All Out War escrita por Filho de Kivi


Capítulo 11
Man of Science...


Notas iniciais do capítulo

Hei! Primeiramente peço perdão pelo atraso. Acabei me enrolando por aqui, enfim... Para compensar, decidi postar dois capítulos de uma única vez! Eles abrangerão flashbacks do Doutor Vincent Hall... E também haverá outra novidade, pela primeira vez (e também última) escrevi um capítulo em primeira pessoa, com a total visão de Hall sobre os acontecimentos de sua vida pregressa!

Pra quem estava curiosa sobre certos acontecimentos envolvendo o médico, não se preocupe, todos serão amplamente abordados por aqui... Como o capítulo ficou ridiculamente gigante, decidi dividi-lo em duas partes, ou seja, dois capítulos... Bom, acho que já falei tudo a respeito!

Ah, mas é claro que não poderia me esquecer dela, que tanto me faz feliz com seus dedos de Menta... Você mesma Imperatriz! Dedico esses dois capítulos especialmente a sua senhoria, sempre tão gentil com esse humilde ficwriter, me agraciando com comentários primorosos e críticas super construtivas! Além é claro do fato mais recente, que fez minha cabeça explodir quase que literalmente... All Out War recebeu sua primeira recomendação! Pra quem mal tinha leitoras hahaha...

Muito obrigado Menta, sei que já enchi o seu saco com tantos agradecimentos, mas aqui vai mais um. Sério, fiquei feliz demais por receber esse reconhecimento tão cedo em minha história, principalmente vinda de uma das escritoras que mais admiro nessa minha vida de maluco... Kiitos querida, muito, muito obrigado!

Obrigado também pelo magnífico gif que você fez! Ficou foda demais! Haha... Sério, curti pra cacete, valeu!

Bom, vamos ao capítulo... Espero que gostem! Boa leitura a todas e todos!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/602031/chapter/11

Depois da conturbada madrugada que se estendera até a manhã do dia corrente, Hall ainda sentia-se grogue, mas dessa vez, o whisky texano não era o culpado. As revelações típicas de seriados dramáticos fizeram sua vida se tornar ainda mais caricata do que já parecia, não seria loucura ele imaginar que tudo aquilo não passava de um sonho ruim. O problema é que sonhos não tem a tendência de serem tão longos ou nítidos assim, portanto era melhor acostumar-se com sua nova realidade, ou logo mais seria engolido por ela.

Após assistir pelo vidro da janela a caminhada de Tom, deixando sua casa e se dirigindo a passos firmes para o bosque de Alexandria, Hall tomou na mão um dos copos da cozinha de Cloyd e se dirigiu até uma pequena adega improvisada, onde Heath colecionava algumas bebidas juntamente a sua finada namorada. O rapaz que nunca mais pisara naquele recinto, provavelmente por trazer lembranças que ele agora queria evitar, acabara por deixar os destilados como “herança” ao novo proprietário do imóvel.

Passando brevemente o indicador por diversas garrafas das mais diferentes bebidas, todas empoeiradas e provavelmente mal acondicionadas já que Heath não era nenhum entendedor nesse quesito, Vincent encontrou o procurava. Entre um litro de rum e uma pequena garrafa de cerveja eslovaca, o médico retirou com cuidado uma garrafa de vodka Finlandia, perfeita para o seu atual estado de espírito.

Preenchendo o copo pela metade, e sem gelo para acompanhar, Hall passou a caminhar pela casa enquanto queimava a garganta com o puro sabor do álcool nórdico. A manhã havia acabado de começar, mas o doutor sabia muito bem que não existia horário impróprio para se embebedar, se os problemas se esvaíssem, como o líquido que sumia do copo ao descer por sua garganta, tudo valeria a pena.

Adentrando o leito de Carl, o cirurgião o observou por poucos segundos, estático sobre a cama, ainda em coma induzido e sem perspectivas de alta ou melhora. Ele ainda não entendia como o garoto pudera sobreviver a um ferimento tão brutal, que levara parte de sua massa encefálica e produzira um buraco em sua face. Com toda a certeza o mundo virara de cabeça pra baixo, e “não fazer sentido” parecia ser uma das leis vigentes dessa nova ordem.

Caminhando até o seu quarto, com a garrafa na mão direita e o copo na esquerda, o cambaleante médico, que marcava os seus passos com o som de sua perna de pau por onde passava, sentou-se em sua cama, ainda quieto, ainda pensativo. Esticando o braço e tomando nas mãos a sua velha mochila de camping, que pegara de uma loja a mais ou menos um ano atrás, Vincent abriu um de seus bolsos, e de lá retirou um pequeno caderno pautado, completamente amassado e rasurado.

As páginas velhas, quase que totalmente soltas de seu espiral, guardavam memórias, lembranças de tempos anteriores a todo o caos, de uma época já quase esquecida por todos ali, mas que o médico ainda se prendia quando sentia-se muito confuso e perdido. Olhando todas aquelas anotações, Vincent recostou-se mais confortavelmente sobre sua cama, enchendo ainda mais o copo, e voltando no tempo, sentindo o cheiro de roupa limpa, o som da conversa das pessoas, os bipes dos aparelhos de hospitais e até a loucura de uma sala de emergência. Eram nesses momentos de quase epifania, que Vincent Hall mais sentia-se vivo, eram esses momentos que o afastava de se tornar mais um morto vivo...

*****

Clifton Road 1364, Atlanta – GA – Quatro anos e meio antes do dia zero em Alexandria.

O Emory University Hospital era um dos mais movimentados de Atlanta, principalmente no verão, onde os surtos de doenças que se proliferavam com o calor, faziam o setor de Infectologia se assemelhar a um mercado marroquino. Além disso, havia os residentes e estagiários que faziam ali a última etapa de seus cursos universitários, onde conheciam na prática a profissão que provavelmente iriam exercer pelo resto de suas vidas. Na época, eu era mais um deles.

Caminhando pelo corredor principal, e nos dirigindo até o setor de UTI Neonatal, um grupo de sete residentes em Obstetrícia, onde eu me incluía, seguia os caminhos guiados por nosso preceptor, um experiente cirurgião obstetra, chamado Richard Cooper. O homem de sessenta anos, caucasiano e de cabelos já totalmente embranquecidos, penteados para trás em um topete, demonstrava em suas feições sempre fechadas, ser alguém bem mais sisudo do que era na realidade. Exigente como a maioria dos médicos, gostava de nos surpreender com perguntas durante nossas visitas técnicas, sempre com o objetivo de testar nosso pensamento lógico e velocidade de raciocínio. Enquanto passávamos em frente ao setor de Reanimação, Doutor Cooper resolveu saltear-me com mais um de seus questionamentos relâmpagos.

— Bom... – Estava com as mãos nos bolsos do jaleco, buscando as palavras para melhor responder ao questionamento proposto – Por sua descrição, creio que trata-se de endomiometrite pós-parto... Realizaria uma cultura da loquiação, pediria um hemograma e recomendaria a utilização de penicilina cristalina e gentamicina... – Fiz uma breve pausa, refletindo sobre a continuidade de minha resposta – Sessenta miligramas de oito em oito horas seria o bastante...

O velho médico balançou a cabeça positivamente, mas ainda não parecia totalmente satisfeito.

— E se não houvesse melhora clínica?

Novamente precisei apenas de poucos segundos para iniciar minha resposta.

— O motivo deve ser então a existência de uma coleção purulenta no cavo abdominal... Acrescentaria quinhentos miligramas de metronidazol, também em um intervalo de oito horas.

— Muito bem, Doutor Hall! – O velho obstetra parecia realmente feliz com meu desempenho, achei até que Cooper bateria palmas tamanho era o seu sorriso – Já que está tão afiado assim, porque não conta aos demais residentes o que se fazer no seguinte caso... – Doutor Cooper era um velho sagaz, sabia testar seus alunos, forçando-os a uma espécie de competição interna – Idade gestacional abaixo de trinte e sete semanas, padrão contrátil de cinco metrossístoles em uma hora com duração maior que vinte segundos... Ao toque há a detecção de modificações cervicais e encaixe precoce da apresentação...

Os demais residentes voltaram o olhar para mim, não sabia ao certo se esperando realmente saber o que fazer em um caso como esse, ou apenas torcendo para que eu tombasse em uma resposta errada. Não podia escorregar naquele momento, uma imagem a meu respeito já havia sido formada dentro do Emory, e mesmo não sendo em sua totalidade positiva, gostaria de mantê-la.

— Bom, por sua descrição temos um feto vivo e claros sinais de um trabalho de parto prematuro... Internaria em observação, utilizaria um uterolítico, além é claro de solicitar um EAS e um hemograma... – Olhei para Cooper, ele sorria, tão feliz quanto uma hiena – Após a avaliação dos resultados, acredito que poderia ser necessário a realização de uma ultrassonografia Doppler, para iniciar a partir daí uma corticoterapia...

Estávamos parados no corredor que dava acesso ao setor das UTI’s, o pequeno grupo de futuros obstetras, formavam um círculo, com o mestre em seu centro. Olhando a minha volta, reparei exatamente nas feições de cada um ali. A meu lado direito, Paul Benson, um rapaz de trinta anos, magricela e óculos gigantes em seu rosto fino e pontudo, olhava para mim com certa admiração, ou espanto, na hora não consegui detectar a diferença.

Do meu lado esquerdo, Emily Thompson, ex-enfermeira que resolvera tornar-se médica, parecia alheia às indagações do Doutor Cooper e igualmente desinteressada em minhas respostas. Brandon e Rose, dos quais pouco sabia, apenas o primeiro nome, trocavam conversas ao pé de ouvido um com o outro, provavelmente falando de algo que não dizia respeito ao Hospital Universitário. Dakota Kennedy e um rapaz de cara amarrada, que não havia guardado o nome, também conversavam paralelamente, porém faziam questão de encarar-me, até agora não sei por que motivo. De qualquer forma, isso de nada importa hoje em dia.

A última das residentes fora a única a se manifestar após minha resposta. A garota loira, que ainda não havia chegado aos trinta, demonstrava em seu rosto uma jovialidade radiante, sua aparência em nada condizia com a idade registrada, ela mais parecia uma adolescente, que se não fosse pelo jaleco seria facilmente confundida com alguma estagiária do setor de técnicos em enfermagem.

Sua pele branca e seus cabelos lisos amarrados para trás, deixavam o seu rosto límpido totalmente destacado, os grandes olhos amendoados faziam com que qualquer emoção que a jovem médica estivesse sentindo fosse facilmente detectada por alguém mais minucioso. No exato instante em que ela levantara a mão direita, pedindo a palavra para a contestação de minha resposta, detectei certa ansiedade em seu olhar.

— Diga Julia... – Permitiu o preceptor.

— Longe de mim querer corrigir o Doutor Hall, mas acredito que há outros pontos que devem ser levados em consideração nesse caso proposto... – Sua voz saiu acelerada, um tanto nervosa – Bom... – Ela pigarreia levemente – Se essa paciente demonstrar aumento de glicose no sangue ou uma súbita alta na pressão arterial, a corticoterapia não deverá ser a melhor indicação... – Ela faz uma breve pausa, aparentemente nervosa – Se fosse minha paciente, recomendaria isoxsuprina associado a ampolas de salbutamol ou...

— Dexametasona... – Complementei. O que ela dissera fazia total sentido – Muito bem pensado, Doutora!

Trocamos olhares repentinos, seguidos a sorrisos um tanto envergonhados, percebi que Julia de certo modo tentara não ofender-me ao me corrigir. Doutor Cooper sinalizou para que prosseguíssemos em nosso trajeto, porém, acabei sendo surpreendido quando a mesma moça que me corrigira, chamara minha atenção com um leve puxão na manga de meu jaleco.

— Doutor Hall... – Ela sorriu amistosamente, estendendo a mão direita em cumprimento – Tenho que dizer que é uma honra conhecê-lo!

Respondi ao cumprimento e sorri em seguida, ainda levemente surpreso.

— Não entendo porque seria uma honra, sou apenas um residente.

Ela apertou minha mão firmemente, ainda aparentava estar nervosa.

— Muita gente aqui conhece a sua história, inclusive os comentários têm sido frequentes... Li o seu artigo sobre técnicas cirúrgicas em suturas coronais... Apesar de não ser do meu ramo em específico, achei bem interessante!

Julia referia-se a um fato em específico que acabara trazendo uma atenção que eu tentava de diversas maneiras afastar. Na época referida, fazia exatos dois anos do término de minha residência em Cirurgia Geral. Minha vida inteira fora baseada em estudo e pesquisas, portanto, não satisfeito em apenas seguir uma carreira de cirurgião em Ohio, local onde me formara, resolvi mudar-me para Atlanta, visando o início de mais uma etapa em minha carreira, dessa vez realizando uma residência em Obstetrícia no Emory Hospital.

O fato de um cirurgião formado optar por realizar mais uma especialização, acabara trazendo um foco para mim. Simultaneamente a minhas aulas práticas dentro do hospital, prossegui publicando artigos, um deles citado pela jovem médica que ainda mantinha o mesmo sorriso.

— Obrigado... – Nunca soube como reagir a elogios, tentava me portar da forma mais natural possível – Aqui dentro eu sou apenas um residente, nada a mais ou a menos do que você, Doutora... – Voltei o olhar para o bordado no bolso do jaleco – Alves...

— Apenas Julia, Doutor Hall... Vamos seguir a tradição.

Um hábito comum na relação preceptor-residente era evitar a utilização da terminologia “Doutor/Doutora”, enquanto o médico ainda não houvesse concluído esse período acadêmico. Segundo os mestres, essa era uma forma de trabalhar a diminuição da famosa “soberba médica”, que tanto ronda aqueles que seguem essa profissão. Por ser o único médico dentre a turma de formandos em Obstetrícia que possuía uma residência anterior, Doutor Cooper e os outros faziam questão de chamar-me pelo título, Doutor Hall.

— Já que é assim... – Asseverei – Acho que podemos começar de novo... – Dessa vez eu estendi a mão – Prazer, me chamo Vincent!

Ela sorriu enquanto respondeu a meu cumprimento.

— Julia...

Ignorando completamente o grupo que seguira para as UTI’s, eu e Julia caminhamos exatamente para o lado oposto, nos deslocando para o restaurante reservado aos estudantes dentro do hospital. O relógio ainda sinalizava sete da manhã quando escolhemos uma das mesas e pedimos à atendente já conhecida por nós, dois cafés puros e sem açúcar.

A bebida nos fora servida rapidamente, o local, que estava praticamente vazio, salvo alguns lugares preenchidos por plantonistas que ali estavam desde a noite anterior, parecia excelente para uma conversa. Esse era justamente o nosso objetivo, de forma natural passávamos a nos conhecer melhor.

Os marcantes lábios da jovem médica mexiam-se para cima e para baixo enquanto ela discursava sobre os pontos mais interessantes de minhas duas últimas publicações, que segundo ela foram devorados e analisados em pouquíssimo tempo, tamanho fora o seu interesse. O seu sotaque também chamara minha atenção, não era rústico, inclusive sua pronúncia era admirável para uma estrangeira, mas acabei notando alguns traços latinos em sua forma de se expressar, apesar da aparência quase europeia.

Admito não ter prestado muita atenção em suas palavras iniciais, já que fora completamente fisgado por sua beleza diferenciada. O rosto jovem, a inteligência vasta e a cultura que apreciava em suas frases, na forma como orava sobre os mais diversos assuntos técnicos e científicos, me deixaram em transe por alguns instantes, apenas observando-a.

— Então Vincent... – Ela fez uma breve pausa – Estou falando há um tempão aqui... Diga, como veio parar em Atlanta?

Arrumei as costas na cadeira, deixando-a ereta.

— Bom... Eu sou de Baltimore, e por lá fiz todo o meu ensino regular... Consegui ser chamado por Ohio, onde cursei a faculdade de medicina e posteriormente a especialização em cirurgia geral... – Ela me olhava atentamente, parecia gravar cada palavra que saía de minha boca – Já conhecia a fama da Universidade de Geórgia em apoiar os pesquisadores, então vim pra cá... Consegui a vaga como residente em obstetrícia, e agora pretendo utilizar os laboratórios e o próprio centro cirúrgico do Emory para seguir com as minhas pesquisas... Talvez faça um Ph.D. por aqui também...

Tomei o copo de café na mão direita e derramei o líquido amargo garganta abaixo, voltando a falar logo em seguida.

— Não quero ser grosseiro Julia, mas percebi que não é daqui... Veio de onde?

A moça sorriu antes de sanar minha curiosidade.

— Meu sotaque me entrega, não tem jeito! – Respondeu ela de forma descontraída – Sou do Brasil, me formei na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas nasci no sul, em um estado chamado Santa Catarina, não sei se conhece... Vim pela primeira vez em Atlanta para assistir algumas conferências, consegui uns contatos e, bom... Fui convidada para fazer minha residência aqui... – Ela dá um gole em seu café – Também estou aqui para desenvolver uma pesquisa sobre a influência de questões psicológicas na gravidez ectópica... É Vincent, parece que temos muito em comum...

Julia estava certa, realmente tínhamos muito em comum, e foi com o tempo que passamos a confirmar cada vez mais essa premissa. Virou tradição o café da manhã em dupla durante as duras rotinas dentro do Emory. A brasileira era bastante inteligente e os gostos em comum acabaram sendo o gatilho para que nos tornássemos ainda mais próximos.

Não foi muito difícil convencê-la para conhecer os pubs próximos a Clifton Road, distanciando o nosso papo das questões científicas. Julia Alves gostava de beber, isso era um fato, e hoje tenho ciência de que o meu hábito, que mais tarde acabara desenvolvendo-se quase em um vício, teve início em nossos primeiros encontros. Da Clifton pulamos quase que instantaneamente para a Peachtree, onde eu alugava um apartamento desde que me mudara de Ohio.

Foram seis meses de conversas, ida a bares e cinemas, jantares em restaurantes, sorrisos velados e olhares com segundas intenções, mas no fim das contas, terminamos onde sempre imaginamos que terminaríamos, na confortável cama do trezentos e três, no oitavo andar do Marietta and Sandy.

Nossas personalidades se mostraram completamente diferentes com o passar do tempo, que de um todo acabou não sendo prejudicial. A latina gostava de falar, explanar os seus pontos a respeito de qualquer assunto, como se estivesse constantemente em um debate político. Eu, apesar do sangue de meus antepassados galeses, sempre fui um tanto introvertido, falando apenas quando julgava ser necessário, talvez levando a vida um pouco a sério demais. Foi a forma que aprendi de enxergar o mundo, um lugar hostil, onde uns sempre estão dispostos a derrubar outros.

Na época, acreditava realmente na premissa dos opostos, onde personalidades aparentemente incompatíveis acabavam por se completar. Contudo, eu não sabia ao certo o que estava fazendo ou sentindo, levava a vida sem me preocupar em fazer muitos questionamentos, com medo de que aquilo se esvaísse assim que as primeiras dúvidas fossem levantadas. E foi justamente com o medo de perder tudo, que minha ruína se iniciou.

Peachtree Street 543, Atlanta – GA – Quatro anos antes do dia zero em Alexandria.

— É um belo apartamento Vincent... Realmente tem a sua cara!

Julia estava sobre a minha cama, confortavelmente recostada sobre o colchão, com o corpo nu parcialmente recoberto pelo lençol. Na mão direita ela portava uma garrafa de cerveja, e no olhar, uma atenção minuciosa que parecia avaliar cada metro quadrado do imóvel onde estávamos.

Eu também bebia, naquela altura, já conseguia acompanhar o ritmo da catarinense, apesar de sua resistência etílica ainda ser bem superior a minha. O álcool acompanhava todos os nossos encontros, era como se fosse o processo inicial de nossa relação, algo tão importante quanto nós mesmos.

O rosto jovial da brasileira parecia reluzir a meia luz de meu quarto. A menina mulher estava linda, e naquele momento, ela era só minha, definitivamente só minha. Nossas incompatibilidades acabaram ficando apenas na questão das personalidades, já que nos sentíamos bem quando estávamos próximos, e sexualmente nos completávamos sem nenhuma sombra de dúvidas. O prazer mútuo que nos proporcionávamos já parecia ser suficiente para quebrar todas as demais barreiras.

Ainda assim, certas questões necessitavam ser postas sobre a mesa, algo que me incomodava bastante precisava ser compartilhado. Se a sinceridade não prevalecesse enquanto estávamos apenas nos conhecendo, a dor que viria com a revelação da verdade posterior, poderia ser muito mais ampla.

— Venho trazendo minhas coisas aos poucos pra cá... – Manifestei-me, deitado a seu lado – Ainda tenho assuntos pendentes em Ohio...

Eu tentava falar, mas constantemente era tomado por um sentimento receoso que me impedia de seguir em frente com as palavras. Nunca havia encontrado dificuldades em minha retórica, não até conhecer Julia.

— Eu estava pensando... – Ela voltou a falar, não pareceu perceber minha hesitação – Vamos ter o mês de agosto livre, salvo é claro uma ou outra conferência, mas fora isso teremos apenas compromissos mais sérios no fim do ano, com nossa formatura... – Ela voltou o olhar para mim, suas íris pareciam brilhar – Talvez possamos ir para o Brasil, passar uma semana por lá... Espairecer... Tenho certeza que iria gostar!

Estava completamente indiferente com a ideia de ir para o Brasil, na verdade, a última coisa que passava em minha cabeça era uma viagem internacional. Não tinha problema algum com o país sul-americano, mas naquele exato momento, eu realmente não queria deixar Atlanta.

— Não sei... – Passei a mão em seus platinados cabelos – O que faremos depois Julia? Eu... Você sabe que a partir do ano que vem teremos que nos dedicar em tempo integral com a obstetrícia, não é? Pré-natais, partos, cirurgias de emergência...

Eu não falava mais coisa com coisa, rodeava em floreios, sem conseguir alcançar o ponto principal, sem conseguir contar o que estava preso em minha garganta.

— É claro que eu sei disso! E é justamente por essa rotina que se aproxima que eu quero que fiquemos mais tempo juntos... – Suas mãos tocam o meu rosto de forma carinhosa – Vincent, se acha que estamos indo muito rápido, ou se pensa que estou sugerindo um relacionamento mais sério de forma precoce, é só me dizer... – Julia aproxima-se de mim, seu rosto tenro me admira de uma forma única, de uma maneira que eu nunca me deparara anteriormente – Eu sei que tem alguma coisa te incomodando, pode me falar... Basta falar comigo, doutor...

Eu precisava contar, e ela havia acabado de me dar a brecha necessária.

— Eu... Bom, tem sim algo que quero muito te contar... – Respirei fundo enquanto minha mente trabalhava na busca de palavras – Eu... Recebi uma proposta do Northside em Oakland, eles querem que eu assuma um posto permanente de cirurgião...

Mais uma vez o medo me vencera, mais uma vez eu não conseguira contar o que já deveria ter falado desde que a conheci. Inconscientemente eu cavava ali o meu calvário, e a mentira criada para amenizar minha angústia interna, não seria suficiente para manter-se de pé por muito tempo.

— Isso é ótimo Vincent! – Exclamou ela, empolgada – Você terá um posto permanente e ainda poderá tocar sua pesquisa por lá... – Ela aproximou-se ainda mais de mim, dando-me um leve beijo – Por um momento eu realmente pensei que fosse algo sério, mas... Isso é uma ótima notícia! – Ela sorriu e me encarou por breves segundos – Você está comigo, não está? Você está aqui, não é?

Há momentos únicos na vida de uma pessoa, momentos esses que tornam-se eternos, mesmo com o passar de muitos anos. Digo com toda a certeza, o olhar de Julia naquele instante, focado inteiramente em mim, denotando o quanto ela acreditava em “nós”, nunca sairá de minha memória.

Puxei o seu corpo pequeno e singelo até os meus braços, envolvendo-a em um profundo beijo, que por sua intensidade, substituía qualquer palavra que pudesse utilizar. Retirando o lençol que cobria suas curvas, reposei o meu corpo sobre o dela, utilizando as mãos para explorar todas as suas extremidades, sem pressa, como se o tempo não mais andasse para nós dois. Os seus suspiros, ampliados a percepção do contato de meus dedos com suas partes mais sensíveis, incentivavam-me a prosseguir cada vez mais, desbravando-a e mapeando-a minuciosamente.

Gostávamos daquele jogo, e como bons estrategistas, sabíamos ter paciência, guardando sempre o cheque-mate para o último lance. Contudo, ela também tinha ciência do que fazer quando tomava as rédeas do jogo. Encaixando o corpo sobre o meu, utilizava os lábios para arrepiar-me a cada contato, percorrendo o meu corpo como em uma aula de anatomia, fazendo questão de utilizar o paladar para explorar cada detalhe.

Era um verdadeiro duelo de sentidos, onde cada um deles exercia uma função importantíssima dentro do processo. Ouvir os seus suspiros e gemidos, sentir o calor de seus quadris, observar suas feições se modificando a cada movimento mais intenso, sentir o seu cheiro e o seu gosto. Parecia que estávamos juntos há anos, parecia que não havia mais o que conhecer sobre o outro. Eu não sabia definir o que sentia, mas sabia que não queria perder aquilo.

Seis meses depois... Três anos e meio antes do dia zero em Alexandria.

Estávamos assistindo a um filme em meu quarto quando dirigi-me até a porta por conta de batidas intermitentes. Não imaginei que as coisas aconteceriam daquela forma, olhando de longe, talvez até possa ser visto como uma coisa boa, ou até mesmo como um castigo divino. Mas se milagres não existem, acredito que a regra valha para o contrário.

O relacionamento com Julia estava totalmente estável, éramos o típico casal modelo, pelo menos aos olhos das demais pessoas. Depois de terminarmos a residência, acabamos seguindo caminhos diferentes profissionalmente. A Doutora Julia Alves conseguiu um cargo permanente como Obstetra no Children’s Healthcare of Atlanta at Egleston, tendo tempo para prosseguir com sua pesquisa sobra a gravidez ectópica, que acabara recebendo um incentivo maior do governo.

Eu, em uma tentativa de corrigir o meu erro ao mentir sobre a proposta de Oakland, acabei aceitando um cargo como cirurgião no Kindred Hospital, após ser convidado pelo diretor do lugar, o Doutor Lincoln, que aparentemente ficou bem feliz com minha presença entre o seu quadro de funcionários. Deixei a parte acadêmica de lado, e resolvi ser um médico acima de qualquer coisa, lembrado-me do juramente que fizera anos atrás.

Mas nada disso adiantou, nada disso fora suficiente para impedir que certos fantasmas viessem a tona, e em um dos momentos mais felizes que pelo qual passei, eles resolveram me atormentar, lembrando-me de que nenhuma má ação termina impune. Batendo na porta de meu apartamento, o fantasma tomou forma, e se apresentou diante de mim.

Não houve conversa, na verdade, eu mal tive tempo de entender o que estava acontecendo até ser acertado por um direto no meio da face, estourando o meu nariz e lançando o meu corpo para trás, caindo diante da porta de entrada.

— Levanta! – Exclamou a voz raivosa – Eu ainda nem comecei com você!

Levando a mão direita até o nariz, e sendo amparado por Julia, que em desespero já caía aos prantos ao me ver sendo atacado de forma tão repentina, olhei para os olhos do homem que estava de pé, de fronte a mim. Eu sabia quem ele era, e sabia muito bem o motivo de toda a sua fúria.

— O que tá acontecendo?! – Gritou Julia de forma histérica – Sai daqui ou chamo a polícia seu filho da puta!

As mãos da brasileira envolviam o meu rosto, como se o abraçasse, eu ainda me apoiava no solo, tentando juntar forças para me erguer, mas mesmo assim, não conseguia retirar o olhar do brutamonte diante de mim.

— Ela tá morta... – Sussurrou o homem, seus punhos cerrados tremelicavam, seu rosto parecia ser tomado por um misto de ódio e tristeza – Você sabia que ela estava doente e mesmo assim a abandonou... Você a matou!

As palavras ditas pelo homem caíram diante de mim como um raio sobre uma árvore. Eu não podia acreditar no que ele dizia, aquela frase não podia ser verdadeira. O remorso começou a crescer rapidamente no meu peito, me senti pesado, enojado de mim mesmo, além de totalmente arrependido, mas infelizmente não havia como fazer o tempo regredir. Lágrimas gratuitas passaram a escorrer por meu rosto, Julia me olhou, aparentemente preocupada, ela percebera que havia algo muito sério ocorrendo ali.

— Jason... – Meus lábios tremiam, não consegui falar muito mais do que isso.

— Cala a boca seu filho da puta de merda! – Esbravejou ele, puxando da cintura um revólver – Cala a porra da boca! – O homem chorava copiosamente enquanto apontava a arma para a minha testa – Ela gostava de você... Você sabe que ela gostava de você... Que tipo de rato você é, seu covarde de merda?! – Ele abaixou a arma, voltando-se agora para Julia – Larga esse doutorzinho de bosta enquanto pode... É provável que ele faça com você o mesmo que fez com minha irmã...

O homem retirou-se, tão repentinamente quanto chegou. Batendo a porta e deixando um rastro de angústia para trás, ele partiu, sem concluir o objetivo que traçara, sem conseguir me matar. Julia ajudou-me a levantar, levou-me até o sofá da sala, e limpou o ferimento em meu nariz, fazendo um curativo prévio, tudo isso sem pronunciar uma só palavra. Eu ainda chorava, completamente afetado com a notícia recebida, sem medir de forma alguma o meu comportamento, sem perceber como Julia estava séria.

— Jason... – Criei coragem para pronunciar aquelas palavras, mas sabia que elas saiam de forma tardia, não havia mais como impedir as consequências – Ele é irmão de Annette... Eu a conheci em Ohio, ela também estudava por lá, fazia Veterinária... – Julia me olhava fixamente, seus olhos estavam vermelhos – Começamos a namorar no nosso ano de calouro... Foi tudo bem, estávamos felizes, tudo isso até... – Tentava resumir a história, ao mesmo tempo em que respirava fundo para não voltar a chorar – Ela descobriu que tinha um câncer no hipotálamo...

Fiz uma breve pausa, ao fechar os olhos, um rápido filme começou a transcorrer e diversas lembranças voltaram à tona.

— Nós conseguimos controlar isso, foram seis anos de estabilidade... Ela tinha algumas recaídas, alguns períodos de internação... Mas sempre conseguíamos enfrentar isso... Sempre! Os pais dela, os irmãos, todos aprovavam o nosso relacionamento... Eles sabiam o quanto aquilo fazia bem pra ela! Sempre foi de verdade... Sempre foi...

Julia não parecia mover um músculo, por conta de sua inteligência e sagacidade, acredito que ela já imaginava onde essa história iria terminar.

— Depois de sete anos de namoro, quando eu já estava na minha residência em cirurgia geral, decidi pedi-la em casamento... – Um nó tomou conta de minha garganta, estava difícil prosseguir – Eu sabia o que queria... Eu sabia Julia! Eu sentia que estava pronto para assumir aquela responsabilidade... Me via sendo um bom marido, um bom pai... Planejamos por mais de um ano, ia ser perfeito...

Não consegui me controlar, as lágrimas voltaram a escorrer por meu rosto.

— Ela piorou, precisou ser internada... As coisas mudaram, ela foi induzida ao coma durante quase um mês... Acordou e teve uma melhora, mas acabou piorando de novo... – Voltei meu olhar para Julia que também chorava – Eu fui covarde... Eu fui covarde! Não consegui assumir a responsabilidade... – Tomei fôlego novamente, precisava dar o último suspiro de minha confissão – Eu a abandonei... Abandonei Annette quando ela mais precisou de mim a seu lado... Eu não pude, eu não...

Levei as mãos ao rosto, tentando impedir de forma inútil meu copioso choro. Julia seguiu sem pronunciar uma só palavra, ergueu-se do sofá, dirigiu-se até o quarto, tomando sua bolsa nas mãos e caminhou em direção à saída. Antes de abrir a porta e sair, ela acabou decidindo quebrar a lei do silêncio para me dizer uma última frase.

— Não me procura mais... Eu não quero mais olhar pra você... Não consigo mais olhar pra você!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E então, gostaram?

Bom, aqui em baixo tem um botãozinho que vai levar você até o próximo capítulo... Mas antes disso, deixe um comentário nesse aqui, ficarei muito feliz!

Nos vemos no próximo...



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "All Out War" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.