Untouchable escrita por Lucy Donnelly


Capítulo 7
Capítulo 6 - You're burning up, I'm cooling down




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Courtney

Eu não odeio hospitais. Na verdade, é um ambiente um tanto familiar. Na infância, mamãe sempre me deixava em algum quarto ou na creche do hospital enquanto terminava seu turno ou esperávamos Edward. Na adolescência, em uma falha tentativa de me encantar pela medicina, trabalhei como socorreste. E agora, duas das minhas amigas são mães e ao mesmo tempo fazem parte do clube das mulheres mais importantes do país. Do mundo, quem sabe.

Adivinha quem era o número 1 da discagem rápida?

Era mais frequente do que eu gostaria, e eu odiava. No plano de saúde de Mia Elise, meu nome constava como responsável em casos emergenciais e na ausência da mãe. No de Sophie, não. Essa era a parte irritante de Jess: ela quase nunca se lembrava do que era importante.

Sophie Grace era uma criança relativamente saudável, a não ser pelos problemas respiratórios e as infecções hospitalares que a pobrezinha teve por nascer prematura. Porém, não foi nenhum desses motivos que nos levou até o Mount Sinai. Para ser sincera, nem eu sabia o real motivo. Sua temperatura estava alta e ela resmungava de dores pelo corpo todo.

Tentei todos os telefones de emergência, deixei vários recados nas secretárias eletrônicas, mandei várias mensagens para Jess e Dan e para Jake. Contudo, se considerarmos o fato que eu ainda estava na recepção depois de uma hora e meia e ainda não tinha sido atendida, era obvio que eles não haviam retornado.

A essa altura, eu já estava prestes a cometer um genocídio. Como podia um hospital renomado como aquele recusar atendimento a uma criança só porque meu nome não constava na droga do plano de saúde?

– Dói? – quis saber, colocando a mão de maneira delicada em sua barriga. Ela grunhiu, concordando – A titia vai resolver isso, tudo bem?

Levantei-me com ela no colo. Sophie jogou os bracinhos em volta de meu pescoço, deitando a cabeça em meu ombro. Procurei pelo saguão o quadro de funcionários que estavam de plantão e, quando encontrei o que estava procurando, me dirigi ao balcão de informações, onde uma médica – eu acho – estava conversando animadamente com um rapaz.

– Com licença – tentei soar o mais suave que pude, não querendo parecer rude –, onde posso encontrar Anna Dursley?

– Acabou de encontrar – ela sorriu, se aproximando.

Não consegui decifrar meus sentimentos no momento em que o tal rapaz se virou. Acontece que ele se revelou ser alguém conhecido – na verdade, se revelou ser Jake. Eu acho que quis socá-lo, xingá-lo e até mesmo agradecer por ele estar ali, mas apenas me mantive parada e fiz questão de encará-lo enquanto falava:

– A temperatura dela é alta, ela reclama de dores no abdômen e na cabeça e vomitou uma vez. – Anna assentia com a cabeça, pude ver pelo canto dos olhos. Ela estava de braços cruzados, como se esperasse mais – A babá disse que foi depois do jantar. Eu acho que pode ser alguma intoxicação ou algum alimento que deu alergia.

– Qual o nome dela? – dra. Dursley perguntou. Desviei o olhar do de Jake e me virei para ela.

– Sophie…

– … Grace Rothschild-Walker – Muller completou. Anna o encarou sem entender, assim como eu – Ela é minha sobrinha.

– E foi isso. – respirei fundo, retomando o ar. Jess me olhava incrédula. Parecia que eu havia acabado de contar como cometi um assassinato e não deixei provas.

Ela se endireitou em sua cadeira e tomou a xícara ainda cheia em mãos. Jessica encarou um dos seus quadros na parede, girou a cadeira para a janela e depois se virou novamente, colocando a xícara na mesa. Ela levantou, ficando de frente para mim.

– E você nem se quer pensou em dar uma lição de moral nele? Porra, é a sobrinha dele e ele nem sequer atendeu aquela merda de celular! – Jessica pareceu realmente irritada e ao mesmo tempo ofendida. Seu tom de voz soou baixo, talvez por estarmos em seu ambiente de trabalho.

Até falando todos os palavrões do mundo, Jessica mantinha a classe. Eu me orgulhava da mulher incrível que ela havia se tornado.

– Bom, ele assinou os papéis e entrou com Anna na sala. Em seguida, você chegou – dei de ombros – aí ele saiu e eu disse a ele que agora ele tinha responsabilidades e que precisava atender o celular. Ele começou a alegar milhares de motivos e eu fiz minha melhor cara de irritada e apontei o dedo para ele como se Jake fosse um de meus estagiários inúteis que só querem o salário no final do mês. – Jesy sorriu satisfeita e voltou a se senta. – Uma mulher até pensou que fôssemos um casal…

Ri com aquilo. Era engraçado pensar que, em um passado não tão distante, eu e Jake realmente fomos um casal. Jessica me olhou maliciosa e eu revirei os olhos.

– Como é que o nome do Jake está no seguro e o meu não? – ela riu e ergueu as mãos, se fazendo de desentendida.

Uma mulher baixinha entrou e colocou alguns papéis sobre sua mesa. Ela sussurrou algo para Jess e depois saiu, como se eu não estivesse ali ou fosse invisível. Jessica se levantou e recolheu as xícaras, mesmo que a minha ainda estivesse cheia. Ela as colocou em um canto da sala e pegou seu casaco, abrindo a porta.

– Seria ótimo passar a tarde com você, Mia e Sophie – ela suspirou triste – mas tenho uma reunião inadiável, se importa de…

– Tudo bem – sorri fraco e recolhi minhas coisas – Qualquer coisa me liga. – Jesy concordou.

Ela me acompanhou até o elevador e, assim que entrei nele, ela acenou e seguiu seu rumo. Chegava a ser engraçado vê-la tão dedicada ao trabalho e lembrar que no ensino médio, suas notas eram as piores. Porém, Jessica fora a única de nossa turma que passara para medicina, mas não pôde ficar muito tempo na Columbia, já que teve de tocar o grande império deixado para ela.

Império que havia sido destinado a outro.

O Rothschild Bank ficava em Wall Street, peguei um táxi na frente e passei meu endereço. Durante todo o caminho até o Upper East Side, mantive minha cabeça virada para a janela e observei todas as vitrines e capas de revistas que consegui durante os sinais vermelho. Era como um ato de autodestruição para mim. Eu só conseguia me perguntar coisas como “o quê estou fazendo da minha vida?”.

Para ser honesta, estava tão exausta pela noite passada que nem para me autocriticar eu servia. Porém, hoje era o dia em que Mia Elise Stark, o futuro da tecnologia social, ficava sobre meus cuidados. Tinha algum outro motivo para eu não ficar simplesmente feliz? Quer dizer, meu postiço vai me levar ao altar, meu vestido está perfeito, Sophie está melhor e Mia, a cada dia que passa, está cada vez mais parecia com a mãe e, consequentemente, comigo.

Tudo parecia perfeito. Parecia.

Quase uma semana desde que Peter viajou e nem se deu o trabalho de me ligar. Era com esse cara que eu iria me casar?

Seu trabalho sempre estava acima de tudo e, tecnicamente, todos. Não seria fácil convencê-lo a passar algumas horas comigo e Theo. Às vezes me passava pela cabeça que ele não estava totalmente envolvido nisso. Quer dizer, eu tenho que largar tudo para ficar com a Sra. McGready que, por sinal, me odeia. Peter quase nunca tem tempo para conversar com mamãe. A pessoa mais próxima de mim e Peter é Melissa, por ser chefe dele.

Às vezes, quando chegava a meu ateliê, eu gostava de ficar apenas observando a decoração. Ele não era grande. Na verdade, ele era até que pequeno se comparado ao do Michael Kors. Na época em que comprei o prédio, há quatro anos, me senti a pessoa mais orgulhosa do mundo comigo mesma. Tudo, cada pequeno detalhe das paredes haviam sido comprados com meu próprio dinheiro e esforço. Lembrava até hoje da cara de espanto de minha mãe e de sua insistência para que eu aceitasse sua ajuda financeira quando ela entrou pela primeira vez e só viu um manequim gasto, uma máquina antiga e caixas com linhas e tecidos no chão.

Era ótimo entrar e ver os quadros de mulheres que foram ícones de moda e inspiração para minha geração e para mim em todos os sentidos espalhados pelo hall da loja com as vitrines bem iluminadas, as roupas dispostas em manequins coloridos e os acessórios em pontos estratégicos. Eu podia ter meus surtos, querer desistir de tudo em algumas horas, mas ao menos tive a coragem de viver meu sonho.

Eu sou Coco Chanel.

Porém, a realidade sempre arruma um jeito de destruir meus flashbacks. Assim que terminei de subir as escadas Rose veio até mim com uma bandeja que tinha bolinhos e café. Olhei a nossa volta e vi que ali estava realmente uma anarquia, as pessoas que estavam lá em baixo não tinha noção de como era difícil preparar cada uma daquelas peças. Eram tecidos espalhados pela mesa, estagiárias brigando pela última tesoura, gritos histéricos de modelos arrogantes, estresse em geral. Peguei o copo de café da bandeja e segui para minha sala, com ela em meu encalço.

– Vamos, qual o problema? – perguntei, me sentando na poltrona e cruzando as pernas.

– Adorei seu vestido, aliás. – ela comentou, se sentando a minha frente – Não é um grande problema, eu diria. A imprensa te idolatra de novo e a Vogue ainda liga querendo que você escreva para a revista. – sorri satisfeita. Nada melhor do que elogios para começar bem um dia de trabalho. – Mas Pietro se demitiu.

Pietro era nosso fotógrafo, ou quase isso. Todas as vezes que precisava atualizar meus catálogos ou o site que Rose criara eu tinha que contratar um. E cada um pedia um valor cada vez maior. Então, decidi contratar um definitivo e Pietro tinha sido o candidato perfeito na época, mesmo com seus milhares de defeitos depois.

Tomei um pouco de meu café e suspirei.

– Era só isso? Estava esperando uma catástrofe! – Rose me encarou surpresa.

– Não está querendo quebrar as coisas ou matar um dos estagiários?

Ri.

– Rose, meu amor – eu me levantei, pegando minha bolsa e o casaco – Eu já tenho um substituto perfeito. Aliás, estou indo procurá-lo agora mesmo. Não me espere, hoje o ateliê está sobre suas ordens, Philips.

As escadarias do MET sempre foram um dos meus lugares preferidos na 5th Avenue. Eu me sentava ali todos os dias no meu primeiro semestre na Sacred Blood, quando ninguém se atrevia a falar com a novata bolsista de Nevada e ficava admirando os grandes edifícios e lojas luxuosas, devorando meu bolinho e tomando meu café. Hoje em dia, porém, faço isso por diversão.

Mia Elise devorava suas batatas e terminava seu refrigerante enquanto me contava sobre seu dia na escola e sobre uma apresentação que teria antes do Natal. Era legal conversar com ela e ouvir sobre seu dia, me acalmava e ao mesmo tempo me aquecia. Eu costumava dizer que uma criança feliz pode transformar o humor das pessoas a sua volta e com certeza Mia fazia isso.

– E já escolheram as roupas? – perguntei.

– A professora quer que todas as meninas usem vestidos vermelhos, meia- calça branca e luvas pretas. – deu de ombros – Você pode fazer o meu vestido, titia?

Mia virou o rosto para me encarar e seus olhinhos brilharam. Ela juntou as duas mãos em uma sábia tentativa de me convencer e eu sorri.

– Mas é claro que eu vou fazer. – a puxei para perto e beijei sua bochecha – Eu já deixei de fazer algum de seus vestidos? – ela negou e riu.

– Eu amo a mamãe mais que tudo nessa vida, – começou – mas ela ia me fazer usar um vestido com luzes brilhantes ou enfeites de Natal! – rimos juntas com seu exagero.

Melissa não era ruim com moda. Para ser sincera, ela tinha mais noção do que eu às vezes. Seu estilo era mais clássico, diferente do meu que era… algo depois de clássico. Eu particularmente era fascinada por suas combinações.

Permanecemos ali mesmo depois de ela terminar seu lanche. Acho que não queríamos ir embora. Mia sabia que assim que eu a deixasse com Melissa, não iria ficar em seu apartamento. Desde que eu e Peter começamos a morar juntos, era como se a grande cobertura Stark não fosse mais minha casa, mesmo que o apartamento do Peter também não fosse. Isso vem me atordoando desde quando Peter comentou sobre um possível emprego fora de NY..

Acho que estava com medo do que poderia acontecer depois do casamento

– Titia? – sua voz doce e calma me chamou e eu virei o rosto para olhá-la – Acho que tem um ladrão nos seguindo – ela sussurrou perto a meu rosto e eu ri baixo – É sério! Aquele moço de moletom cinza e touca não para de nos encarar.

Ela apontou e eu me virei para olhá-lo. Sorri ao ver quem era e me voltei para Mia, que segurava firme sua bolsa e a minha, como se realmente estivesse com medo.

– Vamos fazer assim – peguei minha bolsa de sua mão e me levantei, estendendo a mão para ela – Nós vamos para a Gran Sapore comprar alguns doces. – ela concordou e por um segundo pareceu esquecer o ladrão.

Atravessamos a avenida e seguimos caminhado pela 82th Street. Eram quase seis e eu não tinha conseguido o fotógrafo. Ok, eu sabia que havia dito para Rose que acharia alguém melhor que Pietro, só não imaginava que seria tão difícil. Todos os fotógrafos para quem eu tinha ligado durante a tarde me pediam coisas absurdas como auxílio moradia e, bom, eu posso ser generosa, mas ainda não sou uma bilionária que sai distribuindo dinheiro.

E então foi como se uma lâmpada tivesse sido acessa sobre minha cabeça, assim como em desenhos animados. Jake. Ele era fotógrafo profissional, talvez aceitasse trabalhar comigo até que eu conseguisse outra pessoa. Tirei meu celular da bolsa e enviei uma mensagem a ele, torcendo para que ainda estivesse na escadaria do Metropolitan.

– Escolha os doces que te espero aqui, está bem? – ela concordou e correu os poucos metros que faltavam para a loja.

Sentei-me em um banco que tinha do lado de fora e esperei – desejei – que ele aparecesse. Não demorou muito para que Jake pigarreasse a meu lado. Escorreguei para a outra ponta e ele se sentou ao meu lado.

Apertei as palmas de minhas mãos e respirei fundo algumas vezes. Éramos amigos agora, certo? Ou será que íamos nos comunicar por sinais, sem que ninguém falasse nada? Não tinha porque eu estar nervosa, era apenas Jake Muller ali ao meu lado.

– Você assustou minha sobrinha – falei, virando o rosto para ele e tentando parecer séria. Jake riu – Ela te comparou a um ladrão.

Ele se fingiu de ofendido e eu sorri.

Seu cabelo estava parcialmente grande e a barba por fazer. Ele parecia outra pessoa, mas ao mesmo tempo não tinha mudado muito. Dizem que os homens mudam mais que as mulheres com o tempo, alguém se esqueceu de avisar isso a Jake Muller. Tudo nele parecia tão ensino médio.

– Mas não era isso que eu queria falar. – respirei fundo – Me desculpe por ter estourado aquele dia no hospital. – ele abriu a boca para dizer algo e eu ergui uma das mãos – E eu sei que não é para eu me desculpar. Enfim, eu preciso de você.

As palavras saíram tão rápido que parecem soar como algo que obviamente não era a intenção. Jake franziu a testa e comprimiu os lábios.

– Como fotógrafo… – tentei concertar o que havia dito – O meu se demitiu pela manhã e você não faz ideia do quão difícil é encontrar um fotografo nessa cidade! – minha voz soava estranhamente animada. Ele riu.

– Ah, claro. – finalmente falou.

O encarei por alguns segundos. Enchi as bochechas de ar e o soltei lentamente. Aquilo havia sido um sim sem nem ao menos eu ter lhe explicado as condições? Eu deveria estar feliz, consegui o fotógrafo e não quebrei minha promessa para Rose. Porém, algo em minha consciência dizia que talvez aquela ideia não fosse tão boa como pensava, e esse algo tinha a voz de Melissa Stark.

– Ok – falei arrastado e Mia apareceu na porta, com uma cara de medo. Olhei para ela – Ele é um amigo. Está tudo bem, Pink Pie. – ela se aproximou e sussurrou em meu ouvido o valor que tinha dado. Peguei um de meus cartões de visita e o dinheiro o entregando para Mia, que apenas acenou com a mão para Jake e voltou para dentro da loja – Certo. Você pode estar nesse endereço – lhe entreguei o cartão – amanhã às nove?

Ele negou com a cabeça. É claro que as coisas não podem dar certo ao menos uma vez.

– A garota… – ele estava se referindo a Mia e ainda olhando o cartão – Ela é quase que uma mini Melissa. É assustador. – me olhou, eu o encarei com as sobrancelhas arqueadas e cruzei os braços. Tentei segurar o riso, mas não consegui evitar. Jake me acompanhou por um segundo, depois coçou a nuca – Não posso estar lá às nove porque vou tomar café com… uma velha amiga.

Por alguma razão, aquilo me afetou. Pensei que eu era a velha amiga dele. Ou então Mackenzie Brannon.

– Anna Dursley? – soltei, sem nem perceber. Ele me encarou. Virei o rosto para a rua e encarei minhas mãos. – Quer dizer… você estava conversando com ela aquele dia no hospital e eu…

– Sim, Anna. – concordou, se levantando.

Ele pareceu irritado ou decepcionado por eu ter descoberto quem era a tal amiga. Jake passou as mãos pelo cabelo e rosto, voltando a me olhar.

– Às 11, pode ser?

Eu concordei.

Sentia o vento gelado em meu rosto, bagunçando meu cabelo de leve. Levantei-me quando vi Mia Elise sair saltitando da loja, com duas sacolas. Peguei em sua mão e olhei para Jake, que parecia nos analisar, assim como Mia parecia analisá-lo. Jake deu um passo a frente, mas voltou e apenas ergueu a mão.

– Não se atrase, por favor. – implorei, xingando-me mentalmente segundos depois. Ele concordou.

– Você sabe que pode contar comigo para o que precisar, Court. – ele finalizou, dando meia volta e indo embora.

É, eu sabia.

Liguei para mamãe na noite anterior, antes de me deitar. Contei a ele sobre os ocorridos dos últimos dias e me permiti voltar à época em que lhe pedia conselhos sobre coisas que tinha medo de perguntar a Melissa. Também contei ela sobre Jake e o emprego que ele talvez aceitasse. Ela disse que estava feliz e orgulhosa de mim, que sabia que eu iria esquecer tudo o que acontecera com o tempo.

Guardei junto a meu par de brincos favorito o anel que ele havia me dado, mamãe disse que eu deveria devolvê-lo só se ele pedisse, já que é algo de família – mesmo que eu estivesse prestes a devolvê-lo. Aproveitei estar sozinha no apartamento de Peter para pensar sobre tudo o que Melissa insistia em me dizer sobre Jake e eu trabalharmos juntos.

– Você vai demiti-lo ou simplesmente não contratá-lo. – murmurou enquanto terminava seu vinho – isso é uma péssima ideia, Court. O que Peter vai pensar quando souber que seu novo fotógrafo não é gay e sim seu ex-namorado do colégio?

Na hora em que a ideia me surgiu, não pensei em Peter em momento algum. Eu sabia que isso era errado, afinal, ele é meu noivo e deveria saber tudo sobre minha vida. Mas eu não sei sobre a dele. Bem, teoricamente Peter sabe sobre Jake. Teoricamente. Ele sabe sobre um ex-namorado que partiu meu coração em milhões de pedaços, como diria Melissa.

Talvez eu tenha comentado algo sobre Jake em algum momento que não me lembre. Talvez.

– Bom dia – a voz dele era rouca e lenta, como um sopro contra minha pele. Ele beijou a curva de meu pescoço e pude sentir seu sorriso – Chanel N°5?

– Coco Mademoiselle. – corrigi tentando me afastar, mas Peter foi mais rápido, puxando-me pela cintura – Estou atrasada.

Ele me beijou e eu retribuí, apesar de ainda estar chateada com ele. Peter havia chegado de madrugada, mas já tinha outra viagem marcada para antes do inicio de novembro. Afastei-me pegando minha bolsa e a o casaco. Ele me olhou decepcionado.

– São onze da manhã de um sábado, Court. – falou, jogando-se no sofá – Podia deixar a Melissa de lado por um segundo e ficar aqui, comigo.

Revirei os olhos. Você não coloca seu trabalho de lado para ficar comigo. Suspirei e coloquei os óculos de sol, me aproximando dele no sofá. Ele me puxou para seu colo.

– Querido, você pode até ser o amor da minha vida – ele sorriu satisfeito – Mas Melissa é minha alma gêmea. Minha pessoa, você sabe. – Peter rolou os olhos e bufou. – Você está stá parecendo um garotinho mimado. – beijei seu rosto e fui para a porta – Não sei que horas chegarei. Peça algo para o almoço.

Ele permaneceu em silêncio. Não gostava de mentir para ele, me sentira mal por isso minutos depois. Por algum motivo, achei que era melhor que ele pensasse que estava com Melissa e não em meu ateliê. A última coisa que ouvi antes de fechar a porta foi o seu sonoro:

– Eu te amo.

Já passavam das duas da manhã e eu não vou negar que estava praticamente dormindo sobre aqueles desenhos. A luz do quarto de Melissa estava fraca e praticamente toda focada no canto onde eu estava literalmente jogada sobre papeis, régua, lápis e fitas. Exausta era uma palavra que me definia bem no momento.

Resolvi que precisava esticar as pernas em um lugar que não fosse o chão e, se consideramos que tinha que descer alguns lances de escada até a cozinha, já era um recorde. Levantei-me com cuidado, mas quando comecei a andar para fora do quarto, uma luz surgiu do meu celular bem ao lado de Melissa. Quase me joguei na cama para pegá-lo e não pude evitar o sorriso que se formou em meu rosto quando vi o nome no visor.

– Te acordei? – ele perguntou assim que atendi.

– Não – ri abafado – Ainda estou acordada.

Continuava sorrindo como uma boba idiota. Jake soltou um suspiro de alívio no outro lado. Eram seis horas de diferença entre Nova York e Berlim. Se aqui eram quase quatro da manhã, lá deveria passar das nove, mas eu não me incomodava com o horário.

– Você está bem? – sua voz saiu como um sopro, rouca.

Senti um arrepio involuntário na nuca.

– Sim, apesar da correria e poucas horas de sono – eu sussurrava enquanto falava, não queria que Mey acordasse. –E você?

– Precisava ouvir sua voz. – mais outro arrepio. Será que ele tinha noção do efeito que ainda me causava? Ugh. – Como andam as coisas com a Ruiva psicótica?

Ri e me virei, olhando a grande barriga de sete meses de Melissa. Não podia dizer a ele, não sem o consentimento dela. Mordi a ponta de meu dedo mindinho e suspirei.

– Ela está bem. Essa pergunta foi estranha até para você.

Ficamos em silencio por um longo período, mas não era um silencio incômodo. Eu sabia que ele estava do outro lado, com a respiração baixa. Aquele silêncio era confortável, era bom ouvir a voz dele novamente.

– Eu… – Jake voltou a falar, fazendo uma pausa. Eu o imaginei respirando fundo – Conheci uma garota. – falou rápido.

Dessa vez não fora um arrepio que havia sentido. Uma pontada em meu peito, como se meu coração tivesse sido golpeado. Clichê, eu sei.

– Oh, isso é…

– Não fala nada. – pediu, e eu balancei a cabeça em concordância, mesmo que ele não pudesse ver – Court?

– Oi.

Mais silêncio. Dessa vez, incômodo. Pensei em dizer algo, mas não sabia o quê. Mordi mais ainda o dedo mindinho, achando que meus batimentos podiam ser ouvidos do outro lado da linha. Jake pigarreou e pareceu tomar fôlego para falar. Inclinei-me para frente, esperando sua voz.

– Eu ainda te amo. – foi o que ele disse e o que precisei ouvir para meu coração se quebrasse de vez.

O pior não foi ele ter dito. O pior foi meus olhos terem se enchido de lágrimas e eu estar sorrindo, como se ele tivesse dito aquilo pela primeira vez. Eu estava com tanto ódio de mim mesma, principalmente pelo que diria a seguir:

– Eu também te amo.

Jake

Assim que Jessica chegou, eu soube que era um homem morto.

Bancar a babá não era exatamente ruim – não com Sophie, pelo menos. Ela não era barulhenta e assustadora como outras crianças pequenas e ficava surpreendentemente comportada no meio da muralha de ursos de pelúcia no meio da sala que eu havia construído ao seu redor (eles amorteceriam a queda, caso ela caísse). Eu não havia sido obrigado por ninguém a cuidar dela, mas sentia que era o mínimo que eu podia fazer para ajudar.

Além do mais, eu não havia conseguido fechar os olhos nem por um minuto na madrugada anterior. Eu sabia que não poderia me concentrar em qualquer coisa senão ela.

Desde que chegara a Nova York, eu havia adquirido o estranho costume de ler o jornal todas as manhãs. Era interessante e engraçado muitas vezes encontrar matérias sobre pessoas que eu conhecia e muito bem. Um sorriso surgiu em meu rosto quando coloquei os olhos em uma manchete que dizia algo com “advogada Mackenzie Brannon”, mas não tive tempo de ler sobre a mulher que um dia eu conhecera por Kenz, pois Sophie deu um grito.

– O que… – a minha voz sumiu quando notei que ela parecia, na verdade, feliz – Você gosta disso? – perguntei, apontando para a televisão. O desenho era de uma família macabra de porcos. Sophie bateu palmas em resposta, gritando mais ainda.

Eu sorri.

– Tudo bem então, Soph – eu disse, sentando ao lado dela no chão.

– Na verdade, não está nada bem.

Jessica estava na porta e parecia querer me incinerar com os olhos. Eu fiquei de pé, com minha sobrinha no colo, ao mesmo tempo em que Buzz deitou com a cabeça escondida entre as patas, com medo da dona.

Cachorro medroso do caralho.

– O que foi, Jess? – eu perguntei. Ela tirou Sophie dos meus braços sem hesitar, o que eu achei um ato de coragem já que ela estava usando sapatos muito altos.

– Vou levar Soph para o quarto – disse ela – Precisamos conversar a sós.

Respirei fundo, sozinho, esfregando a mão pelo rosto. Aquilo não podia significar coisa boa.

– Preciso voltar para o banco em vinte minutos. – foi o que ela disse ao retornar. Institivamente, eu revirei os olhos.

– Achei que tínhamos resolvido isso quando chegamos em casa.

– Bem, achou errado. – ela rebateu.

Soltei um grunhido.

– Porra, Jess, será que agora você sempre vai achar um motivo para brigar comigo?

Ela fechou os olhos por um instante.

– É só que… – ela mordeu os lábios – Eu sei que eu provavelmente sou uma idiota por fazer isso, mas a pessoa a quem eu mais confio Sophie, depois de Daniel, é você.

Fiz uma careta de desgosto.

– Uau, muito obrigado pela parte que me toca.

– Estou dizendo isso porque tenho amigos que adoram Sophie e fazem qualquer coisa por ela se eu pedir – ela nem precisou citar nomes para que eu soubesse de quem ela estava falando – Sem contar o pequeno e insignificante detalhe que você decidiu desaparecer da minha vida POR ANOS. – ela gritou. Depois, soltou um suspiro – Talvez isso seja porque você é da minha família. Você é meu irmão e, apesar de tudo…

– Eu sei – falei. Havia entendido. Ela não precisava completar. – E já sei o que vai dizer, também. Quer que eu seja mais responsável com a sua filha, e essa é a minha função, não vou cometer o mesmo erro novamente…

Jessica ergueu a mão, me pedindo para parar.

– Não é só isso – a voz dela parecia mais suave – Aquela mulher. A doutora.

Engoli em seco.

– Tá na cara que algo está rolando entre vocês dois. – ela completou.

– Não – respondi sem pensar, se é que havia algo para pensar – Somos apenas amigos.

– Ah, faça-me o favor! – Jessica esbravejou – Como se eu fosse idiota. Onde você a conheceu?

Revirei os olhos.

– Não espero que você se lembre de algo que lhe contei há anos…

– Espera – Jess me interrompeu – Ela é a médica que você comeu naquele casamento na Alemanha?

Eu normalmente não me deixava afetar por comentários (e especulações) sobre a minha vida sexual, mas dessa vez foi diferente, talvez porque se tratava de Anna. Senti meu rosto esquentar.

– O que ela está fazendo aqui?

– Como eu vou saber? – eu grunhi entredentes – Não é sua função como mulher acreditar em coisas tipo destino, obra do universo, Merlin?

– Mas e Court? – ela soltou rapidamente, como se por impulso. Se fosse qualquer pessoa, teria disfarçado e mudado de assunto; mas aquela era Jessica, teimosa e inconveniente por natureza.

Ri sem humor.

– Então é disso que se trata?

– Eu vi como você olhava para ela, também.

Eu a segurei pelos ombros.

– Jess, Jess. Minha querida irmã – comecei – Courtney irá se casar. Ela me marcou, talvez para sempre e de um jeito que ninguém nunca mais fará, mas é só isso que seremos um para o outro. História. Uma história que teve fim.

Jessica colocou as mãos por cima das minhas. O gesto foi suave, mas havia uma dureza assustadora em seu olhar.

– Tudo bem – disse ela – Espero que se lembre de uma coisa. Você pode enganar quem quiser, quando quiser. Eu só espero que não esteja enganando a si mesmo.

– Como está sendo a vida aqui? – eu perguntei, assistindo enquanto Anna observava a cidade por trás da sua xícara fumegante de chá.

Ela sorriu.

– Vai fazer um ano, mas tenho que admitir que preciso me adaptar todos os dias – respondeu. O sotaque fazia sua voz soar macia como veludo. – Mas eu gosto, de verdade. Em nenhum outro lugar no mundo eu sinto o cheiro de nozes com canela todos os dias no caminho para o trabalho.

Eu ri, concordando. Mal havia tocado na comida e, honestamente, estava sem fome. Sabia que enquanto estivéssemos conversando eu não daria atenção para mais nada.

– E Sophie? – Anna questionou, juntando as mãos para apoiar o queixo. Seu rosto pareceu assumir uma expressão estritamente profissional de repente. – Como vai a pequenina?

– Está ótima, graças a você – que porra, Muller, você é um adolescente querendo impressioná-la? – Digo…

Anna riu.

– É bom saber disso.

– Você é uma médica incrível – falei.

Sério, qual é o meu problema?

Eu poderia dar um soco na minha própria cara ali mesmo.

– Você sabe… – ela girou a pequena colher dentro da xícara – Eu me preocupo com meus pacientes, é claro, mas não foi por isso que pensei em Sophie a noite inteira.

Ergui as sobrancelhas.

– Então por quê?

– Por você. – respondeu ela, me encarando intensamente. Seus olhos nunca pareceram tão verdes.

Por baixo da mesa, eu cerrei o punho. Merda.

– Eu… – comprimi os lábios – Tenho que ir.

Ela abaixou os olhos ao balançar a cabeça, concordando com um sorriso fraco. Fiquei de pé, tirando da carteira alguns dólares para deixar sobre a mesa. Eu realmente precisava sair, mas sabia que não conseguiria simplesmente ir embora. Não enquanto aquela sensação estivesse se agitando dentro de mim

– Anna – eu chamei – Posso vê-la mais tarde?

Seu sorriso aumentou.

As letras quadradas e douradas escreviam Lawrence Designs bem acima das portas de vidro. Eu nunca havia estado no ateliê de Courtney – ou em qualquer outro, vale ressaltar – mas até então era como eu havia presumido: a loja ficava no primeiro andar e havia uma escada que levava até a fábrica de ideias e produções.

“Procure Rose quando chegar”, dizia a mensagem que Courtney havia me enviado cerca de dois minutos antes que eu chegasse, o que eu interpretei como um aviso ou ultimato para que não me atrasasse. Olhei ao redor, me perguntando quem diabos poderia ser a garota. Todas pareciam estranhamente iguais e, em sua maioria, jovens. Achei que Courtney talvez quisesse dar a elas a chance que não teve.

– Sr. Muller? – alguém me chamou e eu virei.

– Rose? – perguntei, soando um pouco surpreso e nada sutil. Estava esperando uma daquelas adolescentes, não uma mulher usando um vestido branco curto que se destacava em sua pele escura e brilhante.

– É o que dizem – ela franziu a testa, rindo. Sorri. – Me acompanhe, por favor. A senhorita Lawrence está esperando.

O andar de cima estava ainda mais cheio do que a loja. Apesar disso, consegui observar os detalhes do ambiente. Havia quadros de celebridades nas paredes, reconheci algumas que minha mãe gostava – Marilyn Monroe, Grace Kelly, Elizabeth Taylor; manequins com peças completas e outras por fazer; cortinas de seda cobriam as janelas altas e estreitas; o lustre no centro do teto brilhava como diamantes.

– Ah, finalmente – ela exclamou. Eu conhecia muito bem aquela voz ansiosa. Courtney estava usando um daqueles ternos femininos e o azul dele fazia os olhos dela parecerem mais claros. O cabelo dela estava preso em um coque. Ela parecia mais velha e tão diferente – tão incrível – que precisei engolir em seco.

– Oi. – eu falei. Ela não parecia estar com tempo para cumprimentos.

– Rose, traga copos de água para as modelos, elas estão nervosas. – Courtney exigiu.

Rose revirou os olhos.

– Claro, elas estão nervosas.

Courtney bufou e eu deixei escapar uma risadinha. Abri a mochila para pegar minha câmera. Quando voltei a olhar para ela, tive a impressão de que ela iria ter um ataque. Ergui uma sobrancelha.

– Por que parece que você está querendo me partir ao meio? – perguntei.

– Ah – Courtney suspirou, esfregando o rosto – Desculpa. Desculpa. É que… esse novo catálogo é realmente importante. Siga-me. – ela ordenou, e eu o fiz. Um pequeno estúdio havia sido montado para os ensaios, e acho que nunca tinha visto tantas mulheres amontoadas em um só lugar. Cabelereiras e maquiadoras corriam atrás das modelos para consertar defeitos que eu definitivamente não conseguia ver – A reunião em Londres é amanhã, e essa coleção é praticamente o meu contrato com a Harvey Nichols.

– Você vai para Londres?

– Se você tivesse bebês, deixaria que eles fossem para a Europa sozinhos? – ela arqueou as sobrancelhas. Eu concordei, era um bom argumento. – A propósito, nós temos o nosso próprio equipamento. Compramos antes que Pietro chegasse para tentar fazer os fotógrafos pagarem menos – ela encolheu os ombros – Precisa de alguma coisa?

– Gosto de usar minha própria câmera – eu disse – mas um tripé seria bom.

A sessão de fotos foi bem mais tranquila do que eu pensei que seria, mas eu havia julgado erroneamente. Quando Courtney me chamou para aquele trabalho, uma imagem assustadora me veio à cabeça de garotas puxando os cabelos umas das outras ou saindo no meio da captura da foto para vomitar seu café da manhã. Mesmo assim, eu não hesitei em recusar – depois de tantos anos, eu ainda não conseguia dizer não para ela. Honestamente, eu estava fazendo a parte mais fácil. Courtney havia tomado as rédeas com autoridade e graciosidade, fazendo as poses para que as modelos a imitassem ou corrigindo qualquer coisa nelas antes que eu pudesse abrir a boca.

– Você realmente conseguiu – eu comentei, finalmente quebrando o silêncio entre nós enquanto preparava a câmera para as últimas peças.

– O quê? – ela indagou.

– Esse lugar – respondi – Eu lembro que você guardava um desenho dentro do seu caderno e só agora percebi que é exatamente igual. Naquele dia eu descobri que você não era boa apenas em desenhar roupas.

Ela estava de braços cruzados. Piscou, parecendo espantada.

– Não acredito que você se lembra disso.

– Ei, dez anos não é tanto tempo assim – eu ri, esperando a imagem na lente tomar foco. Clique.

– Muita coisa pode acontecer em uma década.

– Você que o diga. – eu disse, sem pensar. Courtney encarou o chão. Pigarreei. – Então… a garotinha, filha da Melissa.

Ela não voltou a olhar para mim.

– Mia. O que tem ela?

– Como isso aconteceu? – falei, e me senti um idiota logo depois – Quer dizer… – não terminei, pois Courtney começou a rir.

– Sério? Você, dentre todas as pessoas, sendo amigo do Theo, acha mesmo que Melissa é alguma santa?

– Bem, você tem um ponto. Mas não pode me culpar por achar que ela era puritana, mesmo com o Chevalier…

– Jake, Melissa perdeu a virgindade antes de mim, e eu e você estávamos juntos a bem mais tempo do que eles dois – ela soltou, um pouco mais alto do que deveria. Seu rosto ficou vermelho e eu dei uma gargalhada. Olhares curiosos de repente ficaram concentrados em nós.

– Presumo que isso não seja algo que eu deva me orgulhar – eu disse.

– É – ela murmurou – Você não faz ideia.

Uma parte de mim quis perguntar se ela estava falando sério, mas a parte racional me impediu. No fim das contas, provavelmente era melhor para nós dois se ficássemos calados.

– Parece que terminamos – Courtney falou depois que tirei a última foto. Ela finalmente me encarou, com o queixo erguido e uma expressão dura, fria. Comprimi os lábios por um segundo.

– Parece que sim.

O Alleyway Pub não era o tipo de lugar que me agradava, mas tinha suas vantagens: era impressionante, para dizer o mínimo, e na pior das hipóteses, ficava perto do prédio do Theo. Durante o caminho, percebi que por pouco Anna não era uma completa estranha para mim. Eu sabia que ela tinha se formado com honras na Universidade de Heidelberg; que ela preferia roupas casuais a vestidos e que o toque de chamadas de seu celular era Hey Jude, porque essa era sua música favorita dos Beatles. No entanto, eu não sabia sobre as pequenas coisas que ela gostava de fazer, qual era o seu drink favorito, se ela preferia lugares fechados ou ao ar livre, inverno ou verão.

Talvez para isso sirvam os encontros.

A razão de eu não gostar de lugares como aquele era a mesma desde o ensino médio, ou desde que eu conseguia me lembrar. Todo aquele luxo e exagero me lembravam do meu pai, do outro lado da minha vida que eu tentava a qualquer custo fingir que não existia. Deixei que abrissem a porta para mim, mas ergui as mãos em defesa quando uma garota se aproximou para tirar o meu casaco. Ela deu um sobressalto, assustada, e eu me forcei a dar um breve sorriso como pedido de desculpas e um aceno com a cabeça.

Eu posso tirar meu próprio casaco, porra. Qual é o problema dos ricos?

Theo estava no bar, o que não me surpreendeu. Ao lado da mesa de sinuca com um taco na mão, ele parecia tão patético jogando sozinho que resolvi ir até ele.

– Ei – chamei – Por onde diabos você esteve?

– Pergunto o mesmo – disse ele. Ele parecia péssimo, mas eu já estava acostumado com aquele visual de bêbado frustrado: olhos vermelhos, cabelo bagunçado e roupas amarrotadas. Eu também sabia que alguma merda deveria ter acontecido para que um mauricinho como ele saísse em público com aquela aparência. – Eu estava na casa da Melissa.

Certo. Com certeza não seria esse o meu palpite, mas cada um tem seu próprio conceito de coisa ruim. Decidi não fazer mais perguntas.

– Fiquei na casa da Jess desde a madrugada da noite passada. A minha sobrinha…

– Eu sei – ele completou. E então riu, uma risada seca e sem humor que eu não entendi – Temos muitas em comum, sabe, Muller? Já percebeu isso? Ainda hoje somos assombrados pelo nosso passado com aquelas garotas. Passamos a noite cuidando de uma criança que deveríamos ter conhecido antes. E o quê mais? Ah, é mesmo, nós dois somos filhos bastardos.

Eu o encarei, sem reação. Aquilo explicava muita coisa.

A maioria das pessoas perguntaria como ele havia descoberto. Pessoas normais diriam coisas como “sinto muito”. Eu não me encaixava em nenhum desses dois grupos.

– Que merda – falei, simplesmente.

– É – Theo concordou. Pegou o copo que estava em cima da mesa de bilhar e virou o resto do seu uísque com gelo de uma vez.

Olhei para trás exatamente no momento em que Anna estava entrando. Seus olhos encontraram os meus e, imediatamente, ela veio até mim.

– Eu realmente não queria dizer nada, mas você está… uau. – eu respirei fundo. Ela colocou uma mecha do cabelo atrás da orelha.

– Sério? Não acha que está demais? – ela abaixou os olhos para o vestido. Era longo, vermelho e eu poderia passar a noite toda observando suas curvas se não soubesse disfarçar – Eu não sabia como me vestir para um lugar desse nível.

Eu ri. Pelo menos uma das minhas dúvidas já tinha sido respondida.

– E nem eu, mas você já deve ter percebido. – virei para ver se Theo ainda estava ali. Ele provavelmente nem havia nos notado, mas mesmo assim gesticulei, indicando-o – Anna, esse é meu atual colega de quarto, Theo Chevalier. Theo, essa é a doutora Anna Dursley.

Ele ergueu a cabeça à menção de seu nome. E então abriu o sorriso malandro típico que aparecia em sua cara toda vez que estava diante de uma mulher bonita.

– Encantado, Anna – ele falou. Ela sorriu.

Ele pronunciava o nome dela assim: Ah-na.

Maldito idiota com sotaque francês.

– Hum, nós temos uma reserva – disse eu. Ela concordou. Pedi para que ela seguisse na frente e, no segundo em que ficamos sozinhos, falei para Theo: – Tente não se suicidar.

Em resposta, ele disse:

– Você não poderia ser mais previsível.

A mesa ficava no canto do bar. No curto trajeto até ela, notei que as pessoas pararam o que estavam fazendo – algumas discretamente, outras descaradamente; mulheres e homens – para olhar para Anna. Havia algo nela que chamava a atenção, e não era suas roupas ou mesmo sua beleza. Eu não tinha certeza, mas estava prestes a descobrir.

Nós olhamos os cardápios. Estava tocando uma música que eu não conhecia (provavelmente algum clássico do blues) e eu não sabia o que metade daquelas comidas era. Tudo era mais fácil quando eu precisava pedir apenas uma cerveja vagabunda e um cheeseburger em algum canto do Brooklyn. Depois que escolhemos aleatoriamente, isso acabou não importando.

O jantar acabou se transformando em uma longa conversa. Eu preferi não falar muito sobre mim. Não havia muita coisa agradável para ser compartilhada e eu não conseguia transformar as poucas coisas boas em palavras. Anna, por outro lado, era muito boa nisso. Ela era engraçada, inteligente e, por Deus, ela era legal.

Aquela sensação era esquisita – não exatamente ruim, apenas diferente de tudo que eu já havia experimentado. Antes de Courtney, sexo não tinha nenhum significado e eu não conseguia manter nenhuma garota na minha cabeça por mais do que alguns segundos. O que me prendia à Courtney Lawrence era mais forte do que qualquer coisa que eu pudesse controlar. Talvez por isso não consegui, jamais, encontrar outra pessoa. Com ela, cada minuto eu sentia como se estivesse prestes a entrar em combustão.

Não era assim com Anna. Parecia mais uma pequena, humilde faísca. Um calor agradável, seguro.

– Você costuma vir aqui? – ela perguntou.

– O que você acha? – murmurei. Ela deu risada.

– Eu imaginei. Estou impressionada, mas tenho que admitir que prefiro muito mais um barzinho. Jukebox, amendoins, tequila…

Ergui as sobrancelhas, cruzando os braços.

– Não acredito em você.

– Por quê? Uma médica não pode fazer body shots? – ela perguntou, ficando de pé antes que eu pudesse pensar em responder. – Mas já que estamos aqui, deveríamos pelo menos aproveitar para uma dança.

Já fazia algumas horas desde que os casais haviam se levantado para dançar as músicas velhas e tristes. O problema era que – para começo de conversa – eles deveriam ser, no mínimo, dez anos mais velhos do que nós.

– Ah, claro. Mas eu não danço.

– Que coincidência! Eu também não – ela me puxou pela mão. Nem em um milhão de anos eu concordaria em fazer aquilo, mas não retesei – Por favor, Jake. Apenas me segure, ok? – ela colocou as mãos sobre os meus ombros e lentamente seus braços envolveram o meu pescoço – Vê? Não é tão ruim.

Estávamos apenas nos mexendo, sem nenhum ritmo. Ela dava dois passos para o lado e dois para o outro. Eu parecia uma árvore prestes a cair.

– Eu não posso fazer isso – falei, entredentes – É bizarro.

Anna riu com os lábios na minha orelha.

– Ninguém está olhando para nós.

Todos estão olhando para você.

Ela deu um passo para trás. Nós nos encaramos por um tempo. Não estávamos mais dançando.

– Não me importo com eles – ela disse, encolhendo os ombros e sorrindo – Eu realmente gostei dessa noite, Muller. Eu... realmente gosto...

Não descobri o que ela iria dizer em seguida, pois segurei seu rosto e a beijei.

Ela não pareceu ter sido pega de surpresa – não houve choque ou resistência, como se ela soubesse que aquilo iria acontecer antes de mim. Ela me retribuiu usando não apenas os lábios, mas todo o seu corpo parecia me responder. Suas mãos agarraram meus braços e a última coisa que eu queria era interromper o beijo, mesmo que o ar já estavesse me faltando. Nossas bocas se distanciaram em centímetros quase imperceptíveis, e eu sentia seu hálito morno e doce no meu rosto.

– Desculpe – sussurrei – O que estava dizendo?

Ela piscou. Então me puxou pela nuca, e estávamos nos beijando de novo. E dessa vez não havia calma, era feroz.

Os minutos seguintes passaram como segundos, em uma velocidade rápida e confusa. O resto do mundo parecia desconexo, embaçado, enquanto nos mantínhamos concentrados um no outro. Eu a beijei dentro do táxi e durante todo o trajeto nossas mãos procuravam descobrir além das partes cobertas pelas roupas. No elevador, estávamos sem fôlego, mas era insano. Eu a segurei pelos quadris e a pressionei contra a parede com o meu peso, grunhindo com a prazerosa dor de suas unhas deixando marcas nas minhas costas.

Entramos no apartamento abruptamente e eu fechei a porta com um chute. Joguei minha jaqueta no chão e Anna desceu o zíper do vestido antes de se livrar da minha camisa. Eu a carreguei até o a minha cama – do quarto de hóspedes – e conseguia ver apenas a sua silhueta entre os lençóis, sentindo seu corpo pulsando embaixo do meu.

– Está tudo bem? – eu perguntei, com o rosto no pescoço dela.

– Não dá pra notar? – sua voz estremeceu, com um riso baixinho. Deslizei meu nariz pelo queixo dela, subindo até que nossos lábios se encostassem levemente. Anna prendeu meu lábio inferior entre os seus dentes enquanto eu deslizava minha mão por sua coxa, barriga e quadris.

Ela tirou o meu cinto e desabotoou minha calça. Não havia mais nenhuma peça de roupa entre nós. Nossas pernas estavam entrelaçadas e nos movíamos em sintonia, com pressa. A pele dela era quente na minha boca.

Vi Anna fechar os olhos, suas mãos agarrando meu cabelo, antes que eu fechasse os meus. Tive a sensação de que estava caindo aos pedaços e apoiei meus cotovelos na cama com mais força. Ela gemeu no meu ouvido, então eu soube que terminaríamos aquilo juntos, do mesmo jeito que havíamos começado.

Desabei ao seu lado na cama. Nossas respirações voltaram ao normal alguns minutos depois, quando nós dois caímos, exaustos, no sono.

...

Eu havia me esquecido de fechar as cortinas. Mas é claro.

A luz do sol invadira o quarto, me acordando mais cedo do que eu estava acostumado. O apartamento ficava nos últimos andares, mas prédios ainda mais altos podiam ser vistos pela janela. Os barulhos dos nova-iorquinos acordados e apressados era distante e, ao mesmo tempo, pareciam estar dentro da minha cabeça.

– Decoração legal. – a voz rouca de Anna disse ao meu lado.

Virei para vê-la. Ela estava enroscada no lençol, seu cabelo loiro bagunçado de um jeito adorável.

– Obrigado – respondi, irônico, em relação ao quarto completamente branco. Ela deu um sorriso preguiçoso. – Olhe, se você quiser conversar sobre o que aconteceu...

Isso fez com que ela parecesse repentinamente mais desperta. Anna arqueou as sobrancelhas.

– Eu quero. Pode começar.

– Droga – resmunguei – Por que eu ainda tento?

Ela riu, se aconchegando no travesseiro.

– Eu preciso ir para o trabalho.

Franzi o cenho, cuidadosamente deslizando a mão pela cama até ela, puxando-a para mim. Nos beijamos de um jeito sonolento e suave. Os dedos dela deslizaram pelo meu maxilar até o meu peito.

– Anna, eu não sei se sou esse cara. – confessei, comprimindo os lábios logo depois. Eu sabia que a queria, mas precisava ser honesto e tentar fazer as coisas da maneira certa. – Não sei se sou o tipo de pessoa para você. É complicado.

Ela inclinou a cabeça para frente, me encarando de perto. O canto de sua boca se ergueu minimamente em um sorriso satisfeito.

– Eu gosto de complicado.


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