Untouchable escrita por Lucy Donnelly


Capítulo 2
Capítulo 2 - I'm doing fine




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Jake

– Você já não pegou todas as malas? Quantas malas exatamente você trouxe, Chevalier? – perguntei, o mau humor tornando minha voz áspera. Parecia haver uma bomba-relógio prestes a estourar dentro da minha cabeça.

De fato, jet lag poderia ser tão ruim quanto uma ressaca.

– Muller, será que você pode... não falar tão alto? – Theo sussurrou vagarosamente, erguendo o dedo indicador em direção à minha cara, com os olhos fechados. Ele parecia tão ruim quanto eu.

Eu me sentia estranho – e não era só porque estava de pé a aproximadamente 25 minutos esperando a maldita mala daquele idiota na sala de desembarque do JFK Airport. Ainda não tinha certeza do por que havia concordado com aquela ideia ridícula, do por que estava aqui. Eu definitivamente não tentaria destruir casamento nenhum. Simplesmente não podia me dar ao luxo de fazer com que ela me odiasse para sempre.

Além disso, tropecei no estúpido cachorro do Theo ao dar um passo para trás. Xinguei em direção à coisa que balançava o rabo com a língua para fora, apesar de parecer estar chapado e com os olhos vermelhos por causa do remédio para dormir. Por que diabos o cão estava tão feliz? Eu sinceramente não conseguia ver motivo.

– Odeio esse troço. – ralhei.

– Modos, Muller. – Theo suspirou,

– Vou ter que dar ração e levar vocês dois para passar?

– Você tem um senso de humor adorável – ele respondeu, colocando os óculos escuros e finalmente pegando a mala que faltava. Junto com a bagagem e o cão, seguiu andando em passos largos com postura de superior. Revirei os olhos.

Havia muitas – realmente muitas – coisas que eu detestava em Theo Chevalier, e uma delas era aquela forma ridícula que ele agia, com seu olhar de desdém e queixo inclinado em arrogância. Eu geralmente via aquela expressão em outras pessoas que eu detestava, por exemplo, eu mesmo.

Eu não podia culpá-lo. Aquela era sua forma de exprimir (ou reprimir) suas emoções conturbadas e perturbações. E, porra, ele era o meu melhor amigo. O único, na maior parte do tempo.

Era desconfortável admitir isso mesmo depois de tantos anos que nos odiamos.

– Espera – eu o chamei – Para onde você vai? Ainda não me respondeu isso. Desde ontem.

Theo tirou um molho de chaves do bolso dos jeans, sacudindo-as na frente do rosto.

– Eu ainda tenho meu velho apartamento. Meu pai fez uma boa ação antes de ferrar a minha vida – ele se virou – Você vem?

Exclamei mentalmente ao me lembrar do antigo apartamento dos Chevalier no Majesty Building, um prédio de luxo no Upper East Side. Eu deveria saber, o lugar não era estranho para mim, por mais que eu quisesse naquela época – era onde meu pai e minha irmã viviam, e depois minha namorada, quando se tornou meia-irmã do Theo.

– Mais tarde – eu disse a ele – Preciso fazer algo antes.

...

Os quarteirões de Wall Street estavam movimentados com passos apressados, buzinas de carros e ônibus turísticos. Tirei a jaqueta, sentindo meu corpo esquentar pelo sol ardente em seus últimos dias de calor no outono. Segui andando. Algo não parecia certo.

Manhattan ainda era a mesma, eu era quem estava diferente. Seis anos na Europa, visitando e fotografando diversos lugares, fizeram com que eu parecesse um desconhecido em minha cidade natal. Eu conhecia Nova York em cada detalhe, mas me sentia como um forasteiro.

Encarei o prédio do Banco de Nova York por um momento antes de respirar fundo e decidir entrar. Não precisei de aviso para saber que não era bem vindo, afinal, eu estava usando camiseta, jeans e tênis velhos.

– Gostaria de ver Jessica Rothschild – falei para a recepcionista. Tive a decência de ser educado com as palavras, mas meu tom fez com que a frase soasse como uma ordem. E era.

– Você tem horário marcado? A srta. Rothschild não recebe visitas sem horário marcado. – a moça me respondeu, empinando o nariz e me observando com seus olhos julgadores tão escuros quanto seu cabelo. Eu a entendi. Não era eu quem estava perfeitamente arrumado e impecável entre nós dois.

– Não tenho, mas talvez meu nome ajude com algo. Jake Muller.

Essas duas palavras fizeram mais efeito nela do que se eu tivesse dito Avada Kedavra. A moça arregalou os olhos e começou a digitar rapidamente e revirar pilhas de papeis praticamente ao mesmo tempo.

– Você pode subir, sr. Muller. – ela limpou a garganta, claramente constrangida. Satisfeito, pisquei para ela. Vi seu rosto enrubescer antes de sair andando.

Precisei reunir coragem para segurar na maçaneta daquela porta, bem mais do que eu gostaria de admitir. Quando a abri... eu não sabia exatamente o que esperar, mas quis respirar aliviado.

Ela se levantou em um sobressalto da cadeira, completamente chocada, pela expressão em seu rosto. Mas era ela, definitivamente. Os anos que se passaram não mudaram o loiro escuro de seus cabelos, ou o azul gélido de seus olhos que pareciam me perfurar.

– Jake. – ela sussurrou, antes de correr em minha direção e enterrar o rosto em meu peito e as mãos em minhas costas. Apertei os braços ao redor de seu corpo, sentindo o cheiro cítrico de seu perfume tão próximo. – Você está aqui. É você.

– Sim – respondi, calmamente, afagando os cabelos em suas costas – Sou eu.

Fiz o favor de vestir preto, mas não estava realmente de luto. Eu era órfão de pai e mãe agora. Mas enquanto minha mãe teve sua vida drenada pelo câncer, enquanto eu tive que assisti-la sucumbir a cada dia, Ethan foi apenas um covarde que não soube lidar com seus problemas e se atirou do último andar do prédio.

Não resolvi meus assuntos com meu pai, diga-se de passagem.

– Leia esse documento direito, seu idiota incompetente! – minha madrasta, Eleanor, berrou. Aquela mulher era o diabo, e estava ainda mais sinistra com aquele vestido preto e véu de viúva. Ela provavelmente havia pegado de algum figurino de seus filmes.

– Seu marido acabou de morrer, mulher, seja condescendente – eu falei, calmo.

Ela se virou para mim com os olhos injetados de sangue e a boca escancarada de raiva e horror.

– Ele era seu pai!

– Mas eu não estou falando nada – rebati, dando de ombros.

– Jake, por favor. – Jess pediu, com a voz baixa. Eu a encarei. Ela escondia o rosto com uma mão, mas eu podia ver as olheiras fundas debaixo de seus olhos e seus lábios roxos e machucados. Decidi me calar. Por ela.

Jessica era a favorita do nosso pai. Ela não era uma bastarda, como eu. Apesar de todas as suas confusões na escola, as bebidas, as drogas e a clínica de reabilitação, Ethan nunca a tirou do pedestal. Eu meio que entendia o porquê de ela ter se abatido, afinal. Ela tinha um coração e lamentava pela morte dele. Eu não.

– Senhora, eu estou apenas fazendo meu trabalho. – o advogado do Ethan, Ryan, disse com clara impaciência. – O sr. Rothschild deixou o Banco de Nova York para o sr. Jake Rothschild.

Ninguém respondeu, em choque total. Até mesmo eu não esperava por aquela vindo.

– É Jake Muller – eu disse, finalmente. Sempre usava o sobrenome de minha mãe.

– Mas isso é inaceitável! – Eleanor rugiu – Ele é um bastardo! O Banco deve ser da minha filha!

– Senhora, a culpa não é nossa de você não ter mantido seu marido fiel a você. – Ryan falou. Eu tentei disfarçar a risada, mas Eleanor ficou ultrajada.

– Como ousa...

– E também não é nossa culpa que ele tenha deixado o Banco para o filho bastardo. – continuou.

Olhei de soslaio para Jessica. Ela permaneceu imóvel, com o olhar fixo no chão, e não disse uma palavra. Eu sabia que aquilo tinha a afetado.

– Quer saber? – falei – Que se dane. Quero apenas a minha parte da herança. Todos os outros bens que Ethan deixou para mim, eu dou para a Jessica agora.

Os três me encararam em igual incredulidade.

– Jake, você não precisa... – Jess começou.

– Não, eu não preciso, eu quero. – segurei as mãos dela. – Faça bom proveito. – sorri minimamente, e pude ver seus olhos reluzirem de felicidade.

Voltei-me para Riley e Eleanor.

– Se era só isso. – acenei a cabeça para ele, cordialmente, e olhei para a mulher loira que me encarava com uma expressão diabólica. – Você conseguiu o que queria, e eu também. Espero não vê-la nunca mais.

Courtney

Nunca fui uma boa chefe. Quer dizer, eu sempre fui uma boa chefe, talvez esse seja meu maior problema no momento.

Quando se está na faculdade, a única coisa que você quer é que aquilo acabe. Então você consegue seu diploma, estagia com milhares de estilistas rígidos, famosos, mesquinhos e, depois de quase dois anos sofrendo na mão de pessoas que parecem não querer aproveitar seu talento apenas te explorar, os estudantes formados em moda decidem que querem abrir seu próprio ateliê.

Se minha mãe me visse agora, ela diria “Você faz o que pode, querida”. Se fosse meu pai e, por alguma ventura do mundo ele falasse comigo e eu gostasse dele, ele sorriria falsamente e diria “Se você fosse médica…”.

Eu só não entendia porque eu nunca conseguia fazer a única tarefa difícil que me foi delegada quando optei por ser minha própria chefe: demitir.

Toda vez que tentava demitir alguém, um buraco negro se abria em meu estômago e eu recuava, dando mais uma semana para que a pessoa tentasse melhorar seu desempenho. Julian Beaumont não teve a menor compaixão quando olhou para mim e simplesmente disse que eu era a ralé da moda atual. O.k., aquilo poderia ter acabado com minha carreira e meus sonhos futuros, mas eu agradeço àquele francês de araque por ter me expulsado de seu ateliê na primeira chance que teve.

Na verdade, eu o agradeci meia hora depois, quando a assistente de Michael Kors me ligou, dizendo que tinha uma vaga. Foi graças a Kors que sou o que sou agora, já que ele foi o único que realmente me incentivou a continuar no ramo da moda e que acreditou em mim.

A questão aqui é que eu não sabia como ter sangue frio para demitir uma estagiária sem ferir os sentimentos dela. Poxa, há alguns anos era eu ali, naquela cadeira com cara de choro e pronta para dar um discurso sobre meu talento e de como eu podia melhorar – não que eu tenha feito isso.

Porém, eu precisava tomar uma atitude.

– Callie… – a chamei, e ela ergueu os olhos já marejados – Eu sinto muito, mas seu trabalho…

– Eu posso melhor, Srta. Lawrence. – me interrompeu a garota, chorando.

Assim não dá. Eu tento ser má, fazer as coisas funcionarem e, geralmente, dá certo. Mas aí, quando eu preciso demitir alguém para manter o equilíbrio em meu pequeno ateliê, esse alguém começa a chorar desesperadamente em minha frente como se eu fosse Meryl Streep em O Diabo Veste Prada.

– Calliope, me escute, está bem? – pedi, inclinando-me para frente. Ela concordou – Certo. Você já foi à Saks? – ela assentiu novamente – Então, eu preciso de completo e total comprometimento para terminar esta coleção. Semana que vem, os representantes da Saks virão aqui e eu tenho que ter o que mostrar a eles.

Ela me olhou sem entender. Aquela garota deveria ter uns vinte anos e a única coisa prestativa que fazia ali além de me trazer café pela manhã era, basicamente, me trazer café pela manhã. Eu havia lhe dado varias oportunidades de mostrar seu talento, se ela tivesse um. No final, ela era só mais uma garota precisando de um emprego e, no final, não tinha muito o que fazer em um ateliê.

– Quero dizer que preciso de pessoas que saibam colocar a linha em uma agulha. – resolvi ser direta, sempre é a melhor opção.

Calliope me olhou ofendida, como se seu ego tivesse sido massacrado. Tentei sorrir e ser cética como todos devem ser nesses momentos.

– Eu sou sua assistente, não posso colocar linhas em agulhas.

Aquela garota só podia estar de brincadeira com minha cara. Não é possível que um ser humano seja tão burro ao ponto de se alto intitular como minha assistente, coisa que obviamente não era. Calliope sorriu como se tivesse vencido e se levantou.

– Você não é minha assistente, essa é a Rose. Ela me ajuda com as finanças, as papeladas, a organização e é a responsável enquanto estou fora. – me levantei também, pegando meu casaco de pele sintética cor de rosa e o vestindo – Enquanto você é apenas a menina do café.

– Mas…

– Ah, faça-me o favor, garota. – revirei os olhos e caminhei até a porta – Não tenho tempo para seu drama existencial.

Não vou dizer que nunca agi daquela maneira. Ela estava praticamente me desafiando em minha sala e, eu não permito que as pessoas façam isso. Não passei por tudo que passei nos últimos anos para uma estagiária qualquer me dizer o que quer e sair por isso só. Eu não era mais aquela adolescente boba que se deixava levar ordens de boca fechada, não mais.

– Agora eu irei para um incrível almoço com meu noivo e quando eu voltar, querida, - virei-me para ela, encarando-a séria – Espero que você esteja bem longe deste ateliê.

...

Mais cedo, quando recebi a mensagem de Peter que dizia apenas “Almoço? ;)”, achei que iria direto para algum restaurante italiano na Oitava Avenida onde eu poderia devorar um ravióli de quatro queijos e teria direito a um panna cotta de sobremesa. Porém, quando ele me pediu que fosse para o prédio da Vision Industries, achei que aquela carinha piscando poderia ser meio pretensiosa demais.

O salto de meus sapatos pareciam fazer um barulho estrondoso contra o chão de mármore da sede da companhia de Melissa, mas ninguém pareceu notar ou se incomodar com isso. Não havia sinal dela pelas redondezas, mas aquilo não me surpreendia mais. Melissa era terrivelmente ocupada. Se tratando dela, ela deveria estar em uma reunião com astronautas ou, sei lá, o presidente dos Estados Unidos.

Abri a porta do escritório de Peter sem bater. Dei de cara com ele mesmo – e quando ele empurrou a porta atrás e nós, minhas suspeitas foram confirmadas assim que ele tomou meu rosto em um beijo violento.

Os lábios dele eram quentes e senti o gosto de uma mistura de café e menta quando sua língua invadiu minha boca. Agarrei seus ombros para tentar me equilibrar. Meu coração estalava dolorosamente contra minhas costelas enquanto eu o beijava de volta, sentindo o ar faltando nos pulmões, mas não queria parar por algo tão banal quanto respirar.

Suas mãos agarraram minhas coxas e as sustentaram quando ele me ergueu, minhas pernas em volta de seu corpo, minhas costas e cabeça se chocando com ímpeto contra a porta. Puxei seus cabelos e contive um gemido preso em minha garganta quando ele mordeu o meu pescoço. Reunindo força e contra a minha vontade, empurrei-o e deslizei rapidamente de volta com os pés no chão.

– Almoço, lembra? – eu disse, alarmada, sem nem mesmo disfarçar o desespero ofegante em minha voz.

Os dentes perfeitos de Peter se exibiram em seu largo sorriso. Eles brilhavam tanto quanto seus olhos azuis incríveis e seu cabelo e barba dourados à luz do sol que atravessava os vãos da cortina.

– Você não pode estar com tanta fome assim. – argumentou.

– Você esqueceu de trancar a porta, também – retruquei, sorrindo de volta e beijado seu pescoço. Ele tinha cheiro do perfume Ferrari. A pele onde meus lábios encostaram se arrepiou.

– Ponto para você, srta. Lawrence.

– Não continuarei sendo srta. Lawrence por muito tempo.

...

A mesa de vidro vibrou pela terceira vez em menos de dez minutos. Peter interrompeu o talher no meio do caminho até a boca e alternou o olhar entre meu telefone e eu enquanto eu tentava disfarçar.

– Quem é? – ele ergueu as sobrancelhas.

Revirei os olhos. Eu estava ignorando porque sabia quem era. Apertei o botão, acendendo o visor.

De: Theo

Onde você está? Me ligue.

De: Theo

Courtney???

De: Theo

Por que não responde, idiota?

– É o meu irmão – suspirei, dando uma garfada no ravióli.

– Você não tem irmão. – Peter disse, cauteloso, como se estivesse dizendo pra uma criança retardada que ela não vai ganhar um brinquedo.

– Bem, você está certo. Mas o Henri tem um filho, que é enteado da minha mãe, então... – ergui os ombros – Ele mora em Paris, por isso você não o conhece. Comanda a empresa deles lá.

Peter não pareceu muito impressionado.

– Tem mais algum parente misterioso que eu não conheça?

Eu ri.

– Idiota. Quero que vocês logo, mas... – o celular vibrou mais uma vez – Santo Deus, eu vou matá-lo.

– Vocês parecem se dar bem – ele sorriu por trás da taça de vinho.

– Já tivemos dias piores. – meu alarme tocou e o lembrete “Mia, escola, agora!” saltou na tela. – Oh, eu preciso buscar a Stark pequena. É minha vez de cuidar dela já que a grande está ocupada.

– Tudo bem – Peter não pareceu muito feliz ao dizer isso, mas eu já estava recolhendo minhas coisas apressadamente e ficando de pé – Mas você nem comeu a sobremesa!

Sorri fraco.

– Guarde um crème brûlée pra mim, sim? – eu o beijei rapidamente e disparei pela porta.

...

Eu sei que provavelmente serei degolada quando a pequena e doce Mia resolver contar à sua mãe onde a levei para almoçar. Entretanto, era impossível dizer não para aqueles olhinhos e para sua carinha. Além do mais, a menina só podia fazer esse tipo de coisa uma vez por semana quando estava comigo, e ela quase nunca contava, o que era um bônus.

Quando era menor, ir ao McDonald’s na sexta depois da escola era a única coisa que realmente me importava. Eu não ligava para as notas baixas nas provas de matemática ou para a menina que tentara cortar meu cabelo no recreio por ele ser loiro e maior que o dela. Edward me buscava no colégio e íamos ao McDonald’s no final da rua, perto da escola. Eu sempre pedia o McLanche Feliz por causa do brinquedo e geralmente não conseguia terminar meu cheeseburger porque meia hora depois eu já estava de maiô na piscina. Esse dia de Mia geralmente era às quintas e ela não precisava engolir correndo seu lanche porque tinha treino, só precisava desfrutá-lo como uma criança comum.

Depois de tomarmos sorvete e caminharmos um pouco pela Quinta Avenida, pegamos um táxi e voltamos para o meu ateliê. Todos ali adoravam quando ela estava lá por dois motivos: eu me acalmava e a tensão no lugar parecia sumir. Esses dias geralmente eram os mais tranquilos e produtivos, mesmo com uma criança servindo de manequim.

Sua rotina comigo era quase sempre a mesma: levava ela para almoçar em algum lugar que sua mãe obviamente não levava; caminhávamos pelas ruas observando as vitrines e comentando as roupas estranhas que víamos; voltávamos para o ateliê e, enquanto ela fazia seus deveres, eu adiantava o máximo que podia para poder dar total e completa atenção para ela.

Mia estava sobre o pequeno palco no canto do ateliê enquanto eu terminava seu mais novo vestido. Ela ria de algo que Rose falava e também contava sobre seu dia na escola e, por Deus, como eu amava aquela menina. Ela cutucou o topo de minha cabeça, fazendo com que eu a erguesse em sua direção e se sentou, ficando de frente para mim e me encarou séria.

– Te machuquei, Pinkie Pie? – perguntei, arqueando uma das sobrancelhas. Ela negou e cruzou os braços. – Então o que houve?

– Tia Court, posso te fazer uma pergunta?

Meu coração se enchia todas as vezes que ela me chamava de tia. Para ela, todos os amigos de sua mãe são seus tios. Eu, Will, Jess… Todos. Porém, para mim aquela palavra surtia um resultado diferente do que surtia em Will ou Jess. Ela era, sim, minha sobrinha.

– Claro, docinho. – sorri e ela pegou em minhas mãos.

– Você conhece meu papai?

Aquelas palavras que soaram como um sussurro, quase um pedido de sigilo, foram como um tiro. Rasgaram meu coração de uma maneira que eu não conseguiria explicar. Ela nunca, desde seu nascimento, me perguntara de seu pai. E, sim, é claro que eu sabia quem era. Não seria certo contar a ela sem o consentimento de Melissa, mas eu sabia que minha expressão havia mudado e que meu silêncio havia denunciado algo. A garota era um gênio e logo perceberia isso.

– Eu…

– Srta. Lawrence, telefone para você. – Rose surgiu atrás de nós e eu sussurrei um “salva pelo gongo” sem que Mia percebesse e dei um beijo em sua testa. Ela sorriu triste e permaneceu sentada.

Fui até minha sala como sempre fazia, fechando a porta atrás de mim e me sentei sobre a mesa. Encarei Rose que estava parada junto ao batente, ela tinha um sorriso no canto do lábios, como se soubesse de algo. Com isso, presumi quem poderia ser do outro lado da linha.

– Como descobriu meu número? – perguntei e Theo riu sem humor, do outro lado.

Recorri à única pessoa que não me negaria nada. – sua voz estava mais calma do quê da última vez em que nos falamos e eu sabia que minha mãe não negaria aquela informação a ele – Podemos nos encontrar, maninha?

Revirei os olhos e Rose riu. Ela sabia praticamente todos os meus dramas. Praticamente. Rose era minha colega de quarto, no primeiro ano de faculdade. Ela desistiu de moda e optou por administração, com isso acabou virando minha… secretária, eu acho.

– Não tenho outra escolha, tenho? – bufei, derrotada.

Não. – pude visualizar seu sorriso vitorioso, o que fez com que eu quisesse apertar minhas mãos ao redor de seu pescoço. – Às nove, no Balthazar.

Não é que eu não goste do SoHo – até porque eu gosto. É só que eu geralmente não vou sozinha, ou melhor, quase nunca vou.

Quando disse que iria encontrar Theo no Balthazar, Peter insistiu em vir comigo. Ele ficou com aquele papo de que queria o conhecer e saber com quem estava dividindo minha atenção além de Melissa. Consegui o convencer de não vir, mas ele só concordara se eu viesse com seu motorista particular e, por mais que agora o nome Courtney Lawrence seja conhecido e esteja nas colunas sociais, eu preferia pegar um táxi a andar pela cidade em uma limusine ou carro de luxo. Dessa vez, não tive muita opção.

Ao encarar a fachada do restaurante pela milésima vez, agradeci mentalmente por ser Elliot no volante. Se fosse um taxista qualquer, já teria sido jogada para fora do carro há meia hora – sim, meia hora. Eu não estava atrasada, tecnicamente, eu só estava com medo, acho. Ou talvez minha ansiedade em ver meu querido irmão era tanta que não conseguia sair do carro e encará-lo.

Mas eu iria. Eu tinha que ir.

Dei uma última olhada em minha maquiagem e apalpei meu cabelo, colocando-o sobre meus ombros por cima do casaco. Pedi que Elliot não me esperasse, mas ele disse que ficaria ali até a hora que fosse necessário, pois estava seguindo ordens. Suspirei e finalmente saí.

Era só o Theo, meu insuportável irmão postiço. Insuportável irmão que não via a mais de quatro anos, devo acrescentar.

Ou talvez não.

Nunca é só o Theo.

Ele sempre estava tramando algo, além de que só resolveu aparecer depois que o convite chegou em suas mãos e pude ter essa confirmação assim que entrei no lugar e deixei meu casaco na recepção, procurando-o com os olhos e o encontrando, em uma mesa no canto do restaurante, acompanhado por ele.

Engoli em seco e pensei em voltar, fingir que havia esquecido e lhe dar uma outra desculpa. Mas Theo já havia me visto e estava se levantando para vir até mim. Em passos que pareceram tão lentos, me movi em sua direção e fui recebida com um abraço que nem sabia que ele poderia dar.

Por mais babaca, imbecil, estúpido, arrogante e egocêntrico que ele possa ser, eu senti sua falta de uma maneira que nem eu mesma sabia, até ter seus braços ao meu redor e sentir o perfume de seu terno.

– Já chega. – sussurrei, me afastando – Vai amarrotar meu vestido e, quem sabe, borrar minha maquiagem.

Ele riu e me guiou até a mesa, puxando uma cadeira para que eu me sentasse. Troquei apenas um olhar e um aceno com Jake, que foi retribuído com um breve sorriso quase imperceptível. Não tinha muito o que falar, já que havia ido até lá para reencontrar meu irmão e não ele.

Conversamos sobre tudo e nada, ao mesmo tempo. Não contei muitas coisas sobre eu e Peter, mas nada importante de verdade. Ele me perguntou sobre Melissa, mas eu sabia muito bem disfarçar quando não queria dizer algo sobre alguém e apenas contornei a situação, dizendo que ela estava bem e que o negócio da família continuava intacto. Quando meu copo de Glen McKenna já estava pela metade, ele se levantou com o celular em mãos e disse:

– Preciso atender essa. – falou, e se inclinou, beijando minha testa e olhando para mim e Jake – Tentem não se matar.

Revirei os olhos e suspirei, vendo-o se afastar. Não era exatamente assim que imaginei o reencontro com Theo. Nos meus pensamentos, íamos contar como foram os últimos anos e eu iria brigar com ele por ter praticamente feito com que eu me apegasse a ele e sumisse e, antes de ir embora, marcaríamos um dia para que ele conhecesse Peter. Porém, não era ele que esta sentando a minha frente, me olhando e terminando sua bebida.

O silêncio que se estabeleceu ali era um tanto incômodo. Constrangedor, eu devo dizer. Abaixei os olhos para meu copo e os mantive nele, desejando mentalmente que Melissa entrasse por aquela porta e me salvasse. Ou então Nate, qualquer um, mas é claro que nenhum viria.

Ergui os olhos e levei o copo com uísque à boca, ele me olhava com uma sobrancelha arqueada e logo desviou o olhar para seu celular. Bem, talvez aquele fosse o momento perfeito para desmascará-lo.

– Não vai dar. – comecei, colocando o copo agora vazio sobre a mesa. Ele me olhou. – O plano, Muller.

– De quê você está falando, Lawrence? – ele tinha uma expressão confusa no rosto e foi a primeira vez que ouvi sua voz naquela noite, ela estava mais rouca do que quando nos conhecemos. Talvez seu vício em cigarros tivesse aumentado e finalmente chegado às suas cordas vocais.

Se fazendo de idiota, como se eu já não tivesse entendido tudo. Inacreditável.

– Meu casamento. Vocês não vão conseguir destruí-lo. – Coloquei as duas mãos sobre a mesa e inclinei meu corpo para frente – Eu o amo. Amo Peter e ele também me ama. – sorri – E nada que vocês façam vai mudar isso.

Ele se manteve em silêncio e, quando sorri satisfeita, ele começou a rir. Sim, rir. Não um riso sarcástico, irônico ou cínico. Um riso debochado. Estava se divertindo com aquilo e eu provavelmente estava com a melhor cara de trouxa. Tive vontade de bater nele e em Theo, mas não conseguia demonstrar nenhuma reação enquanto ele ria espontaneamente.

– Courtney, já desisti de tentar te conquistar.

Aquela frase. Aquele conjunto quase perfeito de palavras que deveriam me deixar feliz e aliviada me atingiram como se um tijolo tivesse sido jogado sobre o para-brisa e me acertando em cheio na cabeça.

Eu odiava chorar na frente das pessoas. Odiava parecer fraca e vulnerável – por mais que eu realmente fosse. Jake já tinha me visto chorar tantas vezes que eu não deveria mais me sentir assim em relação a ele, mas quando ele era o motivo, todo o meu ego e orgulho me ajudavam a lutar para segurar as lágrimas.

– Você vai para a Alemanha? – eu perguntei, sem acreditar. Só podia ser brincadeira, mas Jake quase nunca fazia brincadeiras.

O verão estava quase no fim, faziam poucos meses desde que havíamos nos formado, e ele simplesmente estava indo embora.

– Minha mãe e meu pai estão mortos, Courtney – suas palavras soaram duras, sem um pingo de tristeza – Não há nada que possa me prender aqui.

Eu teria dado risada se não tivesse sentido como se meu coração tivesse explodido em um milhão de pedaços.

– Nossa, muito obrigada por me informar o quanto eu significo pra você.

Ele ergueu as mãos, exasperado.

– Você vai se mudar pra Los Angeles, porra! O que pretende que eu continue fazendo aqui enquanto você está vivendo seu sonho do outro lado do país?

Abri a boca sem conseguir dizer nada. Lembrar que eu havia o chamado ali para contar que eu havia sido aceita na Parsons, que eu permaneceria em Nova York, pareceu completamente irrelevante ao perceber o rumo que aquela conversa estava tomando.

– Para de agir como se nada nunca te machucasse! – gritei. As lágrimas escorreram queimando por minhas bochechas como ácido. – Como se você não tivesse sentimentos! Ir embora do país não é sua única opção. – engoli em seco, fungando. – Você poderia ir para L.A. comigo.

Jake deu uma risada seca.

– Eu sabia que você ainda não confiava em mim.

Escondi o rosto entre as mãos.

– De que MERDA você está falando? – rosnei, querendo desaparecer, querendo que ele desaparecesse. Suspirei, me recompondo, e decidi que no fim das contas aquela era a nossa melhor opção antes que nós dois enlouquecêssemos. – Quer saber? Isso não está mais dando certo.

Eu o encarei, por mais doloroso que fosse. Não queria ser covarde e terminar sem ao menos encará-lo nos olhos.

Acho que eu esperava que ele contestasse, implorasse o meu perdão, me beijasse e pedisse carinhosamente para que eu mudasse de ideia. Mas aquele não era o Jake. Aquilo não éramos nós.

– Você está certa. Já desisti de tentar te conquistar. – disse, e foi embora.


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