Untouchable escrita por Lucy Donnelly


Capítulo 6
Capítulo 5 - Incredible Things


Notas iniciais do capítulo

Primeiramente, pedimos desculpa pela demora para a atualização. Segundo, queremos informar que a partir de hoje e até o fim de novembro, as atualizações serão mensais.
Xoxo, Emy e Lucy



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Melissa

Eu tinha coisas demais para pensar. Não deveria me dar o luxo de colocar a cabeça em outra coisa que não fosse as minhas obrigações com Mia e com a empresa – que sempre exigiam de mim mais do que eu esperava.

Mesmo assim, meus pensamentos sempre voltavam para Theo.

Meu pequeno surto foi de certa forma constrangedor, mas eu não consegui lidar com o que estava acontecendo. Eu me considerava boa em carregar o peso das minhas responsabilidades nas costas, sem reclamar ou falhar. Quando se tratava da minha vida pessoal, no entanto, tudo era mais difícil. A todo custo eu havia tentado esconder de Theo a existência da filha dele, acreditando que tudo seria melhor se fôssemos só nós duas, e de repente ele estava brincando com ela no Central Park, bem na minha frente, como se nada demais estivesse acontecendo.

É óbvio que eu não reagiria com a maior naturalidade do mundo.

– Mudei sua reunião de meio dia para às duas – minha assistente pessoal anunciou logo após as duas batidas que sempre dava na porta antes de abri-la. – E aqui estão os termos e contratos que me pediu para trazer.

Como se não bastasse todo o resto, precisava assinar meu nome em cada uma daquelas centenas de folhas. Ótimo.

– Obrigada, srta. Hyung – respondi suavemente.

Ela deu uma risadinha.

– Sabe que pode me chamar pelo primeiro nome, srta. Stark.

– Então, obrigada, Billie. – ergui os olhos para encará-la. Billie me ofereceu um sorriso encorajador, fazendo com que seus pequenos olhos se tornassem finas linhas. Retribuí o gesto, apesar de limitadamente.

Eu não a dispensei, embora achasse que ela se retiraria mesmo assim. Billie franziu o cenho, parecendo preocupada.

– Melissa, está tudo bem? Precisa de algo?

Deixando um suspiro escapar, encarei o retrato de meus pais que ficava sobre a minha mesa. Aquela havia sido a última foto que ele haviam me mandado e eu trocaria quando a próxima chegasse, mas eu gostava especificamente desta. Os dois estavam na frente da Catedral de Notre Dame, usando casacos por conta do frio invernal parisiense, mas ainda assim o sol brilhava naquela manhã, refletindo em seus cabelos ruivos que, apesar de alguns fios grisalhos, pareciam pegar fogo. As linhas de expressão em seus rostos eram visíveis por conta da idade, mas não tanto quanto a felicidade em seus olhos e sorrisos.

Sinto tanto a falta de vocês, pensei. Por favor, me digam o que fazer.

– Não preciso de nada, querida – eu disse, me voltando para ela – Obrigada.

...

A cama deveria estar mais confortável do que o normal e os lençóis cheiravam a rosas e baunilha. Decidi que amo a minha cama. Não temos passado muito tempo juntas, pelo menos não tanto quanto eu gostaria.

O relógio sobre o meu criado mudo marcava 21h25. Apesar de eu considerar o horário cedo para estar em casa se comparando com os últimos dias, era estranho não ter Court por perto. Ela teve uma inspiração súbita e decidiu que não traria o trabalho para casa. Talvez essa fosse a sua forma de lidar com o estresse em relação ao Peter e seus problemas de casal. Bem, era o que eu achava. Não tinha como saber.

Jack, meu velho gato laranja e peludo, se esticou preguiçosamente ao meu lado. Alguém bateu à porta e a abriu.

– Trouxe chá de camomila, srta. Stark – disse Poppy, entrando com a bandeja em mãos. Eu imediatamente sorri.

Poppy era minha fiel companheira há 13 anos. Eu era uma adolescente – frágil, tímida e insegura – como qualquer outra quando nos mudamos para Nova York, mas meu pai estava decidido a me impedir de ter uma vida normal. Ele seguia a filosofia que diz “dê aos seus filhos o que você nunca teve”, me garantindo um chofer particular para a limusine e uma babá. Poppy é maravilhosa. Ela sempre soube exatamente o que eu precisava. Acho que por ela estar por perto o tempo todo eu acabei esquecendo que ela tinha uma vida fora da minha casa. Um lar fora do meu lar. Depois de tudo que ela fez por mim, o mínimo que pude fazer foi dar um generoso presente de casamento a ela e seu marido Rob – um apartamento em West Village, para que ela pudesse criar suas crianças sem ficar muito longe de Mia e de mim.

– Você é definitivamente a melhor – falei, sentando na cama. Ela riu.

– Descanse um pouco, está bem? Você merece – ela acariciou meu rosto em um gesto maternal, sem precisar dizer mais nada. Eu confiava em Poppy com a minha vida e contava praticamente tudo a ela, então eu soube a que ela estava se referindo ao dizer isso.

Quando ela abriu a porta para sair, vi uma sombra escondida aparecer no vão e dei risada. Eu a chamei, e Mia disparou para o meu lado.

– Quer ficar aqui hoje? – perguntei. Ela assentiu, hiperativa, e eu puxei as cobertas por cima de nós.

– Podemos assistir Doctor Who? – ela pediu, com o braço por cima de mim e a cabeça sobre o meu ombro. Encostei a testa na dela.

– Claro que podemos. Qual episódio?

Ela se animou.

– Qualquer um com a Donna. Ela é a minha favorita.

– Jura? – perguntei e Mia confirmou. Dei um gole no chá de camomila, observando-a enquanto ligava o Netflix e passeava pela lista de episódios sem precisar da minha ajuda. Às vezes eu subestimava Mia Elise, achando que ela era mais nova do que realmente era, como se isso pudesse impedi-la de crescer. O pensamento de que um dia a minha garotinha deixaria de ser uma garotinha me causava arrepios.

Ela se aconchegou ao meu lado outra vez, em uma posição em que pudesse ficar confortável e com vista para a televisão. Mia estava bastante concentrada no episódio, mesmo que nós provavelmente já tivéssemos o assistido uma dúzia de vezes. Então, comecei a provocá-la com cutucões da barriga e cócegas nos joelhos. Ela começou a se contorcer, gargalhando e soltando gritinhos. Quando Jack soltou um miado de reclamação, nós duas rimos e eu a apertei com força contra mim.

– Você quis vir para cá por algum motivo? – eu quis saber – Aconteceu alguma coisa?

Ela levantou a cabeça e seus olhos pareceram reluzir na escuridão.

– Não. Só senti saudades.

Mia não fazia ideia do efeito que ela causava em mim. Aquela era uma das coisas que mais me intrigavam nela: sua capacidade de dizer coisas surpreendentes quando eu menos esperava. Segurando minha filha em meus braços, eu percebi uma coisa. Estava fazendo tudo errado. Nada mais importava além dela, e as coisas em minha cabeça realmente não passavam de meras distrações. Ela vinha primeiro. Sempre viria.

...

Acordei às 6h57min, três minutos antes que La vie en rose começasse a tocar no volume mais alto do meu celular, como um bom despertador. Edith Piaf era a minha artista francesa favorita – eu sempre associava Edith e suas músicas às minhas férias na infância na casa dos avós da minha mãe em Côte D’Azur, principalmente à minha bisavó. Adeline Martin era uma mulher espirituosa e que parecia sempre ter o cheiro de seus suflês caseiros de caramelo. Lembro-me dela afastando os móveis da sala de estar para me ensinar a dançar e lembro também que ela sempre tentava cantar uma música de um artista americano quando via o meu pai. Eu achava que pessoas como vovó Adeline viveriam para sempre. No dia do seu enterro, a única coisa em que conseguia pensar era que ela dançaria o quanto quisesse no céu.

A luz do sol invadiu o quarto pela pequena brecha que eu deixava nas cortinas todas as noites antes de dormir. Esfreguei o rosto e me espreguicei, percebendo que Mia ainda estava encolhida contra mim, e o som de sua respiração era um metrônomo no silêncio entre aquelas quatro paredes. Ao longe, podia ouvir os barulhos do trânsito. Não era a toa que Nova York era conhecida como a cidade que nunca dorme.

– Hora de acordar, Bela Adormecida – eu falei ao ouvido dela enquanto acariciava suas costas. Mia soltou um grunhido de indignação.

– Mamãe... eu não estou bem...

Por um instante senti meu coração parar de bater e depois voltar como uma bomba. Mia era dura na queda e quase nunca ficava doente, mas em todas as vezes que acontecia eu ficava louca, sentindo como se fosse perder a cabeça. É terrível a sensação de não poder tirar a dor de alguém por quem você faria qualquer coisa.

– O que você está sentindo, amor? – perguntei alarmada, colocando as mãos sobre o rosto dela para sentir sua temperatura. Apesar do breve ataque de pânico, não deixei passar o lampejo de sorriso sapeca que ela tentou disfarçar. Além do mais, eu sabia muito bem quando alguém fingia alguma coisa. – Mia Elise Stark! – protestei, com a mão sobre o peito. Ela riu do meu drama e se virou de bruços, enterrando o rosto no travesseiro que era quase do seu tamanho.

– Eu não quero ir para a escola – reclamou, com a voz abafada.

– Aposto que não – suspirei – Mas a escola é importante!

Ela respondeu com um som que me lembrou quando Courtney e eu estávamos no ensino médio e eu precisava arrastá-la para fora da cama.

– Mia...

– Mamãe, por favor...

Hesitei por um segundo, mordendo o lábio. Os pensamentos da noite passada ainda estavam frescos em minha memória, e deles surgiu uma ideia que parecia até bastante apropriada para aquele momento.

– Tudo bem – falei finalmente – O que acha de passarmos o dia juntas? Sem ninguém para interromper; apenas eu, você e um piquenique em um dos meus lugares favoritos na cidade.

O sorriso que recebi em troca me deu uma noção da resposta.

O dia estava cinzento – não o suficiente para que fosse sinal de chuva, mas o vento estava forte, soprando poeira e os cheiros da cidade, como café expresso e cachorros quentes. Caminhamos pelo tapete de folhas laranja que cobria o Riverside Park, eu com os jeans por dentro das botas, jaqueta de couro e cachecol de cashmere enquanto Mia usava calças confortáveis e seu moletom verde da Baby Gap. Eu carregava a cesta de vime com nosso café da manhã em uma mão e na outra a minha bolsa. Mia segurava um mapa gigante do parque que nós não precisávamos, mas os olhos dela brilharam quando o guia turístico o ofereceu a ela.

– Que tal ali? – apontei para o gramado vazio à nossa direita. Mia assentiu.

– Podemos alimentar os patos depois?

Eu franzi a testa, rindo, porque não fazia ideia se haviam patos no Riverside Park.

– Por mim, tudo bem. – dei de ombros e ela sorriu, me puxando pela mão para o nosso cantinho.

A primeira vez que estive naquele parque foi em uma tarde de outono. Eu estava grávida e nunca havia me sentido tão só, mas estava sozinha por opção. Não queria ter que correr para Courtney e atrapalhar a vida dela só porque a minha parecia um desastre. Não queria ter que perturbar meus pais mais ainda, porque sabia que descobrir que sua filha estava grávida não era exatamente o jeito que eles queriam começar a sua aposentadoria. Além de tudo, eu estava morrendo de medo do meu trabalho. Precisava ficar só em um lugar que apenas eu conhecesse e que ninguém fosse me procurar. Inicialmente estava indo ao The Cloisters, mas decidi dar uma parada no meio do caminho.

Fui lá muitas outras vezes durante a minha gestação e sempre associei o lugar a sensações boas. Talvez eu quisesse me sentir um pouco como Meg Ryan em You’ve Got Mail, apesar de definitivamente não ter um Tom Hanks na minha vida.

– Posso ver o rio daqui – Mia disse, na ponta dos pés e esticando o pescoço o máximo que podia. Ela se desequilibrou e quase caiu, mas deu risada de si mesma. – Junto com um monte de prédios.

– Os prédios não param de aparecer. Quando eu era mais nova, não havia tantos – eu disse a ela, o que não era completamente mentira. Eu não conseguia lembrar de Nova York sem parecer uma selva de pedra, mas às vezes olhava para um prédio em alguma esquina e pensava “ele não estava aqui há um mês.”.

– Sério? – ela perguntou, colocando um morango na boca.

– Sério. – nós ficamos em silêncio por alguns segundos – Querida?

– Sim, mamãe.

– As... as outras crianças já falaram algo para você por não ter um pai?

Eu não sei onde estava com a cabeça quando soltei aquela pergunta, mas ela surgiu tão repentinamente que não consegui me conter. Isso aconteceria eventualmente e eu não tinha certeza se ela estava preparada para lidar com isso. A única coisa que eu sabia era que eu não estava. A culpa era minha, afinal.

O olhar da minha garotinha pareceu tão nublado quanto o céu.

– Às vezes. – ela respondeu, cautelosamente.

Era como se ela soubesse que aquilo me machucaria e quisesse me privar de saber.

Senti como se tivesse sido apunhalada no peito.

– Você... você preferiria ter outra família? Uma onde todo mundo estivesse com você?

Ela ergueu a cabeça para me encarar, parecendo horrorizada.

– Não!

Eu provavelmente não deveria, mas não resisti e perguntei:

– Por quê?

– Porque eu não teria você. E eu não trocaria você por outra família mesmo que eu tivesse um papai e um vovô e uma vovó que morassem conosco. Não trocaria você por nada.

Aquilo foi algo tão estranho de se ouvir de uma criança de seis anos que eu não reagi a princípio, me perdendo em lembranças por uma fração de segundo. Lembrei-me do dia em que Mia nasceu e que quando meus olhos finalmente se livraram das lágrimas de dor a primeira coisa que vi foi aquele pequeno ser humano enrolado em uma manta cor de rosa; lembrei-me como eu insistia em levá-la para dormir na minha cama por mais que os médicos dissessem que eu deveria acostumá-la em seu próprio quarto, e como ela caía no sono com a mãozinha agarrando meu dedo indicador; lembrei-me do seu primeiro dia de aula e como eu fiquei paranoica achando que o tempo estava passando rápido demais. Mia Elise era a prova de que algumas surpresas, por mais inesperadas e assustadoras que fossem a princípio, poderiam mudar completamente a vida de alguém para melhor.

Segurei-a junto a mim, afundando o rosto em seus cabelos enquanto sussurrava jet’aime, de novo e de novo.

...

De braços entrelaçados, Court e eu fizemos um longo trajeto por Manhattan e à noite, quando chegamos à Times Square, estávamos exaustas e carregando várias sacolas que iam de M.A.C., Sephora, American Apparel a Magnolia Bakery. Aqueles eram os cupcakes favoritos de Courtney em todo o mundo. Segundo ela, eles faziam com que ela “se sentisse mais Carrie”.

– Isso é... apenas... wow. – Courtney falou quando eu finalmente lhe contei sobre o diálogo entre Mia e eu de mais cedo. Eu não pretendia contar, mas acredito que não houvesse nada que eu não compartilharia com Courtney Lawrence. Isso me faz pensar que o termo “almas gêmeas” é equivocado. Ele não se refere a casais, se refere a amigas. – Mas você sabe, Mey...

– Se você é minha melhor amiga, por favor, não faça eu me arrepender de te deixar terminar essa frase – alertei-a.

Ela suspirou.

– É só que você precisa saber que os sentimentos do Theo são reais. Ele nem precisa falar; quando fomos visitar nossos pais eu pude ver...

– Ah, sim – eu ri – Você não me contou como foi a reunião da Família Addams.

Ela estreitou os olhos para mim, mas eu sabia que não a ofendera – na verdade, se tratando dos casos de família entre os Lawrence/Chevalier, aquilo era quase um eufemismo. Court ficou irritada porque eu estava mudando o foco da conversa.

– Não importa. O que importa é que você tem a oportunidade de recuperar sete anos e ela está em suas mãos. Eu não estou lhe dizendo o que fazer e nem devo, porque é uma decisão sua. Mas sei que, em algum lugar dentro de vocês, vocês nunca deixarão de se amar.

Muito obrigada, Court.

– Somos todos homens em nossas próprias naturezas frágeis e sujeitos à nossa carne – suspirei – Poucos são anjos.

Ela franziu a testa com uma cara que deu a impressão de que eu estava falando em latim arcaico.

– É Shakespeare – expliquei – Henrique VIII, sabe?

– Você é definitivamente impossível.

– É um dom – murmurei – Mas e você? – eu a senti enrijecer no meio da confusão de pessoas, luzes e sons da 42th Street. Talvez tenha pensado que eu fosse falar sobre Muller, mas acho que uma de nós já tinha problemas o suficiente com os flashbacks ganhando vida – Você e Peter, quero dizer. Estão bem?

Court encarou brevemente seu relógio Marc Jacobs rosa e dourado.

– Dependendo da sua definição de bem... – ela parou de andar e se virou para mim – Quer saber uma coisa? – ergui as sobrancelhas, esperando que ela continuasse – Nada disso importa, sabe? Não existe nada impossível se estivermos juntas. Superamos o ensino médio e as pessoas que nos odiavam e as provas e os garotos... – ela mordeu o lábio – Só conseguimos fazer tudo isso e mais porque temos uma à outra. Não há nada nesse mundo que não possamos resolver.

Inclinei-me impulsivamente, jogando os braços ao redor do pescoço dela. Court retribuiu o abraço com força e quase caímos em cima das pessoas que passavam por nós, que reclamaram e xingaram, mas não ligamos.

– Eu te amo muito. – falei alto e ela gargalhou.

– Eu também te amo. Aliás, tenho uma boa notícia. – ela me afastou segurando meus ombros, parecendo terrivelmente animada – Nate está vindo passar um tempo na cidade.

Sarabeth’s servia o melhor brunch de toda a cidade. O lado de dentro estava completamente cheio, mas não importava. Eu preferia o lado de fora, onde poderíamos comer sem nos preocupar e ainda pegar um pouco do sol matinal daquele domingo.

Eu mal podia acreditar que havia concluído a faculdade. Não havia como não se acostumar com a vida em Massachussets, monótona se comparada à nova-iorquina. Era estranho pensar que eu era oficialmente uma adulta com uma carreira. E que esperava um bebê.

Court estava participando do programa de verão da FIT – apesar de ter estudado na Parsons, ela decidiu que sempre se envolveria em qualquer programa de moda que tivesse oportunidade para ficar cada vez melhor no que fazia. Nate estava de férias das gravações de Young Hearts, o seriado adolescente onde ele atuava como o protagonista.

Nathaniel Dashwood foi uma das poucas pessoas com quem eu e Courtney nos juntamos na escola, mas logo percebemos que nossa amizade era forte o suficiente para não ser passageira como tudo mais em Sacred Blood Institution parecia ser. Nate era rico, mas diferente dos outros não se gabava por isso, talvez porque a fortuna da família viesse da fábrica de absorventes de seus pais. Ele não tinha culpa de se sentir constrangido e querer outra carreira. Agora, ele era reconhecido por todas as adolescentes americanas que eram apaixonadas por ele ou por sua relação fictícia com a atriz Alice Dunne, mesmo que Nate fosse gay assumido.

– Essas waffles estão tão boas que é quase inacreditável – Court murmurou de olhos fechados. Eu ri.

– Eu sei! – Nate concordou. Ao lado de Courtney, os cabelos dos dois pareciam ouro refletindo a luz do sol. Eu sempre dizia que eles poderiam se passar por gêmeos se quisessem. – Se você me acompanhar para pegar mais um prato não vou me sentir culpado por não ter ido à academia ontem.

Courtney estalou a língua.

– Que se dane a boa forma!

Os dois ficaram de pé, rindo, e eu continuei circulando a borda da minha xícara parcialmente vazia de chá de camomila. Court seguiu para o lado de dentro e Nate segurou meu braço antes de se agachar para ficar do meu tamanho.

– Você está bem, amor? Precisa de algo?

– Estou bem – falei, balançando a cabeça como se aquilo provasse que eu estava falando a verdade – Você não precisa se preocupar.

Desde que descobrira que havia um quarto membro se juntando ao grupo, Nate estava sendo excessivamente protetor. Ele até mesmo monitorava o que eu comia e checava se eu não estava caindo por aí – sei que nunca fui a garota mais graciosa do mundo, mas ainda assim.

– Bem, concentre seus poderes jedi de grávida até voltarmos. – ele acariciou delicadamente minha barriga de quatro meses com um sorriso satisfeito – Mais tarde vou mostrar que você ainda pode conseguir caras mesmo com a Leia aqui dentro. Ou Luke.

Soltei uma risada que pareceu um engasgo.

– Eu não vou chamar o bebê de Leia ou Luke.

Ele me lançou um olhar de reprovação.

– Você é uma traidora – falou decidido, me dando um beijo na testa antes de sair.

Observei os dois dentro do restaurante através das janelas de vidro e engoli em seco, colocando as mãos institivamente sobre a barriga. Ainda não sabia o sexo do bebê, os exames não haviam conseguido mostrar. Eu tinha, no entanto, uma estranha sensação de que sabia que era uma menina. E havia um nome que não saía da minha cabeça.

Mia. Mia Elise.

Isso deixava tudo mais real. Às vezes sentia como se aquilo tudo fosse demais e excedesse a minha capacidade, mas ao ver Courtney e Nate percebi que enquanto tivesse os dois comigo, eu ficaria bem. Eu e Mia ficaríamos bem.

Theo

Aquele dia começou de um jeito, no mínimo, estranho.

Eu não tinha planos de falar com ninguém nas 24 horas seguintes. Na verdade, não tinha planos nem de levantar da cama. Não sabia o que estava acontecendo comigo. Há uma semana atrás, Theo Chevalier era outro homem. Um homem de negócios que não precisava pensar em nada senão em sua companhia e em noites nas melhores boates parisienses muito bem acompanhado por Kaira, minha secretária linda, loira e lésbica, disputando quem encerraria a madrugada com mais mulheres. Encantador, não é?

Nova York fazia com que eu me sentisse como uma pessoa de verdade, com emoções, e eu detestava isso. Eu não podia culpar a cidade, o.k., mas sim quem estava nela por fazer isso comigo. Minha amável e carinhosa madrasta, que se importava comigo mesmo que eu fosse um merda. Minha irritante meia-irmã, que eu não conseguia me imaginar sem. Melissa. Melissa Melissa Melissa, o nome dela parecia ressoar na minha cabeça no silêncio do quarto.

Fiquei de pé, irritado, e me surpreendi ao perceber que não estava de ressaca. É óbvio, pensei. Theo Chevalier poderia beber por diversão ou opção, mas não para algo tão medíocre como afogar as mágoas.

– Jake! – eu chamei, ao ouvir o barulho de passos na parte da cozinha – Onde está Duke? Os latidos dele na minha porta me acalmam.

Jake apareceu com roupas esportivas, suado e bebendo de uma daquelas garrafas coloridas de água gaseificada com sabor.

– O coitado está descansando – ele respondeu, com a respiração pesada – Corremos por uns bons 5 quilômetros hoje

Ergui as sobrancelhas. Será que a vida poderia ficar ainda mais bizarra?

– E desde quando você virou uma droga de homem maratona saudável?

– Desde a melhor coisa que aconteceu na vida dele – uma voz feminina disse atrás de mim – Ou seja, eu.

Eu não precisava me virar para saber a quem aquela voz pertencia, mas sou do tipo que precisa ver para crer em algumas coisas, Jessica Rothschild na minha sala de estar, por exemplo.

– Jess – eu sorri, abraçando-a – Você continua... fantástica – falei. Era difícil encontrar uma palavra apenas para defini-la.

– Já vi você em dias melhores, Chevalier – ela brincou, com uma mão no meu rosto – Mas não é sua culpa. Dizem que as mulheres ficam mais bonitas depois que se tornam mães.

Levei alguns segundos para compreender e então a sensação foi como de um tapa na cara. Instantaneamente olhei para Jake, que ergueu os ombros. Será que ele não entendia?

Todos pareciam estar seguindo com suas vidas, enquanto nós dois éramos deixados para trás. Eu juro que, se Courtney aparecer grávida, irei procurar um novo grupo de amigos.

– E para a sua informação, não, ele ainda não colocou um anel aqui – Jessica ergueu a mão esquerda e gesticulou com os dedos, referindo-se ao pai da sua criança, acho – Mas não acho que vá demorar muito. Você vai precisar voltar para NYC.

Abri a boca, mas nenhum som saiu. Como, em nome de Deus, aquilo poderia ser possível? Não haviam se passado tantos anos assim! Jess era uma das minhas melhores amigas e parceira de crime no ensino médio. Lembro-me das confusões em que ela se meteu, lembro-me das confusões em que nos metemos juntos. Lembro-me de quando ela foi aprovada para a faculdade de medicina na Columbia, mas então, com o suicídio de seu pai, Jake herdou o banco da cidade e abriu mão de tudo por ela.

Estávamos na mesma situação agora, eu diria. Eu, Melissa, Courtney e Jessica. Jovens demais com responsabilidades demais e capas de revistas demais para aparecer.

– Você vai continuar me olhando com essa cara de idiota? – Jess perguntou. Ela parecia hiperativa – Não, Chevalier, não posso deixar isso acontecer também. Vá. Saia ao ar livre. Viva um pouco!

Jake tossiu para disfarçar a risada. Nós trocamos um olhar e ele pareceu dizer Eu sei, inacreditável, não é?

– Bem, você está absolutamente certa – falei. Duke apareceu, correndo até mim, e eu acariciei a parte de trás das suas orelhas – Hum, obrigado, Jess. Vou fazer algo assim.

Ela pareceu extremamente satisfeita e pegou a bolsa gigante que estava em cima do meu sofá. Eu não sabia qual era o lance das mulheres e aquelas bolsas. Parecia que você podia se perder ali dentro.

– Eu realmente preciso ir. Vamos nos ver novamente, Theo?

– Definitivamente – eu puxei a mão dela e a beijei, cordialmente – Não vejo a hora de conhecer o seu... sua...

– Sophie – o rosto dela pareceu se iluminar ao pronunciar o nome. Ela se virou para Jake, com os braços abertos para abraça-lo, mas recuou, com o nariz franzido – Eca, você está nojento.

Jess sai. Jake e eu nos encaramos.

– Então você esqueceu de me contar esse pequeno detalhe – comecei – Que sua irmã apareceu e está fazendo uma reforma em você.

Ele riu.

– Ela é maluca. Mas... é, acho que ela está tentando me transformar em um homem melhor.

Era ainda mais estranho ouvi-lo dizer isso.

Voltei para o meu quarto e, antes que eu pudesse abrir o closet, o barulho do meu celular me chamou atenção. O aparelho estava jogado sobre o tapete no chão. Eu não fazia ideia de como havia parado ali.

Havia dezenas, talvez centenas de ligações perdidas e novos e-mails que poderiam ser importantes, mas nada me chamou tanto a atenção quanto a mensagem mais recente. “Encontre-me ao meio dia”, com um endereço logo depois.

Merda.

...

O Lightland era impressionante. Não precisava estar morando em Manhattan para saber que aquele arranha-céu havia sido erguido em um piscar de olhos e estava atraindo empresas que acabariam brigando entre si para ter um espaço nele, como animais disputando a presa. Apesar disso, o homem parado à frente da parede de vidro – a vista da Sétima Avenida, 42th Street e pessoas saindo e entrando no terminal de Port Authority – não parecia nada impressionado.

Aproximei-me silenciosamente.

– Olá, pai – cumprimentei-o de forma civilizada, considerando que não seria adequado fazer ou falar as coisas que surgiam na minha cabeça quando nos encontrávamos.

– Você está atrasado – disse ele, o que me fez revirar os olhos. Eu costumava levar a pontualidade bastante a sério, mas dessa vez fiz de propósito. Henri não se incomodou em me dar atenção por mais do que meio segundo, virando-se novamente para a paisagem da cidade lá embaixo.

– Está planejando abrir uma sede aqui? Nesse prédio? – perguntei, colocando as mãos no bolso da calça do terno.

– Não, garoto, estou planejando comprá-lo – ele respondeu, com desdém. Não demonstrei reação. Henri realmente fazia esse tipo de coisa. Ter me chamado para um restaurante naquele prédio foi bem pretensioso. – Venha, vamos beber alguma coisa.

Ocupamos uma das muitas mesas vazias. Eu não precisava olhar os preços no menu para saber o motivo de poucas pessoas estarem ali. Poucas podiam.

– Uma garrafa de Don Melchor – Henri pediu, ríspido como sempre, sem olhar para o garçom. Eu preferi não beber nada, não ainda.

Tinha um pressentimento estranho sobre o que estava para acontecer. Não exatamente ruim, mas eu precisava estar alerta, não importava o quão resistente eu fosse com álcool.

– O que diabos você pensa que está fazendo aqui? – Henri sussurrou, entre os dentes, em francês, como se precisasse ter certeza de que ninguém seria capaz de entender as palavras trocadas ali.

Levei a mão instantaneamente ao bolso do paletó, em busca de um charuto. Não havia nada.

– O quê, esqueceu que foi você quem me chamou? – rebati, sarcástico, também em francês.

– Não banque o engraçadinho. Não tenho tempo para isso. Estou falando da cidade. Achei que tinha o deixado ocupado o suficiente em Paris.

Soltei um suspiro. Eu era quem não tinha tempo para aquilo.

– Bem, então aparentemente você esqueceu do casamento da sua enteada. Tem certeza que está tudo bem, Henri? Digo, envelhecer é foda. Você pode estar com Alzheimer...

Ele bateu na mesa e eu parei de falar. Não foi o suficiente para me intimidar, porém, e eu fiquei em silêncio com um sorriso escárnio pendurado nos lábios.

– O maldito casamento será em dois meses. Você não... você não pode estar planejando ficar fora durante todo esse tempo. A Unite... – ele foi interrompido pela chegada de sua garrafa de vinho, mas não pareceu se importar com ela.

– A Unite está sendo supervisionada. Eu a deixei em boas mãos, o que acha que eu sou, um retardado?

– Às vezes tenho dificuldade em achar que não – ele grunhiu e se inclinou em minha direção. Não me movi, não fiz nada, apenas o observei. Seu cabelo preto havia se tornado cinza escuro, havia rugas ao redor de seus olhos e a barba bem aparada não escondia seu queixo rijo. Lily parecia ter sido graciosamente atingida pela idade. Meu pai, por outro lado... – Simplesmente não dá para confiar em você. Fui um tolo em achar que você amadureceria e se tornaria um homem de verdade. Nunca irá passar de um mimado irresponsável, um bastardo...

Eu não estava dando a mínima para o que ele falava até então. Até mesmo Henri arregalou os olhos ao perceber que havia soltado algo que não devia. Algo mais importante do que a senha do seu cofre ou coisa parecida.

De um ímpeto me levantei. Ele fez o mesmo. Cerrei os punhos – minhas mãos estavam tremendo.

– Theodore... – ele estendeu um braço. Virei-me de costas antes que eu tivesse que ouvir mais alguma coisa.

...

Ela havia feito uma pergunta – um pedido, para ser mais específico – que poderia ser respondida apenas com sim ou não. Ainda assim, eu havia decidido que precisava treinar minha resposta em frente ao espelho. Não era nenhum discurso, apenas uma frase que eu não conseguia colocar para fora, como se prendesse em minha garganta antes que eu pudesse concluí-la. Courtney... Courtney, eu... eu...

Pisquei com força, esfregando a mão no rosto. Por que era tão difícil?

As portas do elevador se abriram, me causando um arrepio. Aquela era a cobertura gigante onde Melissa vivia. Era estranho estar ali, não para vê-la, e poder sentir sua presença. Tudo fazia com que eu me lembrasse dela. E eu ainda não havia me acostumado com a dor que isso causava.

Courtney havia dito que eu não precisava me preocupar – apenas ela e a pequena Mia estavam em casa. Agradeci mentalmente, porque parecia meio humilhante dizer em voz alta.

Esperei por algum rosto familiar, como Poppy (eu não fazia ideia se ela ainda trabalhava para Meli, mas duvidava muito que elas poderiam algum dia se separar) ou a própria Court. O lugar parecia melancolicamente vazio, até que passos nas escadas atraíram minha atenção. Courtney parecia apressada.

– Ei, você está aqui – ela disse. Detectei o nervosismo em sua voz.

– Sim – sorri – Olhe, precisamos convers...

– Eu sei – ela me cortou – Mas eu realmente não posso agora. – olhei para suas mãos. Ela apertava o celular como se fosse capaz de parti-lo em dois. – Por que não vai lá pra cima fazer companhia para Mia Elise?

Mordi o lábio. Uma coisa era brincar com a garota enquanto Melissa nos supervisionava com um olhar de mamãe urso que seria capaz de me rasgar no meio se sua filha se machucasse, mas eu ser o adulto responsável?

Não neguei. Eu sabia que Courtney estava encrencada com algo. Além do mais, eu estava com saudades de Mia. Era esquisito admitir isso ou até mesmo pensar nisso.

No alto da escada escutei uma música suave e mais do que conhecida para mim. Era como se eu tivesse sido transportado para os anos 90 novamente, onde os acordes de piano sempre eram acompanhados por meninas de vozes agudas e adocicadas.

Frère Jacques, Frère Jacques, dormez-vous, dormez-vous? – ela cantou, baixinho, e me aproximei da porta entreaberta de onde vinha o som. Parecia impossível, mas Mia Elise estava sentada diante de um gigante piano branco, movendo os dedos pelas teclas – Sonnez les matines, sonnez les matines. Ding, ding, dong. Ding, ding, dong.

Santo Deus.

Aquela era uma das vozes mais bonitas que eu já havia ouvido em toda a minha vida.

Bem, ela era uma Stark. Eu já deveria saber que ela teria uma tendência a ser boa em tudo que fizesse.

Parlez-vous français? – perguntei ao entrar.

– Sr. Theo! – ela exclamou, abrindo um sorriso. Como se eu não pudesse controlar, retribuí. – Oui – confirmou Mia, dando espaço para que eu me sentasse ao lado dela – Minha vovó e minha mamãe são de Paris.

– Sim, eu sei. Eu também sou.

Ela pareceu impressionada.

– Sério?

– Seríssimo – coloquei uma mão sobre a dela. A minha parecia gigante e áspera em comparação à sua, pequena e macia – Você é realmente muito talentosa.

– Obrigada – Mia ergueu a cabeça, empinando o nariz – Minha mamãe quem me ensinou.

Ela falava aquelas duas palavras de um jeito diferente das outras. Minha mamãe. Parecia orgulhosa, ciumenta e possessiva. Pelo visto, eu e a menina tínhamos mais coisas em comum do que eu poderia imaginar.

– Theo – Courtney apareceu, me surpreendendo. Ela parecia alarmada. Olhei para Mia, que havia se voltado para o piano sem preocupações, e levantei para ir à minha irmã.

– O que aconteceu? – perguntei em voz baixa.

– Eu preciso ir. Preciso ir agora – tive a impressão de que o corpo inteiro dela está tremendo e comecei a me preocupar de verdade.

– Courtney...

– Vai ficar tudo bem. É só que... – ela agarrou os cabelos e fechou os olhos, com uma expressão de que iria se arrepender do que estava prestes a dizer – Não posso deixar Mia sozinha. Melissa está trabalhando e Poppy foi dispensada. Você tem que cuidar dela.

Tentei rir, mas por alguma razão não consegui.

– Você... você não pode estar falando sério.

– É muito sério! – ela gritou – Você não tem que se preocupar, só precisa ficar de olho nela e fazer o que ela pedir. Mia é esperta, ela vai saber...

– Está dizendo que eu sou burro em comparação a uma garota de... – interrompi-me. Percebi que não sabia quantos anos tinha a filha de Melissa. Provavelmente quatro, pela altura. Cinco, talvez?

– Você tem meu número. Pode me ligar se algo acontecer. Pode ligar para a Mey...

– Ah, claro, e então ela não só irá me matar como também irá matar você por ter deixado a filha dela comigo. – retruquei, mas ela não estava prestando atenção. Estava mexendo na bolsa, desesperadamente à procura de algo.

– Tudo vai dar certo. Confie em mim. Eu confio em você. – ela me beijou no rosto e saiu em disparada antes que eu pudesse questionar, mais uma vez, que porra estava acontecendo.

Respirei fundo, sozinho no corredor. Eu odiava crianças.

Na verdade, não. Odiava Courtney. A criança não tinha nada a ver com isso.

– Ei – voltei para a sala do piano. Mia estava da mesma maneira que eu havia a deixado, como uma daquelas estátuas de cupidos – Você não vai acreditar no que acabou de acontecer – tentei soar divertido, mas estava suando frio. Enfiei as mãos no bolso.

– O quê? – ela quis saber, arqueando as sobrancelhas.

– Sua tia Courtney... ela passa muito tempo com vocês?

Um sorriso tranquilo tomou conta do seu rosto.

– Sim – a pequena respondeu – Eu gosot mais quando ela está aqui. Ela fica mais feliz.

Bingo!, eu pensei. Aquele era um ponto que eu poderia ou não usar contra Courtney e seu noivo idiota. Ou melhor, eu usaria com certeza. Se eu não poderia convencê-la a desistir, apostava minhas moedas que a garotinha que ela mais amava no mundo conseguiria.

E só de pensar que eu havia ido ali para dizer que concordava em levá-la ao altar... onde eu estava com a cabeça? Ficaria devendo uma à Mia.

– Você pode me dizer o que ela costuma fazer quando está aqui? – perguntei. Mia pareceu desconfiada. – Court... Courtney teve que sair. Tudo bem por você se eu ficar aqui?

Achei Mia Elise ainda mais parecida com Melissa. Ela tinha a mesma expressão da mãe quando estava analisando alguém, como se estivesse pensando mil coisas em poucos segundos. Engoli em seco.

– Gostei da ideia – ela finalmente disse, erguendo os ombros timidamente. Eu a respondi com um sorriso.

Mia ficou de pé e me guiou pela mão para conhecer o lugar. A nova casa de Melissa parecia estranhamente semelhante à que eu me lembrava. Talvez ela tivesse mantido propositalmente o estilo de sua mãe, Dominique, para lembrá-la de quando moravam todos juntos. Havia fotos de seus pais por toda parte.

– A tia e eu gostamos de assistir filmes – Mia falou – Ou brincamos com algum jogo. Ou conversamos.

Eu assenti.

– E qual deles você prefere? Estou às suas ordens, Vossa Alteza.

O tratamento especial fez com que ela estufasse o peito, confiante, mesmo com seu meio metro de altura.

– Um jogo de perguntas. – ela se sentou no sofá e me encarou, balançando os pés.

Claro que ela era curiosa.

– Por mim, tudo bem – sentei no chão à sua frente – O que quer saber?

– Você é mesmo irmão da tia Court?

Concordei com a cabeça. Mia não pareceu satisfeita.

– Vocês não se parecem nem um pouquinho.

Não pude deixar de rir.

– É uma história complicada. – ergui os ombros.

Mia me encarou novamente e abaixou a cabeça, mordendo a parte interna da bochecha. Pensei se deveria lhe perguntar algo (apesar de não ter certeza do que perguntar para uma criança), mas esperei que ela dissesse algo. Ela ergueu a cabeça de novo e respirou fundo.

– Você conhece meu pai?

Sua voz estava baixa, mas foi direta. Ela parecia esperançosa, dava pra ver em seus olhos o quanto ela queria que eu dissesse sim. Se eu soubesse quem era o pai de Mia Elise, provavelmente eu teria ido procurá-lo para acabar com a raça do imbecil pelo simples fato de ele não estar ali com ela e Melissa naquele momento.

Neguei com a cabeça e me sentei ao lado dela.

– Seja lá quem for, não se preocupe com ele, está bem? – passei a mão pelo cabelo dela de um jeito carinhoso. Ela concordou, mas parecia tensa.

– A titia disse que ele é legal, mas não fez muitas coisas boas.

Ergui a sobrancelha e fiz uma careta. O que diabos Courtney tinha na cabeça.

– E eu o ouvi falando com a Jessica, uma vez. – Mia contou, puxando as pernas para cima do sofá para abraçar os joelhos.

Eu a encarei. Ela tinha os olhos de Melissa e o mesmo corte de cabelo da Courtney. Seu pijama era cor-de-rosa, com estampa de doces. Mia era uma incrível mistura das duas; além de linda, era surpreendentemente esperta.

Não dava para entender o que se passava na cabeça do cara para não querer estar ali com sua filha.

– Agora é minha vez de perguntar? – eu quis saber. Ela sorriu em resposta. – A sua mãe... ela já teve um namorado? Depois do seu...

Mia balançou a cabeça para negar, mas depois começou a rir, colocando as mãos sobre a boca para se conter. Sem entender, fiquei com a minha melhor cara de idiota e ela riu ainda mais alto.

– Essa sua cara – ela apontou o dedinho para mim – parece a do Peter quando minha tia fala de um velho namorado dela.

Então Courtney falava do Muller. Deus, eu deveria estar gravando essa conversa.

– Mas, não, mamãe nunca mais namorou ninguém. Pelo menos, não que eu saiba.

Eu deveria ter apenas continuado a conversa por outro rumo, mas não pude esconder a cara de satisfação ao saber que Melissa Stark não tinha ficado com ninguém a não ser... ele. Eu sabia que isso era egoísta da minha parte, principalmente por ter ficado com outras – muitas – mulheres. Eu só não conseguia controlar essa sensação queimante dentro do meu peito, não exatamente de ciúmes, nem possessão. Era algo diferente simplesmente por saber que eu queria algo que não poderia ter.

Mia se cansou do jogo de perguntas, talvez porque não me achasse tão interessante ainda. Ela pulou para fora do sofá.

– Estou com fome. – reclamou.

Que maravilha.

– O que gostaria de comer? – perguntei, imaginando todas as opções de restaurantes que entregavam em casa por aquela região.

Ela pareceu pensar por alguns segundos.

– Não sei. Você sabe cozinhar?

– Não – eu admiti, rindo. Uma das atividades favoritas de Courtney e Melissa era cozinhar, mas ninguém nunca teve coragem de dizer a elas que elas não eram boas. Talvez nem mesmo Mia. – Mas se tem uma coisa que aprendi morando sozinho é que tudo na geladeira pode ser aproveitado.

Mia me conduziu pela mão até a cozinha. Parecia uma nave espacial dourada e extremamente limpa. Ela puxou uma das cadeiras e a usou para subir e se sentar na bancada. Meli fazia exatamente a mesma coisa.

Sorri com a lembrança dolorosa.

– Vamos ver o que temos aqui, sim? – abri o freezer, encontrando exatamente o que eu queria. Pelo menos uma vez o universo estava do meu lado. – Sorvete de menta com chocolate! – anunciei.

– Você gosta?

– Está brincando? É bom pra caral... – mordi o lábio. Mia continuou esperando que eu terminasse a frase. – Quer dizer – pigarreei – É muito gostoso. – concluí.

Precisava me lembrar de não usar certas palavras perto daquela menina para não acordar com a cabeça dentro de um saco cheio de formigas.

– O que nós ­­­vamos fazer? – ela perguntou. Aquele pequeno gesto de ela se incluir, querendo saber o que nós faríamos, me deixou estranhamente alegre.

– Você sabe onde podemos encontrar cookies aqui?

Ela arregalou os olhos e concordou com a cabeça, hiperativa, erguendo os braços para que eu a levasse para o chão. Segurei-a em meu colo e a girei propositalmente. Mia deu um gritinho, rindo. Ela era tão leve quanto o ar.

Assim que desceu, ela correu para o forno e o abriu. Estava desligado, é claro, mas havia uma bandeja lá dentro.

– Poppy fez hoje para o café – ela disse, tirando os cookies. Mesmo que não estivessem tão recentes, o cheiro estava incrível. Senti meu próprio estômago reclamar. Poppy era uma cozinheira de primeira qualidade.

Coloquei os cookies e o sorvete sobre a mesa e Mia Elise em cima de uma das cadeiras para que ela pudesse acompanhar tudo sem precisar esticar o pescoço e erguer a cabeça.

– Chamam isso de sanduíche de sorvete – eu falei – Você pega uma colher cheia, assim, e coloca em cima do cookie.

– Depois coloca outro por cima – ela completou – como se fossem pão.

– Ei, eu sou o chefe aqui! – protestei. Mia sorriu – Estou brincando. Você já comeu isso antes?

Mia umedeceu os lábios, balançando a cabeça para dizer não. Conhecendo Melissa, os únicos doces que ela deveria deixar sua filha comer eram frutas. E macarons. Eu esperava que Courtney fosse a parte legal dessa família – a que dava batata frita e refrigerante escondido.

Nós comemos. Depois de fazer uma bagunça acrescentando outras coisas, fazendo uma mistura que acabou se tornando uma tentativa fracassada de banana split, mas que estava muito boa, decidi que talvez já fosse hora de Mia dormir. Eu não sabia ao certo, principalmente porque Courtney ainda não havia atendido nenhuma das minhas ligações, e eu estava ligando para ela a cada cinco minutos.

O quarto de Mia era como uma casa de bonecas gigante. A roupa da cama estava impecável e todos os móveis estavam em seu lugar. Havia brinquedos, livros e fotos por todo lado. Principalmente fotos.

Ela parecia uma boneca de pano enquanto eu a ajudava a se deitar e se acomodar no mar de lençóis pesados. Mia ajeitou a cabeça no travesseiro, tirando os cabelos do rosto. Estiquei a mão para desligar o abajur ao lado de sua cama quando ela falou:

– Senhor Theo... – ela estava me encarando com aqueles olhos nublados enormes, como se estivesse procurando algo em meu rosto.

Sorri de canto.

– Já disse que pode me chamar apenas de Theo, Mia.

– Theo – ela falou e sorriu – Você... você pode me contar uma história para dormir? Mamãe e titia fazem isso, mas nenhuma das duas está aqui.

Neguei instantaneamente. Não fazia a menor ideia de como inventar uma história infantil e não conhecia nenhuma – aquilo não fazia exatamente parte da minha vida e nem havia feito antes. Mia continuou insistindo e eu acabei cedendo, derrotado. Ela me deu espaço na cama e bateu no colchão para que eu deitasse de frente para ela.

Hesitante, eu o fiz. Ela jogou sua pequena coberta de Star Wars sobre nós, mesmo que não cobrisse nem a metade de mim, e abraçou seu urso de pelúcia, esperando.

– Certo – suspirei. – Era uma vez... um príncipe muito cruel e uma adorável princesa. Esse príncipe foi malvado com essa princesa durante a infância inteira deles, sem nem entender o motivo. – Mia fez uma careta. Eu sorri. – Porém, quando essa princesa se mudou para um reino muito distante, o reino de Manhattan, no meio de uma floresta de prédios e arranha-céus, o príncipe também quis ir para lá.

– Como eles se chamam? – ela perguntou, com a voz sonolenta.

– Ariel e Eric? – sugeri. Ela deu uma risadinha, concordando. – Continuando, eles voltaram a se encontrar quando Ariel já era uma bela moça, com lindos cabelos ruivos. Eric então percebeu porque implicava tanto com ela. Ele a amava.

– Então ele brigava com ela porque a amava? – Mia franziu o cenho – Isso é tão estranho.

– Verdade. Ele era um babaca. – falei. Mia sorriu, fechando os olhos. Ela se aproximou e se aconchegou em meu peito. Respirei fundo, encaixando o queixo sobre a cabeça dela. – Eric fez de tudo para mudar, ser um cara melhor e conquistar Ariel. Ele finalmente conseguiu, e ela aceitou ficar com ele.

A respiração dela havia ficado mais fraca. Percebi que Mia havia adormecido.

– E eles viveram felizes para sempre – finalizei, desligando a luz.

Acontece que eles não viveram feliz para sempre. O príncipe não havia mudado completamente – por dentro ainda era o mesmo filho da puta impulsivo que não pensava antes de agir. Talvez, se eu tivesse feito as coisas do jeito certo, Mia saberia quem era o seu pai. Eu poderia ser o pai dela, e faria de tudo para ser o melhor de todos. Se eu tivesse a chance de voltar ao passado, não teria abandonado Melissa e não teria deixado que minha irmã se casasse com alguém que eu nem mesmo conheço.

Eu não me sentiria um coadjuvante em uma história que estava acostumado a ser o protagonista.


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