All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 6
Live Together, Die Alone


Notas iniciais do capítulo

Anteriormente

Os muros de Alexandria não resistiram à manada que se prostrou ao seu redor. Tobin sucumbiu e Tom fora mordido.



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Vincent puxou uma das cadeiras da cozinha de Cloyd e levou-a até um dos quartos/leitos, os seus passos, lentos e mancos, seguiam inevitavelmente ao compasso ritmado da batida de sua perna de pau no chão de madeira. Com o corpo levemente penso para o lado, Hall prosseguiu até chegar de fronte a maçaneta circular, onde, após recostar a cadeira sobre o solo, girou-a, abrindo o portal do cômodo e adentrando-o. Acomodou-se no assento que ele mesmo trouxera e, cabisbaixo, passou a observar toda a extremidade do lugar.

A janela envidraçada gerava uma iluminação precária ao quarto, principalmente pela baixa incidência de sol naquela tarde, o tempo esfriara novamente, mas a neve ainda se recusava a cair. A estante empurrada às pressas para que houvesse mais espaço no cômodo, estava levemente tombada, uma de suas pernas apoiada por um velho livro de capa acinzentada. Em suas prateleiras de madeira antiga, alguns exemplares de livros médicos dividiam espaço a comic books e edições de revistas de moda com mais de dois anos de desatualização. Também havia alguns porta-retratos de família, com sorridentes pessoas registradas nas fotografias, todas provavelmente mortas.

Ao lado da cama, um pequeno aparelho tratava de monitorar os batimentos cardíacos do paciente que se encontrava sobre ela, além de também servir como medidor de pressão e frequência respiratória. O barulho dos bipes ecoavam por toda a extensão silenciosa do quarto, enquanto o doutor observava atentamente o lento gotejar do soro adentrando a veia do moribundo. O procedimento fora difícil, muito por conta de todas as dificuldades em se realizar uma cirurgia complexa sem os materiais adequados, além é claro, da falta de ajuda. Hall sabia que as próximas horas seriam decisivas para atestar se o seu paciente seguiria ou não com vida, e se a resposta fosse negativa, ele sabia muito bem o que fazer. As pontas de seus dedos recostam-se o tempo inteiro sobre uma pistola armazenada no coldre em sua cintura.

— Eu não sei o que te dizer... – Suspirou Vincent, olhando diretamente para aquele que se encontra sobre o leito – Acho que tenho que ser sincero... É claro que eu não vou falar isso a ninguém mais, só que... Não acredito que você sobreviva... – Hall arruma os cabelos para trás das orelhas, suas sobrancelhas encontram-se arqueadas, mantendo uma expressão de seriedade – Você está estável! – Ele bufa ironicamente – Grande merda! Isso não que dizer nada... Eu não sei dizer qual é o seu real estado de saúde! Foi o que eu disse ao... Não importa! – O médico ergue-se da cadeira e começa a se deslocar em direção à janela de vidro, do lado esquerdo em relação à cama.

— Se eu pelo menos pudesse fazer algum exame... Merda, pelo menos a porra de um exame de imagem! – O médico prossegue com suas explanações sem obter resposta. Suas mãos espalmadas recostam-se ao vidro da janela, enquanto seu rosto, com os olhos fechados, direcionam-se para o chão – Eu não acredito em Deus... Nunca acreditei em algo que não fosse palpável ou pudesse ser mensurado, mas... Se ele existir, não passa de um grandessíssimo filho da puta! – Seus dentes se cerram enquanto ele segue esbravejando – Eu não consigo entender as escolhas que o universo tem feito! Você está aí e eu aqui...

Hall ergue os olhos em direção à janela, do lado de fora, é possível observar uma grande quantidade de zumbis vagando pelas ruas de Alexandria, movendo-se entre as vielas e recostando-se sobre a parede das casas em busca de carne fresca. Com a expressão abalada e triste, o médico vira-se e caminhando lentamente aproxima-se da cama, observando de perto a pessoa que se encontra inconsciente sobre ela.

— Não vou dizer que tudo vai ficar bem... Não sou desse feitio! Mas espero que ao menos pare de chover merda sobre nós...

*****

HORAS ANTES...

As pupilas de Tom dilataram-se, os seus batimentos aceleraram de forma descompassada, a pressão arterial parecia querer explodir tamanha força da pulsação, seu antebraço latejava, a dor, aguda e intermitente, não dava sinais de que o deixaria tão cedo. O sangue escorria livremente pelo ferimento que queimava sua pele, pingando no solo e iniciando uma pequena poça do líquido viscoso. No local da mordida era possível ver os seus tendões, além de parte do rádio e da ulna, tudo em meio às terminações nervosas que a essa altura não existiam mais. Seu rosto estava pálido, ora fosse pelo susto tremendo do ferimento brutal e inesperado, ora fosse pela grande perda de sangue que inevitavelmente ele começara a ter assim que a ferida fora infligida.

Ao olhar para trás, pode finalmente constatar a origem do grito que outrora o fizera perder a concentração. Morgan está deitado ao solo, de sua jugular, litros e mais litros de sangue jorram como se fossem provenientes de uma fonte, o homem que tanto lutara por sua vida é agora devorado por cinco patifes, como se sua existência não mais significasse nada. Os lábios tremem de forma descompassada, não conseguindo mais exprimir som algum. As distais falanges, seguindo o ritmo de seus espasmos involuntários, movem-se ininterruptamente, eretas e erguidas, como se tentassem trazer aquele condenado algum sinal de vida. Seu abdome já se encontra dilacerado, os seus intestinos, agora servem de alimento aos carniceiros que deleitam-se com o sabor de carne humana, como se experimentassem o prato mais saboroso da culinária americana.

Por alguns instantes, Tom sentiu como se tivesse perdido a audição, o choque que sofrera fora tão potente, que tudo a seu redor parecia estar em câmera lenta, e o silêncio estranhamente reinava sobre seus ouvidos. Apenas utilizando o seu reflexo, lançou da forma que pôde o seu martelo na direção de um morto vivo que tentava aproveitar-se de toda a situação, o errante, uma mulher de sessenta anos já morta há pelo menos um, só teve tempo de esticar os braços magros e definhados, antes de receber um golpe no meio da face, fragmentando o seu zigomático e lançando-a ao solo imediatamente. Ao olhar para Rick Grimes, apenas podia ver que seus olhos claros e agora arregalados, encontravam-se extremamente espantados com a situação, era possível perceber também, que entre um e outro golpe desferido por sua machadinha, o xerife gritava algo enquanto gesticulava com o coto.

— Michonne, agora!

Fora a única coisa que Tom conseguiu discernir, ao virar o rosto para o lado esquerdo, viu apenas um vulto seguido de um zunido, deslocando-se velozmente de cima para baixo. O impacto fora uníssono, repentino e durou apenas décimos de segundos, Price mal percebera o que acabara de ocorrer, até ele constatar com os próprios olhos que seu membro acabara de ser decepado. Michonne desferira de uma única vez, um certeiro golpe com sua katana que desmembrara Tom, arrancando o seu braço esquerdo quatro centímetros acima da articulação do cotovelo.

O sangue passou a espirrar de forma deliberada, jorrando por seu coto recém-gerado. Estranhamente ele não sentia dor, Tom não sabia como, mas naquele momento parecia que o mundo havia parado, os errantes não estavam mais ali, e pela primeira vez em muito tempo, ele sentia-se seguro. A sensação de bonança parecia um sinal, um sinal de que não havia mais motivos para lutar, talvez sua jornada precisasse acabar naquele instante, talvez sua missão já tivesse sido cumprida. Com um sorriso no rosto, Tom sentiu o corpo esmorecer lentamente, sua visão passou a ficar embaçada, até ser tomada pela total escuridão. O corpulento homem que se mostrara fisicamente mais forte que os demais, acabara de desabar perante o caos que se tornara Alexandria.

— Rick! Me ajuda aqui! – Gritou Michonne enquanto tentava segurar Tom, o corpanzil inconsciente do ex-soldador mostrava-se pesado demais para que a portadora da katana pudesse aguentar sozinha.

Grimes correu em sua direção, apoiando Prince pelos ombros, tentando impedir que ele caísse ao solo de vez, ainda na esperança de mantê-lo com vida.

— Temos que tirar ele daqui! – Vociferou Rick enquanto utilizava um dos pés para afastar um patife que se aproximara.

Michonne voltou os olhos para o chão, observando Morgan ser devorado de forma brutal, uma tristeza profunda começou a tomar conta de seu peito, comprimindo-o. Seus lacrimais começavam a produzir as gotículas que logo começariam a escorrer por sua face, mas ainda assim, ela esforçava-se ao máximo para não chorar, não queria de forma alguma demonstrar fraqueza, não queria ser derrotada pelo mundo. Sua vida parecia estar passando por um ciclo, fora assim quando tudo começou, ao ver seu namorado transformar-se em um dos patifes que tanto combatera, fora assim quando Tyreese teve sua cabeça arrancada por Brian Blake, quando ambos sobreviviam em um presídio nos arredores de Atlanta, e agora tudo acabara de se repetir com a morte de Morgan. Cada vez mais ela via sua humanidade se afastar de si, cada vez mais ela sentia-se como uma estranha no ninho.

Deixando Tom nos braços de Rick, a samurai prosseguiu golpeando as agora dezenas de mortos que já começavam a caminhar livremente pelas ruas da cidadela. Tomada pela fúria, ela parecia sentir prazer a cada cabeça arrancada, a cada cadáver que conseguia exterminar, como se aquilo de alguma forma pudesse diminuir sua dor, preencher o seu vazio. Seus movimentos raivosos e vingativos só foram interrompidos quando o barulho de um automotor fora ouvido aproximando-se do local.

— Tirem ele daqui! Nós assumimos agora xerife!

Abraham juntamente a sete homens chegam em um dos carros militares, portados de facões e rifles, prontos para guerrearem e tomarem de volta sua preciosa comunidade. Ao pularem da traseira do pequeno caminhão, os soldados começam imediatamente a enfrentar as criaturas, usando primordialmente suas armas silenciosas, ainda com esperanças de que pudessem exterminá-los sem atrair a atenção dos demais que ainda seguiam do lado de fora.

Rick e Michonne apoiaram Tom pelos ombros e rapidamente começaram a se dirigir até a casa da Doutora Cloyd, os dois precisariam ser rápidos, ou então não haveria mais chances de sobrevivência ao combatente. Praticamente arrastando o homem em meio às ruas, seguiram esgueirando-se entre um ou outro morto vivo desgarrado que já começavam a avançar pela comunidade. Grimes respirou profundamente e observando com pesar todo o momento pelo qual estavam passando, entristeceu-se ao começar a imaginar que talvez aquele fosse o fim da zona segura.

— Eles não vão conseguir Rick... Não sozinhos! – Exclamou Michonne, tirando o xerife do breve transe.

— Spencer, Heath e Glenn estão do lado de fora, tentando resgatar Andrea que está presa na torre do campanário desde que essa merda começou! – Rick está ofegante, tenta recostar Tom mais próximo de si. O sangue do ferimento escorre por sua roupa – Temos poucos homens... Precisamos ficar nas casas por enquanto!

— Vamos nos esconder? – Surpreendeu-se a samurai.

Os olhos do xerife encontram-se com os de Michonne, ele agora parece decidido.

— Não, não vamos!

Grimes parecia ter acabado de mensurar algo em sua mente, acabara demonstrando isso apenas em uma troca de olhares com sua companheira de sobrevivência. Os dois já estavam juntos há muito tempo e já conseguiam notar os pequenos sinais inerentes uns aos outros. Michonne sabia que Rick estava tramando algo, sabia que sua mente estava trabalhando o mais rápido possível para encontrar uma solução, mas principalmente sabia que podia confiar nele. Com toda a certeza ela entregaria sua vida a Rick Grimes de olhos vendados, assim como já fizera anteriormente.

— Leva ele até os doutores! – Brada o xerife, entregando Tom inteiramente nos braços de Michonne – Eu preciso reunir as pessoas... O pânico só vai atiçar ainda mais os zumbis! – Complementou.

Sem discutir, a mulher o que seguira durante boa parte da jornada acata sua ordem e passa a arrastar Price até a casa de Cloyd, que já se encontra há poucos metros. Enquanto isso, Rick corre em disparada com sua arma em punho na direção contrária.

O sangue que escorre pelo coto de Tom Price faz um rastro pelo solo. O homem, que encontra-se entre o torpor do estado de consciência e o sono profundo que começa a tomar conta de si cada vez mais, segue lutando por sua vida da forma mais brava possível. A ponta de seus pés já se arrastam pelo chão, suas pernas bambas, tornam-se mais fracas a cada metro percorrido, sua mão ainda tenta gerar forças para agarrar-se na gola do casaco de Michonne, mas aos poucos vão soltando-se, escorregando pelas costas da mulher.

— Alguém abre essa porta! – Grita a samurai, praticamente esgoelando-se enquanto Tom desaba em uníssono de seus braços, caindo ao solo de bruços.

Alguns errantes mais próximos acabaram tendo sua atenção desviada assim que o clamor da mulher reverberou pelas ruas. Caminhando lentamente e em blocos, os pútridos pseudo seres humanos passaram a arrastar suas inúteis existências em direção à casa da doutora Cloyd, tentando a todo custo transformar Michonne e Tom em sua próxima refeição. Com a katana em punho, a mulher não hesitou em atacar antes que se tornasse a presa, desferindo um golpe na horizontal e arrancando a cabeça do primeiro que se aproximara. Aproveitando o movimento e prostrando-se a frente do inconsciente Price, Michonne cortara os braços do segundo que tentara alcançá-la, enfiando sua espada em seguida na face de um terceiro. Sem pestanejar e agindo rapidamente, a mulher deslocara sua espada em direção a mais um, cortando-o ao meio, separando o seu torso dos membros inferiores.

— Alguém abre essa maldita porta! – Insiste ela mais uma vez, enquanto tenta afastar os demais patifes que seguem se aglomerando cada vez mais próximos a casa.

O som da porta sendo destrancada soa como música aos ouvidos de Michonne. A maçaneta é girada e a entrada da casa finalmente demonstra-se livre para que ela e Tom possam se salvar do iminente perigo em que as ruas se transformaram. Com estupefação no olhar, Cloyd arrumou os óculos incrédula ao ver o quão grave estavam as coisas e principalmente ao aferir o estado de Price, sem um dos braços, jogado ao chão como se nada significasse.

— Deus... – Espantou-se Denise – Hall, Rosita, precisamos de ajuda! – Complementou exclamando aos dois que também se encontravam na residência.

Vincent fora o primeiro a sair em dispara de dentro da casa, ao atestar do que se tratava, prontamente agachou-se na direção de Tom, sem nem pensar, sem nem se dar ao direito de lamentar o que havia ocorrido. Chegara a hora de o cirurgião geral Hall falar mais alto que o Vincent pacato e amigo de Tom Price. Ele sabia que não podia perder tempo, ao ver a tonalidade da pele e o estado do tecido na região amputada, assim como a grande quantidade de sangue no solo, teve a certeza que o estado de saúde do amigo era muito delicado e que cada segundo seria vital para sua sobrevivência.

Com a ajuda de Rosita, Vincent conseguiu arrastar Tom para dentro da residência, antes que um dos errantes se aproximasse, ainda contara com a cobertura de Michonne que prosseguiu alguns segundos mais arrancando cabeças do lado de fora, antes de também recolher-se em segurança.

— Temos que levá-lo até o quarto! – Exclamou Cloyd, segurando o corpulento homem pelas pernas, em uma tentativa de agilizar o seu transporte.

— Ele perdeu muito sangue... – Manifestou-se Vincent, erguendo levemente o coto do homem, com o objetivo de impedir que o sangue prosseguisse jorrando livremente – Precisamos controlar a hemorragia...

— Vou até a dispensa! – Rosita parecia enérgica, queria controlar suas emoções para tornar-se útil naquele momento – Trago de lá ataduras e o que mais?

— Traga o acendedor... – Disse Vincent quase em um sussurro, mantendo a expressão séria.

— O quê?! – Espantou-se Cloyd – Você está louco? Tá sugerindo que...

— Precisamos cauterizar o coto de uma única vez – Interpôs-se Hall novamente – Ele perdeu muito sangue... Se o sedarmos, é provável que ele aguente! Vai ser muito mais fácil cuidarmos de uma queimadura de terceiro grau do que lidar com as reações do corpo dele após perder tanto sangue arterial... Precisamos cortar esse fluxo imediatamente!

As duas mulheres o observam assombradas, Cloyd é quem toma a palavra agora:

— Se queimarmos o ferimento, é muito provável que a única coisa que consigamos com isso é causar nele uma infecção, que rapidamente pode se espalhar... E você sabe muito bem o que iria acontecer...

Vincent aproxima o olhar da doutora que o questionava.

— Sabe como eu perdi minha perna Denise? – A mulher surpreende-se com a indagação – Eu fui mordido por um patife quando estávamos a pé, atravessando uma barreira de carros na estrada... Fomo cercados e tivemos que fugir da forma que estávamos já que havíamos ficado sem gasolina para prosseguir em nosso automóvel... Aquela coisa podre ia pegar a Leah, ele já havia conseguido segurá-la pelo moletom, e a puxava com uma força descomunal, aproximando aquele hálito maldito... Você já olhou algum deles de perto? Já sentiu o bafo deles? – Ele faz uma breve pausa – O morto vivo não ia soltá-la, de forma alguma ele iria deixar que o jantar escapasse... Então eu precisei pensar... Eu dei a minha perna, praticamente coloquei ela na boca dele, apenas para que ele soltasse a menina! Ele cravou as unhas em mim, mastigou com vontade deixando a minha tíbia e fíbula inteiramente a mostra... Os meus tendões, se romperam como uma linha de costura... O Tom conseguiu matar a criatura e me arrastar de lá a salvo! E sabe o que eu fiz no curto período em que fiquei consciente? – Cloyd segue em silêncio – Ensinei a eles exatamente onde deveriam amputar a minha perna, e como poderiam cuidar da hemorragia e uma possível infecção... Portanto doutora, não conteste minha forma de pensar e principalmente minhas habilidades médicas – Ele começa a alterar o tom de voz – Pois eu estou aqui! – Hall agora aponta para a perna de pau – Leah está aqui! – Seu grito potente ecoa por todos os cômodos da casa – E eu não vou hesitar em tomar a decisão certa para salvar a vida do Tom!

Denise Cloyd e Rosita Espinoza nada disseram ante ao firme discurso do doutor Hall, na verdade, talvez não houvesse argumentos existentes para refutar os fatos expostos de maneira tão sólida. A médica, apesar de mais velha e talvez mais experiente, acabara curvando-se perante a indiscutível vivência de Hall nas estradas, onde permanecera durante quase toda a sua jornada de sobrevivência. O melhor era ouvi-lo, seguir sua sugestão apesar de parecer loucura, acompanhar o homem que tanto sacrificara para manter-se vivo, e se ele coseguira cumprir com tal objetivo até agora, era possível que também conseguisse salvar a vida de Tom Price.

Afastada do grupo que levara Price às pressas para um dos quartos, Michonne encontrava-se recostada a uma das janelas, suas feições entregavam a preocupação que rondava sua mente naquele instante. Do lado de fora, dezenas de errantes aglomeravam-se a frente da casa, atraídos pela confusão de outrora, e pelo que podia observar no horizonte, mais e mais criaturas deslocavam-se naquela mesma direção. Em suas mãos, a katana com a lâmina manchada de sangue escurecido, encontrava-se firmemente segura, Michonne sabia que em pouco tempo o lugar estaria cercado, e muito provavelmente, logo seria invadido.

*****

A porta da residência dos Grimes fora fechada com violência assim que o patriarca a adentrara. Com a testa molhada de suor e a machadinha ensanguentada na mão esquerda, Rick apoiou-se em uma das paredes, na tentativa de recuperar o fôlego. Olhando fixamente para ele, Maggie Greene, com os grandes olhos negros voltados para o homem, ainda tentava compreender tudo o que estava se passando do lado de fora. A seu lado, Carl Grimes, com sua .32 cano longo nas mãos e o típico chapéu de cowboy, observava o pai atentamente, como se esperasse dele alguma declaração que explanasse o porque de Alexandria ter virado um inferno.

— Uma das placas cedeu... – Rick apontava o olhar para o solo, e soltava cada frase no intervalo entre uma e outra inspiração – Eles começaram a entrar, muitos deles... Tobin foi morto, Morgan também e Tom foi mordido... Não acho que vá sobreviver...

— Tom foi mordido?!

Grimes ergue o olhar no instante em que escutara a indagação, por ter adentrado rápido, não havia percebido que além de Maggie, Carl e Sophia, Amanda, Leah, Susie e Jacob também se encontravam na mesma residência. E fora justamente Amanda que se interpusera naquele momento.

— Como assim? Onde ele está? – A mulher parecia extremamente preocupada, sua voz encontrava-se levemente embargada.

Rick colocou o corpo de forma ereta e gesticulando com o coto, tentou tranquilizar a mulher, apesar de saber que seria muito difícil dada as circunstâncias.

— Ele foi mordido no braço, mas amputamos no mesmo instante... Michonne o levou até Cloyd e Hall... Ele está nas mãos deles agora!

Amanda levou a palma da mão direita até a boca, de seus olhos, lágrimas silenciosas escorriam enquanto ela imaginava o que poderia estar se passando com Tom, e em toda a dor e sofrimento que ele provavelmente estaria sentindo ante o tão brutal ferimento. Leah também sentiu um aperto no peito ao saber da notícia, afinal, Price sempre fora o mais forte do seu grupo, o pilar mais consistente daquele bando de sobreviventes, se ele tombasse agora, levaria consigo algo muito especial que construíra após tanto tempo de cooperação mútua. Susie apenas virou o rosto, sem nada dizer, segurando o filho fortemente em seus braços. Ela não queria pensar no pior, não queria passar nenhuma energia negativa a sua prole, em sua cabeça, era como se ela precisasse fingir que tudo estava bem, para que o bebê seguisse tranquilamente sem ser afetado pela podridão do mundo atual.

— Pai, mas como tudo...

Carl também estava visivelmente assustado, o garoto, que tanto já precisara fazer para permanecer vivo, demonstrava uma força inerente ao sangue dos Grimes, porém, em seus olhos era possível perceber a preocupação que ele parecia tentar esconder. Preocupava-se com o seu pai, com Tom e com toda a comunidade, Carl Grimes já era um adulto no corpo de um menino.

— Abraham e os outros homens estavam defendendo a parte leste dos muros, justamente onde a placa cedeu... – Rick dá dois passos para frente, recolhendo sua machadinha no cinto e esticando sua mão esquerda em encontro ao topo da cabeça de seu filho – Não sei se eles resistiram, imagino que outras partes do muro provavelmente também vieram a baixo... Os errantes já se espalharam por toda a comunidade...

— Então não há nada que possamos fazer? – Maggie parecia desolada – Alexandria está perdida? – A jovem mulher faz uma nova pausa, passa a mão levemente sobre a testa e mensura o que começa a martelar em sua mente – Deus, o Glenn...

— Ele está melhor do que todos nós agora – Grimes olha diretamente para Greene – Com toda essa confusão nos muros, é provável que a horda que se aglomerava nos portões tenha se deslocado para os rombos nas placas de metal... Acredito que ele, Heath, Spencer e Andrea estejam bem, e provavelmente devem estar cientes de tudo o que está ocorrendo aqui dentro... – Ele se aproxima de Maggie, parece tentar a todo custo manter todos ali calmos – Nós não perdemos Alexandria! – Seu olhar parece decisivo – Ela é nossa e não vamos entregar de bandeja para os mortos! Já limpamos uma prisão inteira, blocos e mais blocos de celas totalmente tomados por essas coisas... E nós sobrevivemos! Fomos nós que continuamos respirando... Podemos fazer isso mais uma vez!

— Pai... – Carl o interrompe brevemente – Tínhamos mais pessoas com a gente, pessoas que sabiam lutar... Você viu como as ruas estão... O que acha que devemos fazer?

— Precisamos sair daqui o quanto antes... – Volta a explanar Rick – O caminho até os portões devem estar liberados e acredito que a manada deva ter se espalhado com a invasão, talvez consigamos sair...

— Você está sugerindo que a gente abandone todos os outros? – Maggie parecia estar em estado de estupefação – Rick, você está sugerindo uma fuga?

— A cerca caiu Maggie! – Rick enfatiza o seu ponto com movimentos com a mão – Não podemos chegar até os outros, e mesmo se pudéssemos, o que faríamos? Levar mais gente conosco pro meio dessas coisas? – Todos observam Rick boquiabertos – Eles só iriam nos atrasar... Um grupo pequeno é muito melhor, assim que sairmos poderemos planejar como ajudar os que ficaram!

— Senhor Grimes... – Amanda toma a palavra – Não podemos deixar os outros moradores pra trás... Tem famílias aqui, com filhos...

Rick arqueia levemente as sobrancelhas, sua expressão agora é séria, decidida, ele parece tomado por um sentimento árduo, que o consome por dentro, ao mesmo tempo em que julga tudo o que está fazendo como um mal necessário.

— Eu sei disso Amanda – Interpõe-se – Mas a única coisa que eu tenho em mente a respeito dos filhos das outras pessoas... – Ele a olha fixamente – É que eles não são os meus filhos!

Todos sem exceção o encaram com enorme espanto, suas palavras pareceram um grande choque de realidade, algo que provavelmente já havia passado pela cabeça da maioria ali, mas que parecia inescrupuloso demais para ser colocado para fora.

— Não quero parecer insensível... – Rick prossegue, seus olhos passam a apontar levemente para o chão – Mas se eu tiver que escolher entre o filho de outra pessoa e o meu... Sempre vou escolher o meu! – O xerife respira fundo antes de complementar – Sinto muito, só estou sendo honesto...

Maggie abaixa a cabeça brevemente enquanto dirige-se até Sophia, dando-lhe um forte abraço. Leah segura no antebraço de Amanda, que segue ainda pasma fixando o olhar no mandatário da comunidade. Carl fecha os olhos brevemente, tentando filtrar tudo o que o pai acabara de pronunciar, no fundo, o pequeno Grimes sabe que ele está certo, e sabe que isso é o melhor a se fazer no momento, não importando o quão cruel pareça.

— Quando estivermos lá fora... – Susie quebra o silêncio – Vamos achar um jeito de ajudar os outros?

Rick permanece impávido, sem encará-la ele responde:

— É claro que sim! Não vou abandonar ninguém! – Ele respira fundo e ergue-se novamente, encarando a todos – Vamos juntar o máximo de suprimentos que pudermos e dar o fora daqui antes que seja tarde! Maggie... – A moça volta à atenção para o xerife – Há algum zumbi próximo a varanda?

Greene dirige o olhar rapidamente para o lado de fora, observando a partir de uma das janelas de vidro na cozinha.

— Sim, por quê?

Rick saca sua machadinha de forma decidida.

— Porque eu sei exatamente o que fazer para sairmos daqui!

*****

— Como ele está?

Michonne seguia próxima a janela, sem nem ao menos olhar para trás, percebera que alguém se aproximara da sala de estar. A katana permanecia firmemente segura entre seus dedos, enquanto os olhos não desgrudavam dos movimentos dos errantes que insistiam em se acumular ao redor da casa, cada vez mais próximos a porta de entrada.

— Está dopado... Vincent conseguiu controlar o ferimento com a cauterização... Talvez ele precise de uma transfusão, mas... – Um longo suspiro é dado – Bom o que podíamos fazer já está feito! Agora é só aguardar...

Denise está de pé próxima ao corredor, há uns cinco passos de distância de Michonne. Com o jaleco aberto e luvas de procedimento não mãos, ambos manchados de sangue, a doutora Cloyd parece abatida, como se estivesse próxima a um esgotamento. A pressão dos últimos dias só vem fazendo mal a médica que ainda encontra-se extremamente preocupada com Heath, seu namorado que saíra junto a Glenn e Spencer na tentativa de salvar a vida de Andrea na torre do campanário.

— Hall parece ser teimoso... – Michonne não tira os olhos da janela.

— Ele é um ótimo médico... – Cloyd arruma os óculos com o indicador – Todo o tempo que passou lá fora criou nele um senso de decisão muito mais apurado que o meu! Ele parece não ter medo de arriscar... Hoje em dia ter medo só te leva a um caminho, um caminho sem volta...

— Não Denise... – Michonne a interrompe – Ter medo é o que nos faz tomar as decisões certas... Se não tivéssemos medo dessas coisas, se não tivéssemos medo de morrer... Nenhum de nós estaria aqui agora! Só o que precisamos fazer é converter o medo em ações, atitudes... Sem parar pra pensar nas consequências... É assim que permanecemos vivos!

— Porque está dizendo isso?

A samurai vira-se encarando Denise.

— Porque precisamos sair daqui o mais rápido possível! – Cloyd arregala os olhos, Michonne prossegue – Essa casa está condenada, aquelas coisas lá fora ouviram todo o barulho que fizemos ao trazer Tom pra cá, fora o rastro de sangue! Eles sabem que estamos aqui e em pouco tempo haverá o suficiente para colocar esse lugar a baixo! – Uma breve pausa é feita – Temos que chegar aos portões, ou pelo menos tentar nos abrigarmos em outro lugar... Aqui não dá mais Denise, você precisa vir comigo!

— Eu... Eu vou avisar os outros então...

Cloyd não parou para pensar, depois de ter debatido verbalmente com Hall sobre qual seria o melhor tratamento para Price e ter atestado estar errada, não se daria ao direito de contestar alguma decisão tomada por aqueles que viveram nas estradas. Só agora ela pode perceber com clareza que estava cega quanto a visão utópica que tinha sobre o novo mundo. Talvez essa fosse a diferença entre viver e morrer, ela não poderia mais se dar ao luxo da dúvida.

Após deslocar-se rapidamente até o quarto onde Tom recebia os últimos cuidados do doutor Hall e de Rosita, a médica adentrou a porta com ferocidade e levemente dispneica, tratou de expressar-se:

— Michonne ficou o tempo todo de olho nas janelas... – Ela novamente arruma os óculos, a médica tem a total atenção de Vincent e Espinoza – Os patifes nos cercaram... Estão se amontoando ao redor da casa... – Ela parece tentar encontrar as palavras certas – Nós seremos invadidos, precisamos sair daqui imediatamente!

O quarto é pequeno, usado antes do mundo acabar por um casal de crianças, filhos de um senador que exibia com orgulho diversas fotos de família espalhadas pelas paredes, retiradas assim que Denise escolhera aquele imóvel como sede para o seu consultório. A cama de solteiro localizada no centro do cômodo é agora totalmente ocupada pelo massivo corpo de Tom Price, que inconsciente, não faz a menor ideia do que esteja ocorrendo naquele momento. Com o coto levemente erguido do nível do colchão por dois travesseiros, e totalmente enfaixado pelas ataduras trazidas por Rosita, o ex-soldador parece estar estável, a perda de sangue já fora controlada e agora Hall apenas tentava manter sua pressão arterial e temperatura em níveis normais, visando à detecção de uma possível infecção.

— Você está dizendo para deixarmos tudo para trás e fugir? – Questionou Vincent.

— Seremos massacrados se ficarmos aqui... Eu vi com meus próprios olhos Vincent! Estamos cercados...

Hall retirou o estetoscópio dos ouvidos, colocando-o calmamente sobre a cama, ao lado de Tom. Com a expressão serena, o cirurgião refutou:

— Não vou deixar Tom para trás... Ele faria o mesmo por mim, me desculpe Denise, mas não vou abandonar um paciente!

— Você mesmo me disse Vincent, os tempos são outros... – Tentou argumentar Cloyd – Essas regras não valem mais hoje em dia!

— Deixe-me reformular então doutora Cloyd... – Hall mantinha-se extremamente calmo – Eu não vou abandonar um amigo! Se Tom não continuar recebendo cuidados contínuos, vai acabar morrendo, com ou sem invasão dos patifes... Portanto podem ir, eu ficarei aqui onde estou!

— Eu também ficarei! – Exclamou Rosita.

Vincent arregalou os olhos ao ouvir tal pronunciamento, não esperava que a mulher tomasse aquela decisão.

— O que você tá fazendo? – O cirurgião voltou o olhar para a jovem, aguardando uma explicação – Rosita...

— Já está decidido! – Espinoza nem sequer aguardara a conclusão de Hall – Também ficarei aqui Denise...

Rosita parecia muito segura sobre a sua decisão, apesar de não saber ao certo o motivo de ter tomado-a, estava por demais preocupada com Abraham, que naquele momento lutava junto à comitiva dos trabalhadores dos muros contra as criaturas que se alocavam do lado de dentro da zona segura. Tudo parecia estar por um fio, sua vida, a de Tom, Vincent e Abraham, a própria comunidade. De uma maneira maluca e sem muita explicação, estar dentro de uma casa cercada por errantes parecia ser a melhor saída para todos aqueles problemas. Rosita queria acreditar que estava segura, e torcia muito para que no turbilhão de sua mente, o motivo não fosse Vincent. Ela não queria se envolver, e muito menos pensar nisso em meio a tanta merda jorrando sobre a cabeça de todos. Agira mais uma vez inconscientemente, mais uma vez por impulso.

— Lavo minhas mãos... A decisão é de vocês!

Denise correu pelo corredor de volta a sala de estar onde Michonne a aguardava com uma mochila nas costas, pronta para deixar aquela casa de uma vez por todas. Ao ver a médica retornar sozinha, compreendeu o que havia ocorrido, mas manifestou-se a respeito uma última vez.

— Eles não vêm? – Cloyd apenas balançou a cabeça negativamente. Michonne então prostrou-se séria novamente, e posicionando sua espada em modo de ataque, prosseguiu determinada – Então vamos dar o fora daqui!

*****

A machadinha desferida de cima para baixo com violência, não encontrava dificuldades em desmembrar o cadáver pútrido jogado sobre o tapete da sala da casa dos Grimes. Rick utilizava toda a força contida em seu braço esquerdo para dilacerar a criatura, desfigurando-a cada vez em pedaços menores. O sangue, gosma e vísceras, além do odor fétido se espalhavam por toda a residência, causando ânsia em quase todos ali. Sophia agarrava-se ao casaco da mãe, praticamente enterrando o rosto no torso de Maggie. Susie retirara-se dali, passando a cantarolar para o pequeno Jacob na cozinha, ninando o bebê como se nada de anormal estivesse ocorrendo. Amanda sentara-se no braço do sofá, assistindo aquela cena dantesca ainda sem acreditar cem por cento no que estava vendo, tudo era demasiado bizarro para que ela pudesse aceitar.

Apenas Carl parecia não estar assustado com a atitude com pai, o garoto confiava no xerife Grimes, e já vira a funcionalidade de seus atos em outras diversas situações. O menino crescera muito emocionalmente desde que toda a jornada pela sobrevivência se iniciara, e provavelmente já fizera tantos sacrifícios quanto qualquer um ali. Matou o melhor amigo de seu pai quando o mesmo ameaçara sua vida, vira sua mãe ser morta com sua irmã nos braços, quando ambas levaram um tiro de uma .12, precisou sacrificar uma criança quando ela se mostrara um perigo a todos do seu grupo. O jovem Grimes já amadurecera o bastante para encarar de frente o cruel mundo que se moldara, e apesar de carregar por toda a eternidade o peso de seus atos, sabe que deve passar por cima de tudo isso para ficar em segurança, e principalmente para manter quem ama em segurança.

— Sei que isso parece horrível... – Rick finalmente parece ter terminado o “serviço” – Mas é isso que vai manter aquelas coisas afastadas... – Ele está ofegante e a testa tomada por sangue e suor – Eles vão pensar que somos iguais a eles, não se preocupem, já funcionou antes! Peguem alguns lençóis, vamos fazer de poncho e nos cobrir com o sangue desse zumbi...

— Rick, eu não vou... – Manifestou-se Maggie – Sei que isso já deu certo antes, o Glenn me contou, mas... Eu não sou rápida, nunca fui e a Sophia também não! Não vamos conseguir passar a pé por esses mortos, eu sei que não vou conseguir... Eles vão acabar me pegando, pegando a Sophia... Não posso arriscar a vida dela assim! Desculpe, não vou correr esse risco, não posso correr esse risco...

Rick ouviu atentamente o argumento de Greene, que não pareceu de todo incorreto a seus ouvidos, de certo modo, ele compreendia o que se passava na cabeça dela. O xerife jamais arriscaria a vida de seu filho se julgasse que aquilo poderia dar errado, e como ele sabia que era justamente o que Maggie achava que aconteceria, relevou ante a um bem maior, manter Carl em segurança.

— Tudo bem... Você tem a cabeça feita, não tenho tempo de tentar convencê-la do contrário... Espero que esteja tomando a decisão correta.

— Eu também vou ficar! – Exclamou Susie, igualmente segura de suas palavras – Não vou levar o meu bebê para o meio dessas coisas!

Rick passou a mãos no rosto e guardou a machadinha novamente no cinto antes de voltar a se pronunciar.

— Ok, não vou obrigar ninguém a vir comigo, quem quiser pode ficar! – O homem faz uma breve pausa – Agora lembrem-se, quem me acompanhar, ponha o máximo disso sobre os ombros – Rick agora aponta para os restos mortais sobre o tapete – Passem também sobre o peito e costas, cubram o máximo que puderem! Vamos nos aprontar, é agora ou nunca!

Rick, Carl, Leah e Amanda vestem-se com os lençóis retalhados, cobrindo boa parte dos braços e o tronco quase que por completo. Com uma luva de borracha na mão esquerda, Rick toma a iniciativa e começa a juntar o sangue contido na abertura que ele mesmo fizera no peito do morto vivo, passando o líquido viscoso e enegrecido sobre o seu poncho improvisado. Um a um vão repetindo o mesmo ritual, acrescentando vísceras ao redor dos pescoços e lascas de pele e órgãos sobre os ombros.

— Tchau Carl! – Exclama Sophia, sem sair do lado de sua mãe. Como resposta, o garoto apenas abaixa levemente a aba de seu chapéu em sinal de cumprimento.

— Fiquem juntos e se movam lentamente... – Explanou o xerife se adiantando e abrindo a porta vagarosamente, tentando não chamar a atenção – Apenas fiquem calmos que vamos ficar bem!

Lentamente todos começaram a caminhar em direção a saída. Do lado de fora, próximo à varanda, cerca de vinte errantes cambaleantes deslocavam-se de um lado para o outro, como insetos ao redor de uma lâmpada. Os mortos, que pareciam erguer os narizes para o ar, tentando captar alguma essência agradável, aparentemente não haviam percebido a presença do pequeno grupo de Rick, que tentava sair ileso daquela arapuca.

Um pouco mais afastado, na plana rua que cruzava horizontalmente a residência dos Grimes, outro grupo com cerca de quinze patifes aproximava-se da residência, provavelmente atraídos pelo barulho que inevitavelmente fora feito por todos outrora. Com o olhar voltado para oeste, Rick percebeu que sua teoria poderia realmente estar correta, pois ao observar de longe os portões de Alexandria, percebeu que a aglomeração de mortos vivos naquela região diminuíra bastante, possivelmente por conta do espalhamento das criaturas no interior da zona segura.

— Eles estão diminuindo na frente do portão... – Sussurrou Rick – Se conseguirmos abri-lo sem chamar muito a atenção, talvez dê pra sair sem maiores problemas... – Ele agora olha para o filho que caminha a seu lado – Carl, não saia de perto de mim...

Todos seguiam a passos lentos, caminhando no ritmo dos errantes que os acompanhavam lado a lado. Os ponchos sujos de sangue e tripas parecia realmente disfarçar o cheiro de carne fresca que as pessoas ali deveriam estar exalando. Rick guiava o “batalhão”, com Carl a seu lado e Leah e Amanda há alguns poucos passos de distância. Amanda parecia extremamente incomodada com a situação, bem mais do que qualquer um. Olhar para aqueles rostos tão de perto, sentir o bafo quente e podre saindo de suas bocas, como um suspiro de uma vida bizarra, era uma grande tortura para ela. Os olhos leitosos a encarando, as feições profundas e decompostas, os corpos sem rosto. Uma grande angústia começou a tomar conta de seu âmago e lágrimas passaram a escorrer por seus lacrimais.

Um dos errantes aproximou-se de Amanda, direcionando suas narinas ao rosto da mulher, como se soubesse que aquelas pessoas estavam tentando enganá-los. Ela então levou a mão direita até o coldre e lentamente começou a puxar o seu revolver. Ao perceber tal movimento, Rick virou-se na direção da mulher, movendo os lábios em um “não faça isso” sem exprimir nenhum som. Porém, o xerife não obtivera resposta positiva, o errante persistiu em aproximar-se de Amanda, que não hesitou em sacar a sua arma de uma única vez, em um rápido movimento.

Contudo, por mais que os mortos sejam criaturas lentas e até certo ponto burras, eles têm algo em comum com todos os predadores, faro apurado e bote veloz. Assim que Amanda sacara sua arma, o morto vivo dirigira sua mandíbula no pescoço da mulher, abocanhando-a enquanto cravava suas unhas nos braços dela. O sangue jorrou em um jato reto, espirrando sangue nos cabelos e rosto de Leah que encontrava-se bem a sua frente. A menina, assustadíssima, passou a gritar de forma aguda, atiçando os demais patifes que localizavam-se ao redor.

— Leah, não! – Exclamou Rick tentando acalmá-la. A garota seguia imóvel, observando Amanda ser morta, parecia estar em estado de choque.

Amanda gemia de dor enquanto o errante rasgava a lateral do seu rosto, cravando a ponta dos dedos em um dos olhos e arrancando-o da órbita. Ainda com a arma em punho, e agora de joelhos, a mulher que começava a ser devorada passou a mexer as mãos de forma involuntária, em espasmos incontroláveis. Tais movimentos passaram a mover o gatilho, disparando o seu revolver a esmo.

Vendo que Leah prosseguia imóvel e parecia não ter mais forças para sair dali, Carl resolveu puxá-la pelo braço, antes que a menina também fosse devorada pelos mortos que se esbaldavam com a carne de Amanda. Porém, antes que conseguisse segurar firmemente na gola do casaco da menina, para retirá-la dali em definitivo, o pequeno Grimes acaba recebendo um golpe totalmente inesperado do destino. Um dos disparos de Amanda, que descarregava sua arma sem ter alvo algum, acertara a lateral do rosto do garoto, atravessando o seu olho direito e levando consigo uma camada epitelial inteira, além de parte do seu zigomático, massa encefálica e muito sangue, que espirrara no asfalto como se não significasse nada. Com os lábios trêmulos, o garoto só teve tempo de sussurrar uma coisa antes de desabar ao solo:

— Pai...

— CARL!

Rick Grimes correu desesperadamente na direção do filho, que tombara de lado no frio asfalto da rua principal de Alexandria. As lágrimas escorriam por sua face sem pudor algum, inundando o rosto do xerife que estava inteiramente desolado. Colocando o garoto desacordado nos braços, o patriarca Grimes mal conseguia falar em meio ao nó que tomava conta de sua garganta.

— Deus... Deus do céu! – Ele olhava fixamente para o rosto desfigurado do filho – Só continua respirando... Por favor, continua respirando...

— Rick!

Um grito é ouvido aproximando-se do local da desolação. Michonne achega-se desferindo violentos golpes e decepando cabeças de errantes, abrindo caminho na direção de Grimes.

— Droga... – Lamenta ela ao ver o estado de Carl – Leva ele para o Hall, ele ainda está lá na casa da Denise!

Rick levanta o olhar enquanto ergue o corpo, segurando firmemente o filho nos braços.

— E onde ela está?

— Morta... – Michonne não parece lamentar, talvez esteja reservando o luto para depois, já que no momento os vivos são prioridade para a sua preocupação – A casa estava sendo cercada, saímos de lá, mas ela foi pega... Ouvi os disparos e corri pra cá... Vincent e Rosita ficaram cuidando do Tom...

Rick Grimes nem sequer aguardou que Michonne concluísse o pensamento, sem pensar duas vezes, deslocou-se velozmente na direção da casa de Cloyd. No caminho, afugentou alguns errantes, afastando-os com ombradas e chutes, apenas para conseguir abrir espaço para a conclusão do seu objetivo. Em frente à casa que servia como consultório e ambulatório, Rick pôde observar uma grande movimentação de patifes, como urubus em volta de carniça. Tratava-se do cadáver de Denise, sendo dilacerado por quase uma dúzia de errantes, que mais pareciam brigar entre si, competindo para saber quem iria ficar com as melhores partes. Há dois metros dali, os óculos de Cloyd encontravam-se jogados ao chão, manchados de sangue e com uma das lentes trincadas.

Apesar de ser algo horrendo, a morte de Cloyd de certo modo acabou ajudando Rick, pois a distração dos carniceiros com o seu corpo, deixou o caminho livre para que o xerife conseguisse chegar sem dificuldades até a porta da casa. Com pisões desferidos contra a parede e gritos de socorro, Rick Grimes tentava de todo modo chamar a atenção de quem estivesse lá dentro. As lágrimas salgadas em sua face já gotejavam da ponta de seu queixo, seus olhos estavam extremamente avermelhados. O alvoroço de Grimes deu certo, passos mancos e velozes puderam ser ouvidos do lado de dentro, seguidos do barulho da porta sendo destrancada e aberta logo depois.

Caralho... – Exclamou Vincent assim que abrira a porta e vira do que se tratava.

Com o filho desmaiado e com o rosto ferido e ensanguentado, Rick olhou profundamente para Vincent, com a voz embargada e falha, apenas conseguiu balbuciar:

— Por favor... Salva a vida dele...

*****

HORAS DEPOIS...

— Não vou dizer que tudo vai ficar bem... Não sou desse feitio! Mas espero que ao menos pare de chover merda sobre nós...

Deitado sobre o leito, com uma coberta até o torso, Carl dorme profundamente após ser submentido a um complexo procedimento cirúrgico. Seu rosto, parcialmente recoberto por um curativo que envolve quase toda a sua cabeça, deixando apenas o olho esquerdo livre, trás as marcas inerentes ao caos que se tornara Alexandria após a recente invasão sofrida. Sua respiração lenta parece indicar que o coma forçado servira para conseguir mantê-lo vivo, porém, Hall sabe o quão complicado será para que o garoto consiga escapar após o brutal e gravíssimo trauma.

A porta do quarto é aberta com cuidado, por uma pequena fresta, Rosita observa Hall que acabara de se sentar a cadeira, olhando Carl sobre a cama. É perceptível que o cirurgião está estafado, principalmente agora que Cloyd se fora e ele precisará cuidar sozinho de dois complexos casos. Seus olhos parecem pesados, as pupilas no máximo da dilatação tentam manter-se firmes enquanto as bolsas de líquido que se acumulam abaixo dos olhos, mostram-se como o maior sinal de cansaço do doutor.

— Como ele está? – Pergunta Espinoza, um tanto receosa.

— Ele perdeu muito sangue... – Vincent não move um músculo, segue apenas fitando o garoto – Perdeu massa encefálica também... Retirei os estilhaços, mas... Ainda não sei dizer se ele vai ter algum dano cerebral severo... – Sua voz parece tranquila, apesar de tudo o ocorrera – Ele perdeu o olho direito, talvez perca a fala também... É provável que ele nem sobreviva...

— Onde está o Rick?

— Voltou lá pra fora... – Respondeu Hall secamente – Disse que precisava acabar com os mortos que invadiram a comunidade... Ouvi algo sobre Andrea ter voltado, talvez todos estejam lutando agora...

— Tom parece bem, a temperatura está estável e a pressão em cento e trinta por setenta... – Manifestou-se novamente Rosita, tentando quebrar o assunto de certa forma – Vai ficar tudo bem Vincent! – Completou ela aproximando-se e colocando sua mão direita sobre o ombro do médico.

Ainda sem olhar para a mulher, Hall recebeu o afago mantendo a mesma expressão, com olhar sempre fixo no filho de Rick Grimes.

— Não Rosita... Nada vai ficar bem...


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Notas finais do capítulo

Dedico esse capítulo a Menta e Amélia, que são duas lindas leitoras que me acompanham desde o começo desta pachorra aqui... Muito obrigado meninas!

Sei que o capítulo ficou grande, mas como as postagens são semanais, pensei em "presenteá-las" com esse episódio cheio de ação e enriquecimento interno da história... Espero que tenham gostado...

Beijos, até o próximo!



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