O Relicário escrita por TWorld


Capítulo 14
Capítulo 14 - A Cabana




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NÃO É EXAGERO DIZER que a cidade inteira estava presente na festa que se seguiu ao jogo. A rivalidade entre os Midgards e os Asgards era grande, mas afinal das contas, Nova Borgeby era uma cidade bem pequena. Cada pessoa era parente de metade da cidade e amigo de infância da outra metade. Então apesar de todos serem muito competitivos antes dos jogos, toda a cidade festejava junta e em paz depois de cada jogo.

A prefeitura tinha organizado um grande churrasco num espaço aberto atrás do campo de futebol, onde muitas tendas tinham sido erguidas para proteger mesas e pessoas do sol. Toda a carne tinha sido generosamente doada pelo próprio Henrique Colúber. O gado era de um rebanho criado especialmente para engorda (ele fazia doações para todas as grandes festas da cidade durante o ano). Além da comida que saía da cozinha em panelas enormes e da carne preparada em grandes churrasqueiras de tijolos a certa distância das tendas, o show do dia eram as vacas assadas em roletes à vista de todos, um verdadeiro espetáculo para qualquer carnívoro. O cheiro delicioso de carne assada podia ser sentido na cidade inteira.

Todos comiam e bebiam à vontade, felizes depois de mais um jogo de seus times do coração. As crianças e os adolescentes também festejavam alegres mesmo sabendo que o Jogo de Abertura significava a volta das aulas em breve.

Mas nem todos estavam tão satisfeitos aquela tarde. Helena e Nícolas estavam em tendas diferentes. O casal parecia ter separado os amigos também. Junto com Nícolas estavam Adelfo e Hans, enquanto que Astride, Kirsten e Gretel estavam com Helena. Eles tentavam animar seus amigos cabisbaixos, mas ambos estavam resistindo. E eles tampouco explicavam o motivo de suas caras carrancudas e nem porque ficavam olhando um ao outro de longe, mas evitando o olhar se percebessem que o outro o observava.

Depois de algum tempo a cozinha começou a servir sala de frutas e outras sobremesas leves. Mas mesmo as pessoas que diziam já estarem satisfeitas, voltavam a ter apetite para a carne assada depois dos pratos doces.

Quando o sol começou a se pôr no horizonte, várias luzes foram acesas. Ninguém queria ir embora: confraternizar com toda cidade era uma festa rara, então eles gostavam de aproveitar pelo máximo de tempo possível.

Destoando da animação geral, Glaux apareceu na festa. Ela mantinha sua expressão fria de sempre, bem como a roupa cinzenta e os cabelos pretos preso num coque apertado. Ela foi direto para a mesa de Nícolas e pediu para conversar com ele. O rapaz se levantou da cadeira e os dois se distanciaram alguns metros. Ela falava em tom baixo para que apenas ele pudesse ouvir:

— Onde está Elisa?

— Como assim?

— Eu a procurei entre todas essas pessoas, mas não a encontrei. Alguém me disse que a viu com você hoje de manhã. Então eu te pergunto: onde está Elisa?

— Eu não sei... — começou o rapaz, mas ao perceber o olhar de Glaux, que ele não sabia dizer se era triste ou irritado, ele completou rapidamente —... Mas ajudarei a procurá-la!

Glaux assentiu com a cabeça e se virou para sair.

Nicolas começou buscando de novo em todas as tendas, havia muita gente então Glaux podia não ter visto a garota. Mas Elisa não estava em lugar algum do churrasco. Foi apenas quando ele pensou em procurar no campo de futebol que Nícolas se lembrou da Sala de Troféus. Mas porque ela ainda estaria lá? Por desencargo de consciência e poder dizer que procurara em todos os lugares possíveis, ele se dirigiu para a Sala de Troféus.

Nicolas se distanciou do barulho e andou pela rua vazia em frente à entrada do campo de futebol. A Sala de Troféus parecia exatamente igual ao que sempre fora, mas quando chegou mais perto ele percebeu algo diferente: a chave estava na porta. Ele tinha certeza que não vira chave alguma mais cedo na fechadura. Mas agora ela estava ali. O garoto testou a porta, mas estava trancada. Ele girou a chave e a porta abriu.

Elisa estava caída no chão perto da porta. Nícolas imediatamente se ajoelhou ao seu lado, mas aqueles olhos abertos não pareciam enxergá-lo. A garota estava em choque. Ele tentou chamar sua atenção, mas ela não reagia. Preocupado, Nícolas a ergueu nos braços. Ela de repente sussurrou:

— Cabana... a cabana... igual a eles...

Nicolas ficou ainda mais preocupado. Ele carregou Elisa pelas ruas desertas da cidade até o Casarão Flint. Ele se esforçou para puxar a corda da sineta da campainha enquanto se tentava manter a garota confortável nos braços. Glaux logo abriu a porta.

— Ah, que bom! Você a encontrou.

Apesar de sentir certa alegria na voz de Glaux, seu rosto era o mesmo de antes. A tutora de Elisa pediu que Nícolas levasse a garota para o quarto dela e ele levou Elisa nos braços escada acima.

Depois de deitá-la gentilmente na cama, Nícolas se afastou. Glaux entrou trazendo um vidrinho pequeno com um líquido vermelho. Quando o destampou, mesmo a dois metros de distância, Nícolas sentiu um cheiro muito forte e peculiar exalar da garrafinha. Parecia uma mistura de alho amassado com rosas e mergulhado em álcool puro. Glaux aproximou a garrafinha do nariz da garota, que esticou o corpo todo como se estivesse se espreguiçando e fechou os olhos, agora respirando mais tranquila, aparentemente adormecida.

— O que é isso?

— Os Heinz não mantém apenas um sistema de treinos agressivos, mas também receitas de remédios naturais. Essa é um tipo de poção para dormir.

— Poção? Você é o quê, uma bruxa?

Glaux permaneceu em silêncio.

— Tá, desculpe. Mas ela não tomou nada, você só a fez cheirar isso aí.

— Não é necessário. O aroma tem efeito calmante a certa distância, mas se respirado diretamente é o suficiente para fazer qualquer um dormir.

Glaux tampou a garrafinha e a colocou no criado-mudo. Por um minuto os dois ficaram obsevando Elisa dormir, até que ele quebrou o silêncio.

— Como ela ficou assim?

Nícolas estava impressionado com o estado de Elisa. É verdade que deve ter sido muito ruim ficar trancada praticamente o dia todo, mas Elisa estava em total choque!

— Elisa é claustrofóbica — explicou Glaux simplesmente.

— Isso é medo de lugares fechados, não é?

— Sim. Na verdade é muito compreensível, considerando sua história.

Nícolas olhou pasmo para a tutora.

— Compreensível? Como assim?

Glaux abriu a boca para falar, mas parou e pareceu pensativa antes de dizer:

— É uma história longa. Você não quer saber, ou quer?

Nícolas olhou ao redor e viu uma escrivaninha com cadeira a um canto. Ele pegou a cadeira e a puxou para perto da cama.

— Estou ouvindo.

Glaux se sentou na poltrona de couro ao lado do criado-mudo e começou a contar:

— Henry e Mara Heinz, os pais de Elisa, tiveram um casamento arranjado, então os seus primeiros meses de casados não foram muito bons. Mas eles estavam preparados para a situação e ao invés de tentarem se rebelar contra esse casamento forçado, eles tentaram fazê-lo dar certo. Um ano depois Mara anunciou que estava grávida. Os meses seguintes foram muito felizes para os dois. O nascimento de Elisa pareceu os unir ainda mais. Eles tinham se acostumado a fazer várias atividades juntos e a que mais gostavam era a caça. Os Heinz não são nobres, apesar disso, os Heinz vivem como nobres. A arte da caça, tão antiquada para as pessoas comuns, mas ainda muito sofisticada para quem tem tempo e dinheiro, é uma atividade praticada até hoje. Henry Heinz era um ótimo caçador. Ás vezes, seguindo uma presa, o caçador precisa passar dias sem retornar para casa. Naquele dia, quando Henry e Mara saíram para caçar juntos, eles me deixaram cuidando do bebê enquanto adentravam na floresta. Eles deveriam voltar em três dias, mas no quarto dia eu não tinha tido nenhuma notícia deles e ordenei as buscas.

Nícolas ouvia fascinado, realmente muito interessado em toda essa história. Eram coisas desconhecidas para ele. Caçadores, presas e casamento arranjado. Era incrível saber mais sobre Elisa e sua família.

— Como eles passariam tanto tempo longe de casa, eles estavam dormindo numa cabana de caça bem no interior da floresta. Eles comiam o que caçavam. Heinz tem costumes estranhos, não é?

Nícolas pensou em dizer que sim, mas lembrou-se do seu pai e de todos os outros pais competitivos de Nova Borgeby. De repente os Heinz não pareceram tão estranhos. Eles apenas mantinham os costumes de sua família através dos séculos. Todos reclamam que os antigos valores estão se perdendo, mas os Heinz são uma exceção.

— Nem tanto. O que aconteceu com eles?

— Houve um incêndio na floresta. O fogo não chegou até a cabana, mas a fumaça sim. A cabana se encheu de fumaça enquanto eles dormiam. Pelo modo como foram encontrados, parece que quando perceberam a fumaça, já era tarde demais. Morreram a caminho da porta, asfixiados. Traumatizada, Elisa desenvolveu claustrofobia. Não sei se percebeu, mas as janelas dessa sacada nunca são fechadas.

Nícolas olhou assustado para Elisa. Naquela mesma manhã ele a vira pular e gritar junto com os Asgards, uma garota normal e feliz. Ele sabia que ela era órfão, mas nem em seus piores pesadelos poderia suspeitar do passado terrível que ela guardava dentro de si. Com raras exceções, Elisa sempre estava sorrindo.

— Como Elisa acabou trancada? — perguntou Glaux.

— Eu não sei. Deixei Elisa e Helena sozinhas na Sala de Troféus...

Nícolas olhou para Glaux e a viu erguer uma das sobrancelhas num gesto inquisitivo.

— Que foi? Que foi? Acha que foi a Helena?

— Em primeiro lugar, eu não disse nada. E em segundo lugar, foi você que disse que as duas estavam sozinhas quando aconteceu...

— Não há provas quanto a isso — disse Nícolas exaltado se levantando — Então não fique aí acusando ela...

— Me desculpe, eu não queria insinuar nada. E reavaliando meu julgamento, acho que fui precipitada. Afinal, Helena e Elisa tem se dado muito bem desde chegamos na cidade, elas já são grandes amigas. Então Helena realmente não faria nada contra minha protegida. E eu continuo sem saber quem pode ter feito essa criancice.

Nícolas se acalmara um pouco enquanto ouvia Glaux falar, mas ficou confuso com a última palavra:

— Criancice? Como assim? O que fizeram com a Elisa foi cruel!

— Você está olhando a questão apenas do ponto de vista atual, depois de tudo que eu te contei. Com a exceção de nós dois e a própria Elisa, ninguém mais dessa cidade sabe da fobia de Elisa. E isso de trancar alguém é algo que uma criança faria. Uma brincadeira boba de uma criança inocente.

— Elisa não achou tão boba. Ela ficou destruída. Ela estava em choque. Quem fez isso...

— Eu insisto — disse Glaux com firmeza — A pessoa não tinha como saber o mal que faria. Nícolas, vamos esquecer tudo isso. Ninguém precisa saber o que aconteceu com Elisa. Eu conheço minha protegida e esse é um assunto muito delicado. Ela vai preferir que ninguém fique comentando e que a lembrem desse ataque. Eu até prefiro não saber quem é o responsável, e você também devia fazer isso: esquecer.

Nícolas assentiu com a cabeça. O garoto concordava que assim seria melhor.

— Pode me fazer um favor? — perguntou Glaux se levantando e indo em direção ao garoto — Eu não quero deixar Elisa sozinha. No seu estado eu não sei se a poção será muito eficaz. Pode ficar com ela enquanto eu preparo um chá calmante?

— Ah, sim. Claro que sim.

Glaux agradeceu com um meneio da cabeça e saiu.

Nicolas voltou-se para Elisa, que agora ressonava mais profundamente. Ele puxou o lençol para cobri-la melhor e sentou-se na poltrona de couro que Glaux deixou vaga.

— Helena seria capaz disso?

Nícolas conhecia Helena desde criança e confiaria sua vida a ela, mas no fundo de sua mente algo o incomodou: uma semente de dúvida. Antes de hoje de manhã ele nunca poderia duvidar da sua namorada, mas depois daquele ataque de ciúmes despropositado, Helena estava muito nervosa e exaltada. Ela seria capaz de trancar Elisa?

Nícolas não podia culpar Helena, mas também não conseguia inocentá-la.


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Notas finais do capítulo

Comentem, por favor *-*



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