All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 21
A Tale of Two Cities


Notas iniciais do capítulo

Hei!

Antes de mais nada, queria dedicar esse capítulo a um pequeno ser muito especial para mim, que faleceu a poucos dias... Meu gato de estimação, que vivia comigo há mais de oito anos acabou perecendo a uma doença que o acometeu nos últimos tempos...

Bom, agora vamos aos agradecimentos!

Queria agradecer a Amante Adorável, que vem tecendo maravilhosos comentários ultimamente! Muito obrigada honey, estou amando nossos papos via reviews, e me sinto muito lisonjeado por conta de todos os seus elogios! Como diria o meu pai: Kiitos!

Obviamente quero agradecer também a Menta, que não desiste da fic e aparece em cada capítulo para exercer toda a sua fodarilhidade em belíssimos e analíticos comentários! Muito, muito obrigado cara amiga!

Ah... Os números de AOW aumentaram um pouquinho, estou muito contente pelo fato de mais leitores estarem chegando! Se você acompanha a fic, mas ainda não deixou sua opinião por aqui, fique a vontade! Sério, ficarei bastante feliz em saber o que vêm achando desse meu singelo trabalho!

Esse capítulo é totalmente focado no Hill Top. Acho que vocês irão gostar, há muitas revelações surgindo, e um inevitável caminho já começa a ser percorrido...

Boa leitura!



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— Cara, eu sou muito idiota! Ela me falou que estava dando várias indiretas, e eu não percebia nada... São coisas muito sutis, porra... Ser legal? Ficar olhando pra mim? Eu nunca ia perceber esse tipo de coisa!

Sentado sobre uma estrutura de madeira, há mais ou menos três metros do solo, um jovem rapaz de não mais do que vinte e seis anos, analisa algumas anotações sobre uma prancheta, enquanto conversa com seu parceiro, de pé, observando o horizonte.

Vestindo um casaco com capuz de cor azul, que o protege parcialmente da forte chuva, o rapaz com um ralo bigode e curtos cabelos enegrecidos, divaga enquanto tenta ler o que lhe fora solicitado, esforçando-se para não deixar com que a água destrua o bilhete.

Seu amigo, portanto uma lança rústica nas mãos, feita de forma artesanal e tendo como ponta um losango de ferro, também cobre a cabeça com um capuz, provavelmente tentando proteger a visão das gotas de chuva, que ainda insistem em cair com força sobre ele.

A plataforma onde se encontram localiza-se na parte superior de uma grande muralha, erguida sobre estacas de madeira e placas de metal, circundando um irregular terreno, que acompanha um desnivelado morro. De onde se encontram, é possível observar uma grande área a sua frente, desde a interestadual até os bosques mais distantes.

— Bom, o importante é que deu tudo certo... – Ainda sentado, o rapaz prossegue – Chamei ela pra jantar hoje a noite, acho que as coisas vão se acertar! Cara, você devia conhecer a Mandy, ela...

— Cala a boca Eduardo, olha só para isso!

O rapaz que segurava a lança possivelmente encaixava-se na mesma faixa etária de seu amigo. Segurando a ferramenta com ainda mais força, o sentinela chamara a atenção de seu parceiro, fazendo com o mesmo saltasse imediatamente em sua direção.

— O que foi Kal, é o Negan?

Eduardo arregalara os olhos imediatamente, dando a impressão de estar bastante assustado. Dando dois rápidos passos até a lateral, tomou nas mãos uma lança idêntica a de Kal, dirigindo-se até o posto de guarda, posicionando-se pronto para um ataque.

O outro sentinela sinalizou com as mãos, pedindo silêncio àquele que se aproximara. Os dois ergueram ainda mais os objetos, estavam prontos para lançá-los a qualquer instante.

— Tá tudo bem Kal, sou eu!

A imponente voz que se pronunciara viera do lado de fora dos grandes muros protegidos por Kal e Eduardo. Jesus, de braços abertos, trazia o grupo de Rick consigo, estando há mais ou menos quatro metros dos portões. Michonne empunhava sua tradicional katana, enquanto que Glenn, Carl e o próprio xerife traziam consigo suas pistolas em punho.

O guarda do Hill Top mantivera sua posição.

— Sabe que não posso fazer isso Jesus! Conhece muito bem as regras, eles não podem entrar enquanto estiverem armados!

Com os longos cabelos encharcados pela potente chuva, o barbudo olhava para cima, observando os dois rapazes que pareciam decididos a seguir a risca as regras cunhadas para a comunidade. Paul já havia passado por poucas e boas nos últimos dias, e com toda a certeza não estava nem um pouco disposto a discutir sobre aplicações de leis em meio a todo aquele dilúvio.

— Abre logo o portão Kal! Você sabe muito bem que sou eu quem decide quem entra nessa comunidade, eles estão sob minha responsabilidade! – Sua voz saía de forma assertiva – Agora abre essa merda de portão!

Os dois rapazes pareceram compreender a mensagem recebida. Jesus, voltando a imprimir o seu habitual sorriso, voltou-se para o grupo que apenas assistia a breve discussão.

— Eles acabam ficando um pouco estressados quando montam guarda lá em cima... – O barbudo justificava-se de forma simpática – A pior parte de ficar o dia inteiro com uma lança dessas nas mãos, é que você fica morrendo de vontade de usar!

Rick pareceu ignorar a pressuposta piada pronunciada por Paul, suas mãos seguiam fortemente empunhando sua velha pistola enquanto que suas feições firmes e decididas, dirigiam-se ao grandes portões do Hill Top.

Não havia como esconder a admiração, a comunidade de Jesus parecia ter avançado bastante se comparado o tempo em que o mundo virara de cabeça para baixo. A grande área que conseguiram proteger com aquelas enormes paredes, além do número de moradores, mais que o dobro de Alexandria, indicava o quanto àquelas pessoas estavam dispostas a recriar a sociedade que haviam perdido.

Assim como o xerife Grimes.

Rick inspirou profundamente ao perceber o lugar do qual estava diante. Olhou para as rústicas estruturas da comunidade e sentiu um alvorecer brotar em seu peito. Há muito não sentia-se renovado daquela maneira, esperançoso de certa forma. Desde a perda de Judith que o policial não conseguia pensar a longo prazo, imaginar um futuro naquele mundo cruel e deturpado.

A gravidez de Lorie em meio a tantas ameaças dentro da prisão onde se abrigaram, trouxera à época sensações que fizeram o xerife acreditar que uma nova vida poderia ser cunhada. Estava disposto a esquecer a traição sofrida, esquecer as dúvidas de que aquela criança era realmente sua cria, esquecer toda a montanha de merda que caíra sobre todo o mundo... Apenas recomeçar.

Ele tinha esse direito.

Mas não foi o que ocorrera...

O esquizofrênico Brian Blake resolvera tirar tudo o que Rick construiu a duras penas, levando inclusive parte de sua humanidade com ele. Não fora apenas Lorie e Judith que morreram após o disparo da .12 de Lilly Caul naquela fatídica tarde, parte de Grimes também partira junto a elas.

A queda do Governador também marcara a ascensão de um novo Rick Grimes. Um novo homem, mas não necessariamente um ser humano melhor.

Depois de tanto suportar, depois de quase enlouquecer, depois de ver o filho levar um tiro na cabeça e sobreviver graças a um miserável golpe do destino... Rick conseguira sentir que poderia renascer outra vez, talvez voltar a ser o homem que outrora fora. A esperança parecia retornar ao seu coração.

Talvez Alexandria também pudesse se desenvolver como a comunidade que agora conhecera, talvez finalmente tivesse chegado a hora de parar de fugir, de parar de agir como animais, como nômades que perecem em meio a uma imigração sem fim. Chegara a hora de parar de sobreviver... Chegara a hora de começar a viver.

Barulhos metálicos puderam ser ouvidos, ao passo em que o portão começara a lentamente ser aberto.

— Ok, não há mais carniceiros por aqui, acho que já podem guardar suas armas!

Jesus tentava manter sua postura diplomática a todo custo, sempre visando dobrar a desconfiança de Rick e seu grupo.

Michonne olhou para Grimes, como que aguardando por uma ordem. O policial olhou a sua volta, assim como também meneou o olhar em direção as guaritas na parte superior do muro. Após analisar todo o terreno, acenara de forma positiva com a cabeça, ainda mantendo a seriedade em suas feições.

Lentamente a samurai guardara sua katana, seguida por Carl e Glenn que recolocaram os revólveres nos devidos coldres.

Não houvera como não deixar o queixo cair ao adentrar o local, assim que a abertura nos portões permitira suas entradas. O chão de terra batida, entremeado a pequenos tufos de gramas aqui e ali, encontrava-se tomado por poças de água e lama, efeitos da forte chuva que ainda insistia em cair.

Uma trilha central, construída para a largura de dois carros pelo menos, servia como uma espécie de divisória para as propriedades periféricas, localizadas nas laterais próximas ao muro. O caminho levava em direção a uma enorme casa de estilo colonial, uma mansão com mais de cem anos de existência. A gigantesca residência era o ponto mais alto da comunidade, o grande orgulho e destaque do local.

Cercados para a criação de galinhas e porcos, cabanas construídas em madeira, e outras ainda em construção, além de diversos trailers, formavam as demais edificações do Alto do Morro, um misto de sociedade feudal com velho oeste texano. Um ar muito familiar, quase visceral podia ser detectado em toda a parte. Com toda a certeza o Hill Top era muito diferente de Alexandria.

Carros estacionados, pessoas andando de um lado a outro com cestas de legumes, conversas entre moradores enquanto alimentavam as galinhas, sorrisos, despreocupação... Nem parecia que o mundo lá fora havia virado um inferno.

Ao darem mais alguns passos dentro do local, Rick também pode perceber ao esticar o olhar uma enorme horta, afastada do local de maior movimentação de pessoas. Nabos, batatas, alfaces, tomates... Todos frescos e produzidos em escala o bastante para toda a população. Fora impossível não se lembrar de Hershel, ele com certeza iria adorar aquele lugar.

Grimes não gostava do que estava sentindo, parecia amolecer internamente.

— Como eu já havia dito, temos em torno de duzentas pessoas por aqui... – Jesus passou a prender os longos e molhados cabelos, fazendo um coque improvisado – Bom, talvez mais, havia uma grávida quando eu parti, é provável que já tenha dado a luz...

Ninguém conseguia dizer nada, ainda encontravam-se totalmente embasbacados, analisando cada detalhe do utópico lugar. O Hill Top causara um indescritível efeito nos sobreviventes, cada um a seu modo.

— Aquela é a Barrington House! – O cabeludo apontara para a enorme mansão colonial – A torre lá em cima, ou seja lá o nome que se dê para aquilo, é ponto mais alto da comunidade, usamos como um observatório. Nos ajuda a detectar qualquer aproximação hostil!

O agora guia turístico parecia empolgado com a positiva reação de seus convidados.

— Esse lugar era um ponto turístico, todas as escolas da região faziam um passeio para cá no verão... Todo o terreno estava meio que alheio a toda a merda que ocorreu, não foi difícil limpar uma área tão íngreme assim, até mesmo para os carniceiros o acesso é difícil...

Todos o olhavam com atenção.

— Os primeiros que chegaram aqui precisaram fazer algumas adaptações para que o Hill Top viesse realmente a existir, e se tornar perene, como é hoje! Quando eu cheguei os muros já haviam sido construídos, mas muitas dificuldades precisaram ser ultrapassadas... Acredite, nem sempre foi tão bonito assim...

Mais um motivo para acreditar em Alexandria. Pensou Rick, deixando-se levar pela expectativa positiva. O xerife conseguia imaginar muito bem o que precisara ser ultrapassado pra que o Alto do Morro viesse a ser uma comunidade com aquele porte. Grimes sabia que muitos tiveram de perecer para que outros pudessem ter o direito de prosseguir respirando.

A nova lei do novo mundo era cruel, mas ainda assim, precisava ser seguida a risca.

— Esse lugar tinha um celeiro, não é?

Michonne manifestara-se pela primeira vez. Após a breve caminhada parecia ter baixado um pouco a guarda, apesar disso ser algo extremamente incomum para a samurai. Até mesmo a mais turrona dos membros dos sobreviventes dava sinais de também ter sido fisgada por tudo o que fora apresentado até então.

O barbudo sorriu, gostara de ver a mulher de poucas palavras interessada e participativa.

— Sim, sim... Ele foi desmontado pelos veteranos para a construção dos muros, logo no início. Além disso, outras propriedades da região também serviram como matéria prima... Usaram as chapas de metal e madeira de outros celeiros e casas nas redondezas para completar essas paredes... Pelo menos foi o que me disseram quando cheguei!

Jesus estalou brevemente os dedos, apontando de forma expansiva para o lado esquerdo de onde estava posicionado.

— Estão vendo aquilo? Aquela é a torre d’água!

O homem apontara para uma arcaica construção em madeira, com um enorme tonel no topo, há cerca de cinco ou seis metros de altura.

— Tudo foi adaptado, mas conseguimos interligar os poços dessa propriedade com a torre... Não temos uma bomba de sucção, mas o velho croata conseguiu criar um sistema em que bombeamos usando a força física, bem parecida com o que é feito nos portões...

A chuva ia diminuindo gradativamente, as nuvens cinzentas aos poucos começavam a se dissipar do céu.

— Não posso dizer que nossa água é um primor de limpeza, mas... Bom, não temos passado sede! – Um sorriso se seguiu a explanação, ele prosseguiu – Aqui atrás temos vários trailers, foi preciso expandir a alguns meses, após a chegada de novas pessoas... Venham comigo, vou mostrar a casa pra vocês!

Em meio à lama e a terra batida, alguns velhos trailers estacionados serviam como moradia para grande parte da população do Hill Top, principalmente para às famílias que conseguiram sobreviver a todo o caos do mundo. Provavelmente os mais arredios preferiam morar junto aqueles que mais confiavam, um sinal de que mesmo em um lugar utópico como aquele demonstrava ser, a serenidade não imperava em sua totalidade.

O grupo acompanhou Jesus, subindo a elevação mor da comunidade, dirigindo-se a enorme casa já descrita por ele. Quanto mais se aproximavam, mais o lugar exibia sua pompa. Rick atestava cada vez mais em sua mente, o quanto ter aquela propriedade dentro de suas terras ajudou a prosperidade do Alto do Morro, já que muito provavelmente duzentas pessoas não sobreviveriam se tivessem que viver espremidos em meio a barracas e carros velhos.

O lugar que carregava consigo um pedaço da história dos Estados Unidos, não parecia ter sido abalado por todas as mudanças que a nação sofrera após séculos de desenvolvimento, e nem mesmo os últimos dois anos de regressão, quando os morto resolveram se erguer ante os vivos. Impávido como sempre fora, os quatro andares da Barrington House seguiam intactos, obviamente com uma ou outra modificação feita pelos moradores, mas sua essência seguia lá, e podia ser sentida por todos.

Ao passarem pela porta de entrada, mais pareciam que haviam sido transportados para outra dimensão, em uma nova linha temporal. Um lugar no espaço onde os problemas podiam ser momentaneamente esquecidos.

Total fora a admiração ao se deparar com o interior do lugar, quase que totalmente preservado. O zelo dos moradores ficava evidente em cada ponto da comunidade, desde os trailers até a enorme mansão. Uma bela escadaria em espiral levava os visitantes aos andares superiores, onde os lustres centenários e os móveis coloniais davam as boas vindas aos forasteiros.

— Esse lugar funciona como um hotel... – Voltou a falar o guia – Praticamente todos os cômodos foram convertidos em dormitórios, até mesmo aqueles que não eram quartos...

Algumas pessoas cumprimentavam Jesus enquanto desciam as escadas. A maioria dos veteranos pareciam curiosos com a presença dos ilustres visitantes.

— Alguns são mais reservados e preferem ter seu próprio espaço, como os caras que moram nos trailers lá fora... Outros se sentem mais seguros aqui, com bastante gente por perto! – O barbudo voltou-se para o pequeno grupo que o seguia – Venham, vou mostrar os arredores agora!

— Jesus, espere!

Antes que se dirigissem à saída, uma voz rouca ressoou, chamando a atenção do cabeludo. Saindo de um dos aposentos, um gordo homem de aproximadamente sessenta anos, com ralos fios de cabelos sobre uma careca repleta de sinais, além de um rosto tomado por rugas e marcas de expressão, caminhou até o grupo lentamente, sorrindo de forma breve.

A barba branca e os olhos expressivos faziam daquele homem um ser cansado, estafado. Todavia, o porte que tentava demonstrar ia justamente contra a maré. Vestindo um velho paletó negro, com visíveis manchas causadas pelo tempo, o velho homem deu alguns passos, sempre de queixo erguido, admirando os novatos, principalmente Rick Grimes.

— Mostre os arredores para os outros Jesus, no momento eu gostaria de conversar com a pessoa que exerce posição de autoridade nesse grupo... Uma conversa de líder para líder...

Instantaneamente o xerife tomara a posição, dando um passo a frente e aproximando-se daquele que o solicitara. Jesus sorriu, balançando brevemente a cabeça de forma negativa, antes de voltar a se manifestar.

— Bom pessoal, esse é o Gregory... Ele é quem toma as rédeas por aqui, o cara que faz tudo funcionar!

O bonachão homem ampliou um sorriso, confirmando com a cabeça o que Jesus acabara de afirmar.

— Esse... – O barbudo dera dois tapas no ombro de Grimes fazendo com que ele o encarasse brevemente – É o homem que procura... Rick Grimes, ele é o líder da comunidade que entrei em contato recentemente!

Gregory estendeu uma das mãos, cumprimentando o mandatário de Alexandria.

— Prazer em conhecê-lo Rick!

O xerife nada disse, apenas respondeu ao cumprimento, totalmente desconfiado de tudo e de todos. Apesar de sentir-se renovado ao adentrar o Hill Top, Grimes não permitiu que os seus instintos de sobrevivência o abandonassem, por isso mesmo, não conseguia parar de pensar no quanto tudo era muito dúbio, surreal. Ele não podia entregar sua confiança tão rápido, a nova comunidade ainda precisaria mostrar muito para conseguir dobrar o policial.

Antes de seguir o velho líder do Alto do Morro, Rick voltou-se para Michonne e Glenn.

— Vamos cuidar dele, não se preocupe! – Afirmou Michonne, compreendendo a preocupação do amigo em relação a Carl, que seguia junto ao grupo.

Após o viés confirmatório, Grimes seguiu caminhando junto a Gregory, enquanto que o restante de seu grupo dirigiu-se até a saída da mansão, acompanhados por Paul Jesus.

Percorrendo um dos corredores da Barrington, o xerife observava todos os detalhes do lugar, não deixando que nada passasse em branco. O papel de parede, os castiçais, as garrafas de licores sobre as bancadas, os quadros nas paredes. Tudo tão alheio à depredação e sujeira do mundo lá fora, tudo bizarramente deslocado, como uma peça que não se encaixa em um quebra cabeças.

— Você tem uma bela família Nick!

O velho homem tentava ser simpático.

— Na verdade é Rick... – Corrigiu o policial, sem conseguir esconder suas fechadas feições.

— Me desculpe... – O homem passou uma das mãos brevemente sobre a testa – Então Rick, me diga, onde vocês se enfiaram? Suponho que não seja algo tão atraente e impressionante quanto isso aqui!

O expansivo e soberbo velho não permitiu que Grimes se manifestasse.

— Você não imagina todo o trabalho que eu tive para que o Hill Top chegasse ao que é hoje! Mas acredite, ao olhar para tudo isso aqui, vejo o quanto todo o meu suor derramado valeu a pena!

Rick arqueou uma das sobrancelhas, atestando o quanto aquele homem era patético. Inofensivo, mas extremamente patético.

— É, eu imagino... – Asseverou Grimes quase que monossilabicamente.

Gregory não parecia perceber a indiferença demonstrada por Rick. O homem inflava o peito a cada frase, pronunciando cada palavra com enorme orgulho incrustado.

— Vou mandar alguém guiar você por toda a dependência da comunidade, para que possa atestar o quão maravilhoso é esse lugar! Você ainda não viu nada Rick, tenho certeza que irá se surpreender ainda mais quando conhecer o nosso sistema de irrigação, além do nosso campo de tomateiros próximo ao muro sul...

Eu bem que imaginei... É obvio que esse lugar também teria suas maçãs podres. Com a liderança desse sujeito, Hill Top torna-se tão vulnerável quanto Alexandria... Ao que parece nada é tão perfeito assim...

Rick percebia que o espalhafatoso idoso que proferia com afinco frases de efeito, sempre destacando o quanto ele fizera por aquela comunidade, não era de fato o líder do lugar. O Alto do Morro fora erguido com o suor e sangue de muitos, e provavelmente a contribuição de Gregory fora tão insignificante quanto plantar feijões no algodão.

O barrigudo patético não mensurava estar diante de um verdadeiro sobrevivente, de um homem que passara um inferno para conseguir chegar aonde chegou. Um homem que perdeu quase tudo, e ainda assim retirou forças para guiar um grupo inteiro rumo a um porto seguro. Mais de uma vez. Se ele imaginasse a pessoa que Rick Grimes era, com toda a certeza veria o tolo papel que estava fazendo.

— Tenho certeza que vai gostar das pessoas aqui, Rick... – Ele insistia em prosseguir – Temos um sistema de divisão de tarefas que faz com todos se sintam ativamente participantes dentro da comunidade... Tenho certeza que nunca havia pensado nisso, não é? Bom, estamos tentando reerguer o mundo por aqui, fazer...

Passos acelerados seguidos por um crescente burburinho começaram a reverberar pelos corredores da gigantesca moradia. Olhos assustados e expressões medrosas passaram a se espalhar rapidamente, criando um súbito pânico inesperado.

Um homem alto, de longos cabelos enrolados presos em um rabo de cavalo, escondendo o topo da cabeça em um boné de aba curva, corria de forma desgovernada, esbarrando pelas paredes, visivelmente dirigindo-se até o líder Gregory.

Arregalando os orbes e deixando a confiante expressão para trás, o mandatário do lugar pareceu perder as ações ao ver as feições daquele que fora até ele.

— O que aconteceu, Ramírez?

Molhado pela chuva, o homem que vestia um casaco surrado sobre uma larga camisa de linho branca, respirou fundo antes de responder.

— É o Ethan, ele retornou... Só que retorou sozinho!

O idoso acima do peso deslocou-se o mais rápido que pôde para o lado de fora da Barrington House. Rick o seguira, ficara curioso ao ver como o homem se desesperara repentinamente ao ouvir as notícias trazidas por Ramírez. Algo não corria bem, e por isso seria interessante para o xerife observar como aquelas pessoas se comportavam em situações adversas.

Ao chegarem em frente a casa do ferrageiro, próximo ao grande portão, um aglomerado de pessoas podia ser visto, todos exprimindo as mesmas feições assustadas, como expectadores de uma tragédia. Rick percebeu que não era a primeira vez que algo do tipo ocorria por ali, e aparentemente já havia uma forma de se lidar com o pretenso problema.

Cambaleando e sendo amparado por Kal, um homem de trinta e tantos anos, cabelos curtos e loiros, vestindo um casaco de couro marrom, muito semelhante ao utilizado pelo próprio Grimes, mantinha a cabeça baixa e o olhar derrotado. Sendo levado até Gregory, Ethan parecia ter levado uma surra, já que olhando mais de perto, hematomas arroxeados eram facilmente identificados em seus olhos, além de um filete de sangue escorrendo pelo nariz e boca.

Os curiosos que ali permaneciam, não paravam de tecer comentários uns aos outros, enquanto que horrorizados, nada faziam para ajudar o homem. O clima se modificara inteiramente, ficando muito mais tenso e deixando de lado toda a cordialidade de poucos minutos atrás. Algo grave havia acabado de ocorrer.

— Tá tudo bem Ethan, vou te levar ao Doutor Carson... – Repetia o jovem lanceiro Kal, tentando confortar o amigo.

Assustado e dispneico após um breve pique dado, o líder do Alto do Morro aproximou-se de Ethan, dirigindo a palavra a ele assim que entraram em contato visual.

— Onde estão David, Crystal a Andy? O que aconteceu lá?

O homem ferido ergueu os olhos inchados. Seus lábios estavam cortados e o nariz amassado, provavelmente quebrado. Tomando fôlego de forma sôfrega, Ethan manifestou-se com a voz rouca, bastante falha.

— Mortos, eles estão...

Arregalando ainda mais os olhos, Gregory interrompeu-o, praticamente dando um salto de espanto.

— Foi o Negan? Foi ele quem fez isso?

Ethan abaixou a cabeça, reticente.

— Ele disse que não era o suficiente, que não será...

O homem respirava de forma falha, aparentemente ele não estava machucado apenas fisicamente, seu emocional parecia extremamente abalado.

— Ele falou que seria o fim do contrato, o fim do nosso acordo... – A pequena multidão demonstrava estar cada vez mais assustada – Eles ainda estão com a Crystal, disseram que a manteriam viva caso eu retornasse e trouxesse uma mensagem a você...

Gregory aproximou-se ainda mais, seus lábios tremiam levemente.

— Mensagem? Que mensagem? – Questionou.

Novamente Ethan respirara fundo antes de responder.

— Eu sinto muito...

Em um rápido movimento, o ferido homem puxara da cintura uma faca de caça, desferindo um golpe contra o líder do Alto do Morro, atingindo-o na parte lateral direita do abdome, fazendo com que um jato de sangue espirrasse do local atingido. O velho calvo urrou de dor antes de cair sentado ao chão, comprimindo com as mãos o ferimento.

Ensandecido, Ethan ainda tentou concluir o serviço, empunhando a faca e dirigindo-se novamente até o velho homem, com o intuito de acertá-lo mais uma vez, dando-lhe o golpe de misericórdia. Contudo, Grimes, que prosseguia ao largo observando a tudo, acabara agindo de forma automática, mais uma vez sendo tomado por seus instintos de sobrevivência.

Desferindo um soco contra o rosto do agressor, Rick agarrou-o pela cintura, deslocando o corpo de Ethan e caindo sobre ele no solo enlameado. O homem gritava, tentando livrar-se da pegada do xerife, que prosseguia em sua tentativa de desarmá-lo. Ninguém interferira, todos apenas assistiam a situação infernal que acabara de se instaurar, torcendo para que ela encontrasse um final.

— Me larga! – O homem cuspia enquanto vociferava – Ele tem que morrer! Ou ele morre ou eles matarão a Crystal!

Utilizando a mão esquerda para conter a arma branca que seu adversário carregava, Grimes tentava desestabiliza-lo utilizando o coto direito para ‘martelar’ o rosto de Ethan, que insistia em se debater, forçando o corpo para cima, tentando se erguer.

— Larga a faca e ninguém se machuca! – Exclamou Rick, tentando acabar com a briga.

O problema era que Ethan também era um homem forte, provavelmente mais forte que o policial, portanto, não precisara de muito mais esforço para conseguir reverter a posição, girando o corpo e ficando por cima do xerife. Traçando uma verdadeira batalha de ‘braço de ferro’ os dois lutavam por espaço, enquanto Ethan movia o punho, aproximando a faca do pescoço de Rick.

Sem uma das mãos para ajudar, ficaria muito mais difícil impedir que o homem conseguisse feri-lo, e pela posição em que a arma se encontrava, provavelmente seria um golpe letal.

— Segurem ele! – Clamou Grimes, voltando o olhar para a multidão inerte – Que porra vocês estão fazendo?

— Ninguém se aproxima! – Bradou Ethan – Me impedir é o mesmo que matar a Crystal!

Todos pareceram seguir o ‘conselho’ do veterano, prosseguindo observando a luta mortal, boquiabertos e inermes.

Apesar de toda a desvantagem, Rick sabia que sua história não terminaria ali, já havia passado por obstáculos o bastante para perceber que aquele poderia e seria contornado. Ele não abandonaria seu filho daquela maneira, muito menos deixaria Andrea para trás. Fora justamente apegado em uma frase que a loira proferira para ele uma vez, que Grimes encontrou forças para finalizar a peleja de uma vez por todas.

Nós não morremos Rick... Nós não morrermos...

Girando o punho velozmente, o xerife conseguiu golpear o pescoço de Ethan com a faca que ele próprio portava, rompendo sua jugular e causando um grande derramamento de sangue. Jorrando de forma pulsante, o líquido viscoso espalhou-se pelo rosto e torso de Grimes, entrando em suas narinas e boca, enquanto que o corpo sem vida do irado homem caía mansamente sobre ele.

Empurrando o cadáver para o lado e cuspindo uma grande quantidade de sangue, Rick ergueu o corpo, posicionando-se de joelhos enquanto limpava os olhos, também tomados pelo plasma arterial.

Respirando fundo e tentando se recompor, o xerife passava as mãos sobre os cabelos, manchando-se ainda mais e fazendo com que toda a sua cabeça tomasse uma tonalidade avermelhada. A cena era asquerosa, e por isso mesmo, alguns moradores resolveram se afastar do recém-chegado, aterrados por sua atitude.

Michonne, Glenn, Carl e Jesus chegaram a tempo de ver os últimos segundos da batalha campal. O pequeno Grimes nada dissera, apenas encarara o pai com o olho esquerdo, valendo-se de uma expressão compreensiva, provavelmente entendendo a motivação do policial.

Ficando de pé, Rick percebeu que estava cercado por pelo menos trinta pessoas. Idosos, crianças, mulheres, jovens, todos olhando-o com reprovação, com medo e com asco. Cada íris transbordava de terror, Grimes notara o quanto aquelas pessoas não estavam habituadas a realidade do mundo que ele conhecera lá fora, o mesmo mundo que sua própria Alexandria insistia em renegar.

Cadáveres ambulantes, tão mortos quanto os carniceiros do outro lado dos muros.

Passando o antebraço sobre o rosto e cuspindo mais uma remessa de sangue para o lado, Rick encarou de forma assertiva o grupo que o julgava, indagando de forma impassível logo em seguida.

— O que foi?

Um choro alto de lamentação interrompera o silêncio sepulcral que se instaurara durante aquele meio minuto de tensão. Uma senhora idosa chegara à cena do crime, desesperada, tendo de ser amparada por alguns dos moradores. Os olhos avermelhados e as rugas destacadas insinuavam ainda mais o sofrimento demonstrado no rosto da mulher.

— Meu Deus... Você matou o Ethan! – Seu grito saía esganiçado, pavoroso – Você o matou... Monstro, monstro!

Rick voltou-se em direção a mulher, pendendo levemente a cabeça para o lado esquerdo e arqueando uma das sobrancelhas.

— Monstro? Esse homem tentou matar o Gregory, e também tentou me matar... Eu só estava me defendendo!

Jesus bufou alto, parecia extremamente nervoso e inquieto. Com toda a certeza a última coisa que queria era que uma confusão generalizada fosse gerada por aqueles que ele permitira entrar em seu lar. Talvez trazer Grimes e seu grupo até o Hill Top não tivesse sido de fato uma boa ideia.

— Por favor, Rick... – O homem tentava agir de forma diplomática mais uma vez – Você precisa entender, nada é tão simples assim... Não estamos habituados a esse tipo de acontecimento, então peço que me dê um tempo... Eu posso resolver as coisas!

Para ampliar ainda mais a celeuma, Eduardo, o outro lanceiro dos muros, partiu em disparada portando sua ferramenta, assim que percebera a aglomeração que se formara. Ao avistar o corpo de Ethan no solo, além do forasteiro tomado pelo sangue do morador da comunidade, um sentimento de revolta passou a tomar conta do pretenso guarda, que não tardou em bradar em alto e bom tom.

— Larga a faca! Larga a faca agora!

Seus passos largos e decididos faziam com que ele se aproximasse rapidamente do local tumultuado. Os olhos semicerrados e a lança empunhada patenteavam o quanto ele estava disposto a proteger o lugar.

— Acho que isso não vai acontecer!

Grimes freara todo e qualquer impulso do jovem guerreiro quando, após jogar a faca sobre o corpo daquele que acabara de assassinar, retirara com a mão esquerda seu velho revólver da cintura, apontando na direção de Eduardo. Ainda impávido e com o olhar fixo, Rick não demonstrava nenhuma rusga de intimidação enquanto ameaçava o rapaz que imaginava poder enfrentá-lo.

Caralho, caralho... – Jesus direcionou-se até Rick, posicionando-se entre ele e Eduardo – Todo mundo mantenha a porra da calma!

Com os dois braços esticados, o barbudo esforçava-se na tentativa de impedir que uma tragédia maior ocorresse.

— Abaixem a porcaria das armas... Agora, porra!

O xerife lentamente atendera ao pedido de Jesus, guardando o seu revólver no coldre, ainda insistindo em encarar aquele que o desafiara. Mantendo a seriedade na voz e nos gestos, Grimes voltara o olhar para o líder do Hill Top, que seguia no chão sendo socorrido por Kal. O lanceiro tentava estancar o ferimento de Gregory, que aparentemente não havia sido tão grave assim.

— Temos coisas mais importantes para nos preocupar agora... – Asseverou novamente o barbudo, aliviado – Kal, leve o Gregory ao Doc Carson, creio que ele poderá estancar esse sangramento!

Vagarosamente a aglomeração começou a dissipar. Apoiado por mais dois homens, Kal erguera Gregory, que gemia bastante, encaminhando-o até o consultório do médico local. Ainda estupefeitos, os moradores do Alto do Morro iam voltando a seus afazeres, agora mais assustados que de costume. A figura de Rick, de pé, portanto um revólver e banhado pelo sangue de um de seus vizinhos, com certeza não causara uma boa primeira impressão aos sobreviventes.

Uma grande poça de sangue se formara ao redor do corpo de Ethan, após o sangue arterial pulsante, jorrar de forma descompassada por sua jugular. O homem de olhos abertos vidrados e rosto pálido, não lembrava mais o aflito sujeito tomado pela cólera, que tentara matar o próprio líder há poucos minutos.

— Ele vai se transformar... – Rick apontara para o cadáver – Não quer que eu...

Paul o interrompera.

— Temos nossa própria maneira de lidar com a morte... Entenda, já virou uma tradição por aqui... Uma espécie de rito.

A voz mansa do diplomata não escondia o quanto ele também havia sido afetado por toda a confusão que acabara de ocorrer.

Glenn, que assistia a tudo com enorme apreensão, passara a se preocupar bastante com o que poderia ocorrer a partir daquele momento. Apesar de ter agido em legítima defesa, pelo menos aparentemente, Rick executara um morador de uma comunidade que pretendia criar laços de boa vizinhança com Alexandria.

O asiático sabia o quanto esse tipo de acordo viria a ser benéfico para o seu lar, principalmente coma gravidez de Maggie avançando. Suprimentos, água, munição, equipamentos vitais nos dias atuais para que seu futuro filho, ou filha, pudesse ser gerado com segurança e saúde.

O problema era que Grimes, apesar de um excelente líder, costumava agir de forma temerária em diversas situações, como a que haviam acabado de passar. O ex-entregador sabia o quanto a mente de seu amigo fora afetada após a perda da esposa e da filha, e mesmo que ele tenha encontrado conforto nos braços de Andrea, a cena da brutal execução da pequena Judith nunca sairia da mente do xerife.

Rick havia mudado, resguardado os sentimentos em um local quase intransponível de seu coração, acessando tais informações apenas em raríssimas situações. A frieza e compenetração do policial salvara a vida de muitos diversas vezes, mas não conseguira salvar o próprio Rick. Glenn temia que o mandatário de Alexandria alcançasse um local tão fundo em sua imersão na escuridão dos traumas que passara, que nunca mais pudesse retornar a superfície.

— Jesus, o que vai acontecer com o Rick? – Perscrutou Glenn – Você viu como todos ficaram...

— Não se preocupe... – Manifestou-se o cabeludo, tentando acalmar o jovem asiático – As pessoas só estão... Isso não acontece com muita frequência por aqui, mas tenho certeza que conseguirei convencê-los de que tudo não passou de uma infeliz tragédia.

O xerife não parecia ligar para as palavras apaziguadoras de Jesus. Enquanto observava o corpo de Ethan ser envolto em um lençol e carregado para longe de onde encontravam-se, Rick alimentava um único pensamento, uma dúvida que passou a reverberar em sua cabeça.

— Quem é Negan? – O policial voltou-se em direção ao barbudo, que pareceu engolir a seco o questionamento – Onde essa Crystal pode estar? Suponho que ela seja do seu grupo...

Paul parecia reticente, abaixou a cabeça brevemente e nem um pouco expedito, declarou em seguida.

— Se Negan realmente pegou a Crystal, então ela já era... Não há nada que possamos fazer no momento... – O homem respirara fundo antes de prosseguir – Têm muitas coisas que vocês precisam saber, eu irei atualizá-los... Mas não aqui...

[...]

O entardecer começara a ser vencido pela aproximação da noite, que cinzenta e melancólica, encaixava-se perfeitamente com o clima de crescente pavor que se propagava em todo o Alto do Morro.

Temerosos do que poderia acontecer com a presença dos perigosos estranhos, os veteranos da comunidade preferiram resguardar sua segurança, permanecendo em suas moradias ou trancados nos quartos da grande mansão colonial.

Sabendo que a linha tênue entre o medo e uma possível retaliação estava quase sendo rompida, Jesus resolveu levar os visitantes até a grande biblioteca da Barrington House, protegendo-os de manifestações hostis que poderiam vir a ocorrer.

Cercados por enormes estantes repletas dos mais diversos livros, e acomodados em confortáveis poltronas, o pequeno grupo tentava contornar o clima mórbido que se espalhara, sabendo que estavam sendo observados de perto, e que provavelmente corriam perigo caso aquelas pessoas decidissem que o ato de Rick era passível de punição.

As luzes das velas nos castiçais de prata, iluminavam parcialmente o grande cômodo. De pé, recostado sobre uma das estantes, Jesus, agora exibindo os enormes cabelos lisos soltos, tentava iniciar uma complicada conversa esclarecedora com os integrantes de Alexandria. Rick, também portado de forma ereta, aguardava que o falador diplomata, sempre desenvolto, pudesse explicar o porquê de Ethan ter agido como agiu.

— Bom... – Após um minuto e meio de silêncio, o homem finalmente encetara seu discurso – O Hill Top tem inimigos...

Glenn, sentado ao lado de Michonne e Carl, acomodou as costas de forma relaxada em sua poltrona, enquanto bufava de forma irônica.

— Acho que isso nós já entendemos! – Afirmou o batedor.

Paul sorriu brevemente antes de prosseguir.

— Aconteceu logo após a conclusão da construção dos muros... – O barbudo portava um copo de licor em uma das mãos – Negan e seu grupo surgiram, vindo até nós... Eles se denominam como Os Salvadores...

O líquido rapidamente fora bebido, em um único gole.

— Eles contataram Gregory e fizeram diversas exigências, todas repletas por ameaças... Digamos que o nosso líder não é muito bom em resolver conflitos...

Rick balançou a cabeça positivamente. Não precisara de muito convívio para também chegar a essa conclusão.

— Ele acabou fazendo um acordo com os Salvadores, um trato... – Era visível o quanto Jesus estava desconfortável em relatar tais fatos – Metade dos nossos mantimentos, das nossas plantações, dos nossos animais, tudo vai o grupo de Negan... De tempos em tempos fazemos as entregas para eles...

O cabeludo fez uma breve pausa, seu olhar parecia derrotado.

— Em troca eles mantêm os arredores do Hill Top livre dos carniceiros... Esse é o acordo!

A mesa ao lado do diplomata continha uma garrafa de vidro com mais do licor que ele bebia. Dirigindo-se até ela, Jesus encheu novamente o copo e voltou a entornar o líquido de uma única vez.

— Tudo o que sei sobre eles é que são um bando de nômades malucos, que andam por aí fazendo matanças a torto e a direito... – Algumas gotas escorreram por seus lábios, acomodando-se em sua vasta barba – Dizem que eles já acabaram com milhares de mortos vivos... Mas isso fica apenas no campo da lenda!

Rick, que até então apenas ouvia a tudo de forma atenciosa, surpreendeu-se ao descobrir a motivação de todo o pavor que o Hill Top passava. Dando dois passos em direção ao cabeludo, o xerife ainda tentava compreender a força motriz que levara mais de duzentas pessoas a se esconderem como ratos por conta de um grupo que aparentemente sobrevivia à base de pura lábia.

— Um cara apareceu, fez algumas ameaças e vocês simplesmente passaram a dar metade de tudo que tem para eles? Quantas pessoas compõe esse grupo, esses Salvadores?

Jesus parecia envergonhado ante o questionamento trazido pelo xerife. Sem encará-lo de fato, o homem voltou a discorrer.

— Ninguém sabe ao certo... Nós não temos armas Rick, não temos pessoas preparadas para entrar em conflito que esses sujeitos, entenda, não podemos nos arriscar... – O abatido diplomata balançou a cabeça negativamente antes de concluir o pensamento – É tudo uma merda, eu sei!

Merda? Merda é pouco! – Michonne resolveu intrometer-se, aparentemente revoltada – O líder de vocês está permitindo que um cara que talvez sequer seja uma ameaça real, pegue metade dos seus suprimentos e ainda ameace vocês?

Jesus abriu os braços, tentava demonstrar o ponto de seu povo.

— O que podemos fazer? Gregory até é bom em alguns aspectos, mas em outros... Admito que deixe muito a desejar! Os Salvadores levam essa comida até um porto seguro, um local do qual nada sabemos... Além disso, Negan já foi visto com diferentes grupos, todos compostos por pelo menos vinte homens!

Carl e Glenn também aparentavam não compreender a postura subserviente adotada pelo Alto do Morro.

— Eu já tentei segui-los uma vez, mas não deu muito certo... Eles me viram e eu escapei por pouco! Às vezes eles simplesmente acham que não estão recebendo a quantidade merecida, que estamos tentando enganá-los... Não é a primeira vez que eles espancam o grupo enviado para o ponto de encontro...

Passando a mão na nuca, Paul parecia recordar memórias bastante dolorosas.

— Já mataram outros dos nossos, apenas para nos mandar um recado... Para deixar claro que eles estão no comando da situação!

O novo enunciado pareceu modificar parcialmente a visão dos sobreviventes de Alexandria.

— Todo mundo vive assustado demais para tentar qualquer coisa contra eles... É por isso que trabalhamos duro, plantamos, colhemos, fazemos acordos com outras comunidades... Tudo para que consigamos juntar o necessário para que esses bastardos nos deixem em paz! Mas ultimamente não tem sido suficiente...

Carl Grimes ergueu o rosto, olhando fixamente com sua íris esquerda para aquele que se pronunciava. Mantendo a típica feição compenetrada, lembrando em muito seu pai, o garoto resolveu também tecer sua opinião.

— Se nós matarmos esses caras, vocês darão metade da sua comida pra gente?

Rick sorriu, percebera o quanto ele e seu filho estavam em sintonia, justamente por essa proposta também ter passeado por sua mente.

— Entrar em conflitos nunca foi um problema para nós! – Embasou o xerife – Vocês não precisariam dispor da metade dos suprimentos, apenas o suficiente para o nosso grupo.

O barbudo coçou o queixo, parecia ter apreciado o plano do policial. De repente, todo o medo pelo qual o seu povo passava poderia simplesmente desaparecer. Talvez a chegada de Rick Grimes fosse o gatilho necessário para que finalmente o Alto do Morro se visse livre das amarras impostas por Negan e seus Salvadores.

— Está falando sério? – O homem balançou a cabeça positivamente – Acho que isso é algo que podemos avaliar...

[...]

— Entre e feche a porta...

A voz fraca e trêmula de Gregory enunciava a dor que o homem sentia. Por sorte, o golpe desferido por Ethan não atingira nenhum órgão vital, e o mais grave que ocorrera com o idoso fora a perda de sangue. Carson não encontrara dificuldades em realizar o curativo, e logo o bonachão fora liberado para repousar em seus aposentos.

Após ser informado por Jesus sobre a proposta de Grimes, o líder do Hill Top resolveu falar com o policial ainda naquela noite, em uma tentativa de atestar se as intenções do forasteiro eram realmente positivas para a sua comunidade.

Atendendo ao chamado, Rick dirigiu-se até o quarto do homem assim que fora avisado por Ramírez sobre o seu pedido. De banho tomado e sem nenhum resquício dos restos mortais daquele que executara, Grimes abriu a porta com cuidado, não querendo chamar mais a atenção do que já havia chamado.

— Você não deve imaginar o quanto isso é doloroso...

Sem camisa, exibindo a vasta barriga peluda, Gregory fazia diferentes caretas, além de exprimir as mais diversas sonoridades de gemidos, tentando demonstrar a enorme dor sentida por conta do atentado.

— Sinto que os meus intestinos estão dentro de um liquidificador... Meu corpo todo dói, estou moído... – Seu rosto parecia ainda mais penoso – Você não pode nem mensurar o que estou sentido nesse momento...

Rick ergueu o coto direito.

— Eu perdi uma mão... E já fui baleado duas vezes!

O mandatário arregalou os olhos, deixando de lado o rosto compadecido por alguns instantes. Gregory começava a perceber que Rick não se assemelhava aos moradores de sua comunidade, que podiam ser moldados com poucas palavras. Ele era forte, decidido, um real e verdadeiro sobrevivente.

— Jesus me contou o que você propôs... – Gregory rapidamente mudara o foco do assunto – Acha mesmo que pode enfrentar Negan? Nós seríamos eternamente gratos se fizesse isso!

Rick aproximou-se da cama.

— Não temos muito o que oferecer em relação a suprimentos, na verdade, Alexandria anda com os estoques em baixa... Por isso mesmo a proposta inicial de negócios trazida por Jesus não daria certo, pelo menos por enquanto...

O xerife passou a caminhar pelo quarto enquanto explanava.

— Talvez em outro momento possamos contribuir de outra forma, mas eu não me sentiria nem um pouco bem sabendo que metade do que enviarmos para cá irá para as mãos dos Salvadores...

O líder do Alto do Morro deixara a encenação de vítima para trás. Olhando para Rick de forma compenetrada, o homem parecia compreender cada palavra proferida pelo líder de Alexandria.

— Negan tem sido uma pedra no nosso sapato há muito tempo... – Gregory fechou os olhos brevemente – Eu já fiz muito por essa comunidade, mas nunca consegui ser forte o bastante para encará-lo! A grande razão de Jesus sair por aí, realizando acordos com outras comunidades, era para que conseguíssemos aliviar esse peso das nossas costas...

O velho ajeitou-se na cama, retesando um pouco mais o cansado corpo.

— A ideia até foi boa – Prosseguiu – mas não facilitou as coisas com Negan... Nos últimos meses, tudo ficou pior... Bem pior...

Rick admirava a chama das velas postas ao lado da cama do mandatário da comunidade. Passando os dedos da mão esquerda pelo trepidante fogo, o xerife refletia bastante sobre os próximos passos que daria.

— Já lidei com esse tipo de gente antes... Meu grupo passou mais tempo na estrada do que fora dela! Sabemos o que fazer nessas situações!

O idoso coçou a barba, olhando fixamente para o policial.

— Você está dizendo que lutará por nós? Essa será a sua contribuição?

— É uma opção – Respondeu Grimes seriamente – Nossos suprimentos estão perigosamente baixos, então se pudermos levar algo conosco, seria um enorme avanço para convencer o meu pessoal a ajudá-los!

[...]

Assim que o dia clareou, Glenn dirigiu-se a cozinha, acompanhado por diversos olhares temerosos e desconfiados. Irritado pela constante sensação de estar sendo observado, o asiático tomou nas mãos uma caneca de café e caminhou até o lado de fora, acomodando-se sobre um amontoado de madeiras.

Utilizando uma coberta para se esquentar, o rapaz arrumou o boné sobre a cabeça, despejando líquido quente garganta a baixo enquanto observava pensativo o horizonte. Ao largo, o som dos pássaros e o barulho dos porcos, traziam a ele uma sensação de bonança, uma calmaria mais do que bem vinda.

Não conseguia parar de pensar em Maggie, e em como sua esposa deveria estar preocupada com sua segurança. O batedor sabia que o sofrimento moral poderia trazer malefícios à gravidez, mas ele também sabia o quanto sua amada era forte, e que compreendia o motivo de suas saídas.

Daqui alguns meses ele seria pai, e a percepção que antes lhe causava arrepios, agora era a grande motivação para o seu viver. O mundo tirou muita coisa de todos, fazendo imperar a morte e a tristeza, mas estranhamente, a cruel nova era também sabia ser renovadora de tempos em tempos. A notícia de que Maggie carregava uma cria sua, fizera com que toda a trajetória do grupo valesse a pena.

Tentando evitar qualquer situação embaraçosa e escabrosa, Rick, Carl e Michonne tomaram um caminho semelhante, dirigindo-se até o local onde o solitário asiático se perdia em devaneios.

— Bom dia! – Exclamou Glenn, recebendo sorrisos contidos em resposta.

Também com uma caneca nas mãos, Rick, com enormes olheiras abaixo dos lacrimais, respirava profundamente, deixando que o ar campestre percorresse todo o trajeto em seu sistema respiratório.

— Vi que você saiu nessa madrugada... – Indagou Grimes à Glenn.

— Não estava conseguindo dormir... – O rapaz seguia fitando o horizonte – Vi um grupo de pessoas ao redor de uma fogueira, todos de branco, resolvi parar próximo, pra observar... Eles cremam os mortos, acho que faz sentido dadas as circunstâncias...

Retirando o chapéu da cabeça e arrumando os volumosos cabelos, Glenn resolveu pôr para fora toda a sua visão sobre o lugar, cunhada após ter observado tudo o que ocorrera desde que chegaram.

— Eu sei que isso pode parecer loucura, mas eu realmente gostei desse lugar! – Sua frase chamara a atenção de seu grupo – Os trailers não são tão confortáveis quanto às casas, mas o território aqui é muito maior! Além disso, há mais ocupações, mais trabalho a ser feito!

O xerife sentara a seu lado, olhando atentamente para os olhos do asiático, que pareciam brilhar.

— As pessoas parecem mais próximas, mais unidas... Acho que por isso ficaram tão sentidas pela morte do Ethan, todos o conheciam muito bem! Esse lugar é incrível Rick!

Olhando para todo o cenário, vendo como as coisas se desenvolveram em apenas dois anos, Rick compreendeu o motivo do Glenn ter ficado tão empolgado. O Hill Top era realmente surpreendente, e com esforço e dedicação, poderia se tornar algo ainda mais grandioso.

Mas aparentemente Michonne não seguia a mesma correnteza que os dois.

— Soube que nos voluntariou para uma guerra, Rick!

De braços cruzados a samurai interrompera o clima ameno.

— Não – Redarguiu Grimes – Tentarei convencê-los assim que chegarmos em casa...

— Você está mesmo falando sério?

A portadora da katana aparentava indignação.

— É a coisa certa Michonne, será benéfico para os dois lados... Você tem algo contra?

A mulher abriu os braços, como que demonstrando ser obvia a resposta.

— Acho que foi uma grande sorte ainda estarmos vivos... Eles têm um líder que oferece tributos a um grupo de assassinos! Você não percebe o quanto eles são bizarros? Eles são assustadores...

— Eles quase se mijaram de medo quando o chefe deles foi atacado! – Carl intrometeu-se, pronunciando as palavras de forma vazia, como se estivesse indiferente à discussão – A maioria ficou tão paralisada que nem conseguia se mexer... Essas pessoas são patéticas!

Rick resolveu pôr ordem na situação. Erguendo-se e posicionando-se de forma ereta, o líder dos Sobreviventes pôs em prática toda a postura de comando que adquirira após tanto tempo resguardando a vida daquelas pessoas. Todos sempre se dirigiram a ele esperando uma atitude, uma ação efetiva. Chegara o momento de mais do que nunca agir como o mandatário que fora nomeado.

— Ninguém nunca me perguntou se eu queria ser líder, simplesmente depositaram as fichas em mim e aguardaram que eu tomasse as decisões... Sempre me perguntei qual seria a motivação disso. Talvez pelo fato de eu ser pai, ou pelo meu passado como policial... O fato é que eu nunca fui realmente bom nisso!

Todos pareciam surpresos com a retórica do xerife.

— O meu foco sempre foi proteger a minha família, e isso acabou sendo benéfico para todos que estavam ao meu redor... De qualquer forma esse ainda não é o ponto.

O policial caminhava, criando um semicírculo com a trilha de seus passos enquanto discursava de forma reta.

— Há muito tenho refletido sobre essas coisas, mas só agora eu percebi o motivo que fez com que eu fosse o líder... É a forma como eu vejo as coisas!

Os atentos olhos acompanhavam cada gesto do xerife.

— Estamos todos aqui, juntos, no Hill Top... – Rick apontou para Glenn – Você viu algo para amar! – Sua mão direita direcionou-se para Carl – Você viu algo para ridicularizar! – O xerife apontara agora para Michonne – E você viu algo a temer!

Rick sorriu, prosseguindo logo depois.

— Eu... Eu vi o futuro! Não vi um lugar perfeito, nem perto disso, mas sim um pilar estrutural, o início de algo... Algo grandioso! – Grimes ergueu o coto – Esse lugar é ainda mais especial por precisarem de nós! Eles precisam das nossas habilidades e assim poderemos ser o principal suporte dessa rede que eles construíram!

Michonne tombara a cabeça levemente para o lado, parecia começar a ser dobrada pelas belas palavras de Rick.

— Eles são quase duzentas pessoas! Isso pode ser transformado em um exército, um grande o suficiente para nos proteger de qualquer ameaça viva ou morta! Esse é o motivo pelo qual enfrentamos tantas coisas, tantas perdas... Finalmente encontramos um lugar onde poderemos parar de nos esconder, de nos preocupar excessivamente...

Grimes respirara fundo.

— Eu vejo um mundo sem zumbis, onde o seu filho poderá brincar por campos como esse, despreocupadamente... – Rick olhou diretamente para Glenn – Um lugar onde as mortes se darão por causas naturais, e não por conta de um massacre canibal...

Fechando os olhos brevemente, Rick deixou-se ser tomado pelo mais puro sentimento que ainda existia em seu peito, a esperança.

— Eu vejo um mundo onde não teremos mais que viver assustados... Um mundo onde poderemos parar de sobreviver... Um mundo onde finalmente poderemos começar a viver!


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam?

Muitas coisas aconteceram, e Rick mais uma vez mitou... Ou vocês acham que ele se precipitou na decisão tomada?

Aguardo reviews... Abraços!

Agora nossos personagens já possuem Algo a Temer...



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