o porão antes de eu acabar com o andar superior, você pode limpar o sótão também. Que tal?
— Uhuul! — disse num tom muito animado — Que... quero dizer... muito obrigado Miss — terminou de dizer num mais formal.
Mas foi com certa alegria nos passos que ela saiu correndo para o porão.
Glaux voltou ao hall e subiu a escada. Ela levava para um corredor comprido com cinco portas: duas à direita, duas à esquerda e uma no fim do corredor, esta última presumivelmente levando ao sótão. Apesar de o Casarão Flint ter um térreo bem amplo, havia apenas quatro quartos, o que dizia claramente a Glaux que cada um dos aposentos devia ser bastante espaçoso.
Ela entrou na primeira porta a esquerda. Parecia um bom quarto para si. A mobília parecia ser toda de madeira de qualidade, apesar do estado de abandono. Ela se aproximou da janela e abriu uma fresta da cortina: Glaux viu a selva que era o quintal do casarão. Depois, voltando para o meio do quarto, tirou uma caixinha prateada do bolso. Era uma caixa bonita, de formato oval e com relevos de folhas e flores na prata.
Glaux colocou a caixinha sobre a cômoda e disse:
— Falta pouco agora, minha senhora.
De repente, uma luz verde começou a brilhar de dentro da caixinha. A luz em si parecia se expandir como fumaça, mas sem substância. Era apenas uma luz viva se esgueirando para fora da caixinha.
— Sim, minha senhora, sim. Eu tenho tudo preparado.
A luz verde oscilava, tornando-se mais forte e mais fraca, com a cadência de uma respiração, como se estivesse pontuando as falas de alguém.
— Sim, tudo está seguindo exatamente como o planejado. Ninguém suspeita de nada.
A luz verde se expandiu mais ainda e encheu todo o quarto.
Glaux então falou numa voz suave, mas cheia de ódio.
— Com certeza eles pagarão minha senhora. Todos os descendentes de traidores dessa cidade amaldiçoada. As trevas tomaram suas vidas e finalmente minha senhora terá a sua vingança.
A luz verde brilhou intensamente e então voltou para a caixinha de uma vez, fazendo o quarto voltar a se iluminar apenas com a pálida luz elétrica do lustre no teto e alguns dos raios mais fortes de luz do sol que conseguiam passam pelas cortinas.
— Começará em breve.
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comentem pliss *-*