Dez horas escrita por Yokichan


Capítulo 7
4 horas




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Annie estava pensando que deveria dormir — sabendo que aquilo jamais aconteceria porque tudo o que ela via ao fechar os olhos eram as projeções mentais que havia construído durante todos aqueles anos

...

os dois vivendo juntos numa casinha cor de madeira num lugar qualquer, dormindo e acordando na mesma cama, bem perto, suas costas tocando no peito dele e aqueles braços brancos a envolvendo num abraço — possessivo, como era do jeito dele —, Heron saindo para o trabalho, despedindo-se dela com um beijo rápido, ela que ficaria ali, esperando, esperando que ele voltasse sempre, cuidando da casa, cuidando do bebê que ainda dormia dentro da barriga, o filho que ela sempre quis ter com ele e que se tornaria o garotinho de olhos negros mais assustadoramente inteligente que ela conheceria — porque, bem, aos oito anos ele saberia construir sozinho carrinhos de controle remoto e, aos onze, todo tipo de esquisitice eletrônica que se pudesse imaginar — e seu maior motivo de orgulho, então à noite ela se deitaria na cama ao lado de Heron e enquanto ele lhe beijaria o canto da boca, Annie pensaria que ter ido encontra-lo naquele dia tinha sido a melhor coisa que ela havia feito na vida

...

e Heron estava em todas elas — quando ele ligou.

— Por que você não respondeu?

Ela não entendeu a pergunta e tampouco estava pensando sobre isso. Durante algum tempo que, depois, ela não saberia dizer se havia sido muito ou pouco, o mundo era apenas a voz dele — indefinível. Aquela velha dor mordeu-a por dentro, uma dor esquisita que vinha sem saber de onde e ia embora assim, sem avisar.

Heron.

O nome dele queimava no escuro.

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Eram quase três da madrugada e seus olhos ardiam. Lá fora, um posto de gasolina abandonado na noite ficou para trás. Por um momento, Annie se deu conta de que a cada minuto que passava ela ficava mais perto de vê-lo e isso a fez gelar — ou ficar quente demais, ela não tinha certeza.

Então voltou a lembrar.

Annie se lembrou daquela noite, no ano passado, em que havia deixado de lado o Oblómov, de Gontcharóv, e esquecido de marcar a página porque Heron estava ligando. Lembrou-se de como o coração tinha batido tão rápido enquanto ela olhava para o celular sobre a cama, mostrando o nome dele, e se perguntava o que deveria fazer. Então ela atendeu — como se houvesse, afinal, outra opção.

Fazia cinco ou seis meses que eles não se falavam.

— Eu só queria ouvir sua voz. — ele havia dito.

— Por quê?

— Eu não sei. — silêncio. — Saudades.

— Com quem você terminou agora? — ela tinha aberto aquele sorriso triste.

Annie sabia que ele se sentia sozinho quando ligava.

— Com ninguém. Só pensei em você.

— Pensou o quê?

— Se você estava bem.

— Como se você se importasse.

Ela havia esboçado uma risada que soara estupidamente falsa e sentido vontade de chorar. Nos últimos tempos, vinha tentando manter-se fria em relação a ele como se isso pudesse protegê-la ou impedi-la de se machucar. Algumas vezes, tinha sido até mesmo agressiva, pedindo que ele a deixasse em paz e nunca mais voltasse a procura-la.

Mas, depois, ela sempre sentia a falta dele.

E aquilo quase a matava.

— Eu me importo.

— Por quê? — a pergunta tinha saído quase como um choramingo.

Heron havia ficado em silêncio.

E então desligado.

Ela se lembrou de como, olhando para o Oblómov através das lágrimas, tinha se sentido fracassada, porque não importava o que ela fizesse ou pensasse em fazer, não poderia ser diferente. Annie nunca deixaria de amá-lo — e talvez nunca pudesse tê-lo.

Ela se lembrou do que ele dissera uma vez.

“Nós estamos fadados a isso”.


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