Captura em Le Cap escrita por GilCAnjos


Capítulo 18
Agaté - Sentença Final




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Sábado

 

O incêndio já destruíra boa parte do vilarejo quando o pelotão francês apreendeu e levou embora seus moradores – ou, pelo menos, os que haviam sobrevivido ao fogo. Todos foram desarmados e acorrentados, sem exceção. Cada um tinha as mãos atrás das costas e algemadas, bem como seus pescoços envoltos por um grilhão pesado. Tanto as algemas quanto os grilhões eram conectados por correntes, o que forçava os negros a se manter em fila e os impedia de fugir.

—Esse aqui também está usando capuz! – disse um dos soldados ao perceber Agaté. Ele chamou um outro homem branco, que carregava um ferrete aceso. Ele tornou a falar, calmo: – Me diga, preto, você faz parte da tal... irmandade de Mackandal?

Agaté lentamente acenou com a cabeça para confirmar.

—Ah, sim. E, agora que você está preso, nossos chefes nos mandaram te dar uma chance de não levar ferro em brasa no peito. Basta você... Ah, direto ao ponto: você vai abandonar os ideais dos maroons e viver o resto de sua vida submisso, sem jamais retornar à sua filosofia homicida?

À memória de Agaté emergiram lembranças: lembranças da família, do navio negreiro, da fazenda onde trabalhara, de seus amigos na Irmandade, de Mackandal, de Jeanne...

—Nunca. – o Assassino respondeu, sucinto.

—Muito bem. – respondeu o soldado – Então é ferro.

O homem abriu o manto de Agaté e queimou o ferrete na brasa. Em seguida, marcou o tórax do Assassino, que engoliu em seco e gemeu ao sentir o fogo. Ele lembrou-se de sua juventude, quando seu dono marcara suas costas. Naquela ocasião, Agaté nunca sentira tanta dor, mas agora a dor física era suportável comparada ao seu remorso. O ex-escravo apenas sentiu um grande peso no coração após olhar para baixo e ver que seu peito agora estava marcado com a Cruz Templária.

—Já deve ser a vigésima vez... – comentou o homem com o ferrete para o companheiro – Por que será que todos eles preferem levar ferro a desistir?

Os negros então foram postos em filas e levados a um armazém na cidade. Em meio à confusão mais cedo, Agaté acabara por se separar de Baptiste, que foi levado a uma fila diferente. Ele reconheceu outros Assassinos no caminho, mas não havia sinal algum do Mentor. Agaté torcia para que ele houvesse conseguido fugir.

Mais tarde, ainda pela madrugada, cada um dos negros foi entulhado no armazém. O espaço para onde Agaté foi era amplo, mas ficou apertado depois que as outras dezenas de negros entraram. A visão era deprimente. Todos aqueles maroons, antes vozes de uma raça oprimida, haviam se livrado da escravidão apenas para voltar a ela novamente.

Quando deu por si, Agaté estava sentado, com os pés presos ao chão por uma corrente, do mesmo modo que havia sido posto apenas algumas horas antes. Por dentro ele queria fugir logo, mas, por fora, estava exausto demais para fazer qualquer coisa. Apenas quis dormir, na esperança de que aquilo tudo fosse um pesadelo. Ele acordaria, suado de medo, no vilarejo dos Assassinos, para em seguida se contentar ao perceber que o esconderijo dos maroons ainda estava de pé e seus moradores ainda estavam livres.

Mas, claro, não era um sonho. Agaté acordou na manhã seguinte, quando um capataz entregava aos negros seu “almoço”: um pão velho para cada um. Agaté, assim como os outros, não contestou, embora quisesse fazê-lo. Ele comia o seu pão quando ouviu um pequeno choro bem perto dele. Olhou para a esquerda para perceber que se tratava de um garoto. Não devia ter mais de dez anos de idade. Agaté decidiu consolá-lo. Mas por quê, exatamente? O menino não era o único que chorava. Por todo o aposento, pessoas tristes fungavam.

Eram, no entanto, adultos que sabiam exatamente o que lhes aconteceria; nada no mundo poderia Agaté falar para consolá-los. Com o menino talvez fosse diferente. Talvez se dissesse que tudo ficaria bem ao menos o menino acreditasse nessa mentira.

—Ei, garoto! Por que está chorando? – perguntou Agaté em crioulo, forçando um sorriso nada espontâneo.

O menino não respondeu.

—Você parece faminto. Já comeu seu pão?

—Já. – ele gemeu, baixo.

Agaté partiu o seu próprio pão em dois pedaços, e entregou um deles ao menino.

—Fique com isso. Não estou com fome. – ele mentiu.

O garoto suspirou.

—Obrigado. – ele disse em voz baixa.

—De nada. Agora, garoto, fale comigo. O que te deixa assim?

Ele choramingou, comeu um pouco do pão, e falou:

—Minha mãe. Não a vejo desde ontem. Eu a vi tentando fugir do incêndio, mas... não sei se conseguiu. Eu ia procura-la, mas então vieram os soldados e me levaram embora.

Agaté hesitou.

—Garanto que ela deve estar bem, por aí em algum lugar. E um pai, você tem?

—Ele morreu. Dois dias atrás. Ele estava lutando com os capatazes quando vocês atacaram a fazenda para nos libertar.

O Assassino fitou o chão, em pesar.

—Meus pêsames, garoto. – depois de uma breve pausa, continuou: – Mas você estava na fazenda de Duvalier?

—Sim. Trabalhava lá desde que nasci.

—E o que achou de viver em liberdade nesses últimos dois dias?

O garoto limpou uma lágrima.

—Muito bom. Eu fiquei confuso no começo, porque eu não estava acostumado a não ouvir ordens o tempo todo... – o garoto fitou Agaté – Quando eu crescer, quero ser que nem vocês, encapuzados. Vocês são fortes e bons. Eu quero ter a minha vingança, e matar todos os franceses que puder. Eu odeio os brancos.

—Vá com calma, garoto. Nós, encapuzados, não matamos por ódio. Matamos apenas os homens maus, pois nós só queremos um mundo melhor para todos.

—Eu também quero um mundo melhor.

Agaté riu.

—Vou deixar uma vaga na Irmandade pra você. – Agaté estendeu a mão para o pequeno – A propósito, eu sou Agaté. Você tem um nome?

O menino cumprimentou o Assassino.

—Jeannot. Jeannot Laurent.

—Laurent?

—Sim, o sobrenome do meu dono.

—O sobrenome do seu ex—dono. Você já é um homem livre, tem que arranjar o seu próprio sobrenome.

—Acho que não sou mais livre, não é? Eles vão nos fazer voltar a trabalhar, não vão? – Jeannot perguntou, fitando Agaté.

—Prometo para você, amiguinho: você não vai nunca mais voltar a ser escravo.

Mais tarde, o armazém recebeu uma visita: um mercador Templário passava em meio aos cativos, tentando convencer um mercante de escravos a, como disse o Templário, comprar aquele lote.

—É uma proposta muito interessante, ainda mais pelo preço proposto. – disse o mercante em francês com um sotaque espanhol, um homem de casaco e barba arrumados, olhando em volta para os negros. – Que belo lote! Tem pretos e pretas de todas as idades. Se eu partir de Le Cap com o meu negreiro cheio deles, posso revender todos antes de chegar a San Agustín! – o olhar do mercador foi de encontro a Agaté. O homem se agachou, segurou o queixo do Assassino e analisou o seu corpo – Este aqui, por exemplo. Que espécime excelente! Nem muito jovem nem muito velho. É forte e, pelo que vejo, muito vigoroso também.

—Só para constar... – o Templário interrompeu – Esse aí não está à venda.

—Ora, mas por que não, Sr. Lambert?

—Está vendo o símbolo no peito dele? A cruz indica que ele é um dos guerreiros do grupo. Acredite em mim, colocar muitos deles no seu navio é pedir para que realizem um motim.

—É mesmo? São dos maroons, então? Duvido que os maroons possam tomar o meu navio. Ainda mais agora que o líder deles, Mackandal, está morto.

Essa frase pegou de surpresa Agaté e outros negros em volta. Então Mackandal não só fora capturado como também estava morto.

—Ah, Sr. Orozco, eles não são maroons quaisquer. Acredite em mim, não são o tipo de pessoa que se deva subestimar. Venderemos esses em avulso para compradores diferentes, por medidas de segurança.

Orozco pensou por um instante.

—Que seja, então! Separe os pretos que estiverem à venda, pois eu irei compra-los sim! Podemos carregar o navio amanhã à tarde.

E, assim, Agaté passou de Assassino a mercadoria. E, pelo visto, os Templários não queriam dar à Irmandade uma chance de se recompor. Mandariam cada um dos Assassinos para um lugar diferente. Uma tática ardilosa para garantir que eles nunca mais se juntariam contra as autoridades.

Pela noite, Agaté, e aparentemente todos os outros já haviam perdido a esperança. No momento quase todos no aposento dormiam, amontoados. O pequeno Jeannot adormecera ao lado de Agaté. O tempo passava entediado. Nada acontecia e os negros só faziam aguardar a venda no dia seguinte. Mas, em meio à noite, dois vultos quebraram a monotonia de Agaté e dos poucos acordados. Era impossível identificar seus rostos. Nenhum dos cativos comentou nada. Apenas observaram conforme os vultos destrancavam as algemas de homens específicos entre a multidão. Quando um deles chegou para destrancar Agaté, o Assassino enfim reconheceu o rosto por baixo do capuz.

—Babatunde? – ele perguntou.

Tèt mwen. – o Mestre Assassino sussurrou em resposta – Estamos reunindo os Assassinos. Vamos planejar o próximo passo.

Babatunde segurava um molho de chaves, com a qual libertou Agaté da corrente que o prendia. Antes de se levantar, ele depositou Jeannot com cuidado no chão. Em seguida, ele seguiu Babatunde. Capatazes guardavam a porta do armazém, e um outro passava pelos corredores. Os Assassinos, tomando cuidado para não serem vistos, pularam do armazém por uma janela. Do lado de fora, reuniram-se a cerca de dez Assassinos.

—Babatunde, o que aconteceu?

—Alguns de nós conseguiram escapar dos soldados franceses. Vamos, corramos até o esconderijo para nos reorganizarmos.

Os Assassinos velozmente abriram caminho por entre a selva até chegar ao vilarejo da Irmandade, agora queimado e deserto. Todos se reuniram na casa principal, em volta da mesma mesa onde ocorrera a reunião da terça-feira. Inicialmente os homens presentes discutiram entre si. Em meio a eles estava Baptiste, com o ombro bastante ferido. Sua carne estava exposta, e era obviamente difícil para ele manter o braço em uma posição que não fosse dolorida. Era quase como se o braço pudesse cair se puxado com força. Baptiste então lançou um olhar zangado a Agaté. Por sua vez, ele achou que era melhor não conversar com o amigo por enquanto. Em vez disso, observou o aposento à sua volta. Em um criado-mudo que estava tão queimado que poderia desmoronar a qualquer instante, Agaté abriu uma gaveta. Nela havia pertences de Mackandal. Cartas, agora totalmente ilegíveis, uma zarabatana em bom estado, entre outros. Agaté tomou a zarabatana para si e voltou à reunião com os outros Assassinos, que ainda discutiam.

Silans!— proferiu a voz grave do Mestre Assassino Jean. – Cavalheiros, hoje mais do que nunca precisamos nos manter unidos!

—Nossa Irmandade sofreu um ataque direto... – completou Babatunde Josèphe – ...e precisamos discutir como iremos nos recompor!

Kote Mackandal? – alguém perguntou sobre o Mentor.

—Mackandal está morto.

Mais discussões emergiram. A notícia ainda era surpresa para alguns.

—Amigos, concentremo-nos! – exclamou Kobina – Uma centena de bons negros e negras irá ser vendida para um negreiro amanhã se não fizermos nada agora!

—Muito bem observado, Kobina! – disse Babatunde – Não sei se todos já sabem, mas eu, Jean e alguns outros, em um momento de sorte, pudemos escapar do incêndio e dos soldados franceses.

Jean tomou a palavra.

—Fiquem tranquilos, pois nós cuidamos do negreiro. Contratamos um timoneiro branco, e o infiltramos na tripulação do navio em questão. Nós demos ordens para ele atracar o navio em Inagua, na base dos nossos aliados Assassinos. Assim que ele chegar lá, os Assassinos tomarão a nave e libertarão os maroons. Esta questão está resolvida.

—Mas os Assassinos de Inagua foram avisados desse plano?

—Se houvesse ao menos um Assassino dentro do navio... – adicionou Agaté – Mas os Templários marcaram cada um dos nossos, e não os venderão.

—Babatunde não tem a marca. Ele deveria ir!

—Perdão, mas o meu próximo destino é Port-au-Prince. – respondeu Josèphe – Tenho Assassinos para os quais relatar, além de uma esposa e um filho pequeno me aguardando.

—Eu escapei da marca de ferro também. – falou Jean – Não se preocupe, eu entrarei no meio da venda com o maior prazer, e ajudarei os maroons a fugir quando chegarem em Inagua.

Kobina tornou a falar:

—Ótimo, mas... como diabos Mackandal foi morrer? Explique essa história direito, Babatunde!

—Ora, os Templários nos emboscaram. – respondeu o Mestre, aborrecido – Eles vieram atrás dele, e ele não pôde escapar. Foi executado. Queimaram Mackandal em praça pública, para toda a cidade ver. Tentamos salvá-lo, mas não chegamos a tempo.

Os Assassinos hesitaram e ficaram em silêncio, refletindo sobre aquela grande perda. Alguns segundos perduraram até alguém perguntar:

—Mas por anos nós conseguimos nos esconder dos Templários... Como eles vieram a nos emboscar justo agora?

Eu sei como!— exclamou Baptiste.

Os Assassinos o fitaram.

—Então desembuche, Baptiste. – falou Babatunde.

—Um traidor nos denunciou. Agaté!

Todos os olhos se voltaram para Agaté. Ele e Baptiste, em lados opostos da mesa, se encararam.

—Baptiste, o que quer que você pense que eu fiz...

—Eu sei exatamente o que você fez. Eu vi com os meus próprios olhos. Você saiu para matar um alvo e não voltou mais. Ficou um dia fora do esconderijo, sem contatar nenhum dos nossos. Então, quando volta... no meio da cerimônia, quando vejo você, vestindo o seu próprio manto, indo em direção à reserva de pólvora... Em seguida, a reserva de pólvora estava pegando fogo. Sem falar que Shay Cormac estava bem aqui, no coração de nosso vilarejo. Quem o deve ter trazido até aqui? Basta ligar os pontos, senhores. Agaté passou dois dias inteiros no antro dos Templários, mancomunando contra nossa Irmandade. Quando volta, trazendo consigo um dos nossos maiores inimigos, causa um incêndio, ao mesmo tempo em que o exército enviado por Templários ataca a nós todos. Devo observar que esse foi um plano bem arquitetado, e que não pode ter sido feito em apenas um dia... Por quanto tempo você andou contatando os inimigos pelas nossas costas? Dias? Meses? Anos? Na quinta-feira, quando o Mentor te deu ordens para matar William Cavendish... você sequer o matou? Ou mantê-lo vivo também era parte do seu plano templário?

Ninguém disse nada por alguns segundos.

—Baptiste. Como você pode fazer uma acusação dessas contra mim?

—Responda!

—Eu não fiz nada disso, Baptiste!

—Agaté... – interferiu Babatunde – É melhor explicar essa história para todos então.

—Mas... Eu... Você vai acreditar nisso? – Agaté disse, incialmente embasbacado. Tomou uma expressão zangada em seguida. – Quando eu saí para matar William Cavendish, eu matei William Cavendish, e limpei os vestígios. Mas me encontrei com dois Templários no caminho. Eles me imobilizaram e me fizeram de refém! Eles passaram dois dias me interrogando, na casa do próprio Guillaume Duvalier, querendo saber qual era a localização do nosso esconderijo. Mas garanto, senhores, que eu não a revelei!

—Se você não revelou nossa localização, como eles chegaram até aqui?

Agaté engoliu em seco. Ficou claro para todos que o seu corpo se tomou de nervosismo e culpa.

—Eles... Eles me doparam! Me deixaram inconsciente. E foi então que eu...

Ele hesitou. Babatunde novamente tomou a palavra.

—E foi então que você...?

Agaté suspirou. Resignado, assumiu a culpa:

—E foi então que eu revelei a localização do esconderijo.

Todos ficaram surpresos.

—Agaté... – murmurou Kobina, em choque – Você nos traiu!

—Eu não estava consciente! Eu não poderia ter evitado!

—E como explica o incêndio, Agaté? – vociferou Baptiste.

—Aquele não era eu! Era um Templário! Olatunde Xavier, vestindo as minhas roupas para se passar por um de nós. Vocês não podem acreditar que eu faria uma coisa daquelas!

O Mestre Jean logo falou:

—Vejamos, Agaté. Na história de Baptiste, você traz os Templários até aqui e ainda faz um incêndio para nos enfraquecer. Na sua história, você foi dopado e denunciou a nossa localização.

—E de quebra informou que a cerimônia seria o melhor momento para atacar. – completou Babatunde – Você percebe, Agaté, que em nenhuma das histórias você é o mocinho?

Agaté permaneceu boquiaberto, sem saber o que responder. Baptiste interveio:

—De um modo ou de outro, o crime cometido foi traição. Um crime punido com morte. Todos de acordo?

Olhar para o homem que um dia fora seu melhor amigo, agora o acusando de traição e o condenando à morte... Agaté não conseguiu conter a lágrima que saiu de seu olho. O Mestre Jean logo deu seu parecer:

—Bem... Se o que você diz é verdade, Agaté... Se você realmente nos denunciou contra a sua própria vontade... Acho que não precisamos mata-lo.

O réu quase sorriu, porém o Mestre Babatunde completou a frase em seguida:

—Mas também não podemos mantê-lo entre nós.

O Assassino permaneceu em choque. Não sabia o que fazer, o que dizer ou para onde olhar.

—Está tarde e você mal comeu hoje. – declarou Babatunde – Você poderá passar a noite aqui no vilarejo. Mas amanhã de manhã, assim que acordar... você juntará os seus pertences, o que quer que tenha sobrevivido ao incêndio... e irá embora de Le Cap para nunca mais voltar. – houve uma pausa – Essa é a minha sentença final. Alguém se opõe?

Apenas Baptiste levantou a mão, com sangue em seus olhos. Ele queria a qualquer custo resolver aquilo com morte.

—Apenas um voto contra. Então sua pena está decidida, Agaté. Você está oficialmente em exílio da Irmandade dos Assassinos de Saint-Domingue. Tenha uma boa vida.

O réu olhou em volta. Ele esperava que alguém dissesse algo, que alguém lamentasse sua ida ou se despedisse dele. Mas o silêncio ensurdecedor tomava a sala. Agaté se virou e começou a caminhar em direção à porta que levava ao lado de fora. Quando chegou lá, parou. Sem olhar para seus colegas Assassinos, ele soltou um murmúrio:

—Duvalier, o Templário. Antes de vir para cá, eu me certifiquei de mata-lo. Ouviram? Guillaume Duvalier está morto.

—François Mackandal também. – proferiu a voz de Baptiste, austera.

Domingo

 

No centro da cidade de Cap-Français, um dos maiores polos econômicos das Índias Ocidentais, Agaté se encontrava de cócoras no galho de uma árvore. Ele não mais usava o seu tão querido manto de Assassino ou suas inseparáveis lâminas ocultas. Agora ele não era mais Agaté, o Assassino. Era apenas Agaté, o negro sem dono e sem causa. E, quando se vive em Saint-Domingue, essa é a pior coisa que se pode ser; até os escravos cativos têm um propósito na vida, mesmo que seja servir. As únicas coisas que restavam a Agaté eram as roupas do corpo, a velha zarabatana de François Mackandal, uma Cruz Templária tatuada com fogo, uma adaga e uma bolsa de moedas que Agaté furtara quinze minutos antes.

O ex-Assassino agora apenas observava o palanque feito na praça principal, onde o corpo queimado e sem vida de François Mackandal jazia inerte. O houngan representava a única real esperança que o povo negro de Saint-Domingue tinha de um dia ser livre.

E agora essa esperança estava morta.

Por causa de Agaté.

Se alguma coisa poderia confortá-lo, era o fato de que a centena de maroons capturados embarcaria num navio negreiro, mas desembarcaria em um porto seguro. Era irônico pensar que até aqueles cativos tinham um lugar aonde ir, e Agaté não. Talvez a bolsa de dinheiro furtada pudesse pagar uma passagem de navio. Poderia viajar para qualquer cidade das Índias Ocidentais, procurar os Assassinos do local e tentar se redimir. Nesse sentido, a sua memória foi conduzida para um local específico: Louisianne, a outra colônia francesa do Golfo. Vários anos antes, Agaté se apaixonara por uma mulher. A paixão foi interrompida quando Jeanne foi vendida para um rico dono de terras de Louisianne. Quem sabe talvez Agaté pudesse reencontrá-la se viajasse para lá.

Será que ele deveria mesmo fazer a viagem? Haveria um futuro para ele em Louisianne? De qualquer forma, em Saint-Domingue realmente não havia nada para ele. Pensar nisso apenas enchia Agaté de apreensão. Não quanto a si, mas quanto à colônia. Pobre Saint-Domingue. Uma colônia tão rica construída em cima de uma história tão triste. François Mackandal parecia ser a única coisa boa que enfim aconteceria a ela. Agora Agaté apenas desejava que ela ainda tivesse um futuro, mesmo sem seu arauto. Mesmo que ele nunca pudesse voltar para ver com os próprios olhos, ele tinha a esperança de que Saint-Domingue um dia encontraria a glória de que Mackandal tanto falava.

Agora no porto de Cap-Français, Agaté falava com o capitão de um navio. Abriu sua bolsa e deu ao homem o dinheiro necessário para uma passagem só de ida a Nouvelle-Orléans.


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Notas finais do capítulo

Eu quero saber se alguém aí encontrou o easter egg da Revolução... ;) Se você pesquisar um pouco sobre a Revolução Haitiana, não é muito difícil de achar.



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