PDV ALEC:
Era chegado o primeiro dia de aula. Uma semana antes, Gianna tinha ido até a escola da garota e havia nos matriculado. Entregou toda a papelada e me explicou que o primeiro dia seria somente uma aula "explicativa", só pra conhecer a escola, mas que, antes de tudo, eu deveria passar na sala a diretoria, porque ela me explicaria tudo detalhadamente.

Ao chegar na diretoria, vi uma mulher de meia-idade, baixinha, meio gorda e de aparência simpática, sentada lendo um grosso livro. Na placa em cima da sua mesa lia-se:"Sandra Mendes- Diretora". Ela nem havia percebido a minha entrada, porque ao chamar "Sra. Mendes" baixinho, ela levantou a cabeça rápido e ao me ver soltou um gritinho de susto, talvez pensando que eu fosse um fantasma. Reprimi o impulso de rir, humanos são tão bobos.
-Oh, querido! Que susto! Você deveria ter batido. -ela repreendeu-me, ofegante.
-Desculpe, eu não queria assustá-la. - tentei me explicar. Ela estava pálida.
-Tudo bem. -ainda ofegante, ela colocava a mão no peito tentando se acalmar.
-Desculpe -repeti entediado.
-Tudo bem, vamos aos negócios. -endireitando-se na cadeira, ela puxou alguns papéis-Sua mãe veio aqui semana passada, fez a sua matrícula e de sua irmã. - ela olhou atrás de mim- Aliás, onde ela está?
-Ela não pôde vir hoje.- a verdade é que Jane não quis vir, nada a faria vir aqui, nem sob decreto, segundo ela própria.
-Estou ciente de que são estrangeiros, mas parece que não têm dificuldade com o português. Isso é fabuloso!- ela sorriu, realmente satisfeita- Hoje a aula será somente experimental, você só assistirá uma aula, o restante do tempo será gasto conhecendo as dependências e normas da escola, para isso vou encarregar um aluno pra acompanhá-lo. Mas agora você vai pra sua aula.- ela olhou uma tabela que continha as aulas e salas, viu onde eu deveria estar de acordo com o meu horário- Parece que você vai pro auditório. Aula de música - explicou.

Me mostrou o mapa da escola e como chegar até o auditório.
Saí de lá correndo em velocidade humana, ansioso pra não chegar atrasado na aula e querendo desesperadamente encontrar o motivo que me levara até ali.
Ao chegar perto do auditório, senti duas coisas ao mesmo tempo: a melodia doce de um piano enchia todo o ar, assim como a voz de soprano mais bonita que eu já ouvira. Enchendo o ar havia também o aroma mais doce que eu já sentira na vida; era como um campo imenso de rosas, só que ainda mais doce e delicioso do que todas. A sede que me tomou foi cruel, minha garganta inteira em brasa, o veneno ameaçando me enlouquecer. Me acalmando, prendi a respiração e entrei no aposento.

"Under your spell again
I can't say no to you
Crave my heart and it's bleeding in your hand
I can't say no to you

Shouldn't have let you torture me so sweetly
Now I can't let go of this dream
I can't breathe but I feel

Good enough
I feel good enough for you

Era ela, a garota que cantava e tocava o piano era a minha cantante, percebi isso porque quando entrei na sala a queimação deu uma guinada pra pior. Fui tomado por algo, não sei como explicar o que, mas só tinha certeza de que tudo o que eu havia feito pra estar ali valia a pena, só pra escutá-la cantar.
Então, ela olhou pra mim e eu engoli em seco enquanto a sede me torturava sob aquele olhar. Era da minha altura, cabelos lisos e castanho-claros que iam até a metade das costas e olhos mel.

Envergonhada pelo meu olhar surpreso e especulativo, ela desviou os olhos novamente para o piano. Buscando uma distração que me levasse o mais longe dela possível, resolvi falar com a professora, enquanto ela ainda cantava as últimas notas.
Ao olhar pra turma, vi que todos olhavam para mim sob reações diversas: raiva, admiração e surpresa. No entanto, a professora nem notara minha presença, tão maravilhada que estava com a canção que a garota tocava e cantava. Por trás dos grossos óculos, seus olhos estavam brilhantes e havia um pequeno sorriso nos lábios. Quando me viu ali, desviou os olhos do palco e me fitou, sua boca se abrindo um pouco e ela piscou se acostumando. Sorri pra ela e disse:
-Oi, sou Alec Venturini, - Aro mudou nosso nome, só por precaução.- sou o aluno novo, vindo da Itália. Minha irmã não pôde vir...- fui dizendo ao acaso, ainda tentando aplacar a sede.
-Ah, claro! Seja bem-vindo! Sou Flávia, sua professora de música... - olhou pro palco e seu rosto se iluminou, tendo uma ideia.- Alec, será que podemos começar o ano com um desafio? Sabe tocar algo?

Acenti, ainda sem pensar:

-Violão, senhora.

Seu sorriso se alargou:

-Bom, então pode tocar um pouco para nós. Querida, por favor.- sinalizou para que a garota descesse e me cedesse o lugar.
Franzi o cenho mostrando que era uma má idéia, mas ela me ignorou. A garota já ia descendo do palco, quando meu olhar novamente encontrou o dela. Ela franziu o cenho e desconcertada, sumiu na multidão de alunos.
Suspirei, não acreditava que ia fazer aquilo. Mas não teve outro remédio, subi no palco, pus o violão no colo e acomodando-me em um banquinho alto, comecei:

Então, uma voz tímida começou a surgir no meio da platéia. Comecei a procurar a única pessoa que cantava junto comigo. Andando no corredor entre as fileiras de cadeiras, vinha a garota e que, embora envergonhada, me acompanhava sem dificuldade. Subiu os degraus do meio do palco e sentou-se ao meu lado, ainda cantando.

Enquanto eu olhava nos olhos dela, ela retribuía o meu docemente, sorrindo de leve para mim e eu achava incrível que ela pudesse olhar pra mim sem ter medo. Mas talvez fosse por causa das lentes escuras que escondiam meus olhos vermelhos. A voz doce dela enchia o ar, e eu não conseguia parar de olhá-la, mesmo quando ela fechava os olhos e cantava de um jeito ainda mais belo e natural, mexendo a cabeça no ritmo da música. Ela conseguia me acalmar ao mesmo tempo, fazendo com que, de repente, a queimação sumisse como se a voz dela fosse um anestésico.

Depois, rápido demais, acabou. A ela se virar pros outros e sorrir agradecendo. Me virei e pisquei os olhos voltando à realidade.

Então, a partir daí, a aula passou rapidamente. A professora ensinou alguns fundamentos que eu nem me esforcei em ouvir, já sabia de tudo mesmo. Quando a aula terminou, todos saíram da sala, mas a garota ficou pra trás conversando com a professora. Me dirigi até elas e disse:
-Flávia, a diretora disse que eu só teria um aula por hoje e que você deveria indicar alguém pra me mostrar a escola.
-Oh, sim, ela me disse algo sobre isso.- e se virou pra garota- Querida, faria a gentileza de mostrar a escola ao Alec?
Sorrindo pra mim, ela respondeu:
-Seria uma honra. - ela sorriu completando- Bem-vindo. Por aqui...-indicou com a mão o caminho.
Fomos caminhando pelos corredores da escola, ela sempre me mostrando e explicando tudo. Só aí que pude perceber que ela era educada e muito gentil.
Conversamos durante todo o intervalo e ela me contou que sempre estudara ali e que esperava que eu gostasse da escola. Me falou sobre algumas coisas que passara ali, engraçadas e tristes. Não deixei de notar que ela parecia totalmente à vontade comigo, como se me conhecesse há muito tempo. Não perguntei o nome dela, e, infelizmente, me dei conta disso já tarde, quando o intervalo terminava e ela me dizia que precisava ir.
Voltei pra casa feliz, o que pareceu incomodar a aura de mal-humor de Jane, provocando outra rodada de reclamações e ameaças. Ela terminou dizendo que não era obrigada a ir pra escola e que não ia colaborar com minha insanidade. Foi só quando ela se acalmou que eu pude conversar com ela direito e convencê-la a ir comigo pra escola no dia seguinte, após muito tentar, ela concordou de má vontade.