Carinhoso escrita por Jude Melody


Capítulo 1
Capítulo único




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Leorio recostou-se na cadeira, esfregando os olhos. Estava cansado de tanto estudar, e os pensamentos dançavam de forma desordenada em sua mente. Nomes de ossos e artérias, nomes de doenças e remédios, nomes científicos difíceis de entender e mais difíceis ainda de pronunciar.

Com um suspiro, ele olhou pela janela, perdendo-se na escuridão daquela noite de outono. Ele queria tanto sair dali, correr pelo gramado escuro e deixar que a brisa fresca penetrasse seus pulmões. Queria ter um momento só para si, sem livros por perto, sem aquele zumbido de cansaço em seus ouvidos.

De súbito, pôs-se de pé. Precisa de uma bebida e precisava agora. Talvez o gosto do vinho pudesse acalmá-lo, fazendo-o esquecer o pavor que seu professor inspirava. A prova seria amanhã, e ele estava enrascado. Não estudara metade do conteúdo previsto e estava com sono. Muito sono.

Andando pelo corredor escuro, ouviu os rosnados baixinhos do labrador. Ele provavelmente estava encolhido em algum canto da casa. Dormindo. Chorando em meio a seus pesadelos caninos. Ao passar pelo segundo escritório, os rosninhos ficaram mais altos. Movido pela curiosidade, empurrou a porta e espiou o interior do cômodo.

Ele estava ali, debruçado sobre a pesada mesa de madeira. Na verdade, estava quase deitado sobre ela. O rosto de traços finos repousava sobre o braço dobrado, e a boca estava levemente aberta. Era possível sentir mais do que ouvir sua respiração calma e serena, conforme os ombros subiam e desciam naquele compasso peculiar. Leorio fitava aquela cena com uma sensação estranha no peito.

No canto do escritório, o labrador moveu-se em seu sono, esparramando seu corpo dourado pelo piso de madeira. Ele dormia de barriga para cima e patas traseiras abertas, mostrando ao mundo sua masculinidade. Mas não era para o cachorro que Leorio estava olhando. Era para o jovem que repousava com a cabeça sobre a escrivaninha.

Leorio aproximou-se, curioso. Não era comum Kurapika dormir daquele jeito. Por mais cansado que estivesse, sempre encontrava o caminho de volta para a cama. Apesar de, às vezes, encontrar o caminho para a cama errada. Nessas noites, Leorio apenas o pegava no colo e o deitava no colchão certo, tudo isso para depois se encolher sozinho em seu próprio colchão, perguntando-se como seria se o loiro ainda estivesse ali. Talvez até dormindo com ele.

Suspirou.

Não importava o quanto seus sentimentos fossem sinceros. Eles jamais alcançariam o Kuruta. Eles jamais conseguiriam cativar aquele coraçãozinho que só tinha olhos para a vingança. Como era possível caber tanto ódio em uma só pessoa? Leorio não sabia. Mas ele também não sabia como era possível caber tanto amor dentro de si.

Ah, ele estava se mexendo! Não, apenas dormindo. Kurapika logo ficou quieto de novo, ainda respirando calmamente. Um fio de saliva escapava por seus lábios abertos, dando-lhe um aspecto infantil. Leorio abriu um sorriso. Adorava observá-lo durante o sono. Às vezes, quando o colocava na cama, demorava-se por horas, apenas observando aquele rosto de anjo. Às vezes não. Sempre.

Leorio arranjava qualquer desculpa para olhar seu amigo loiro. Ei, seu queixo está sujo com o molho do macarrão. Espera, tem um inseto no seu cabelo. Está com sono, Kurapika? Acho que seu brinco caiu no chão. Não, acho que me enganei. Ainda está na sua orelha. Aliás, você não usava brinco nas duas orelhas? Não? Só em uma? Ah, esqueci.

Kurapika se moveu de novo e inspirou fundo, como as pessoas às vezes fazem enquanto dormem. O movimento chamou a atenção de Leorio para o livro que o jovem loiro usava como travesseiro. Uma das páginas ficara úmida com a saliva do Kuruta, mas Leorio não sentiu nojo algum. Não, ele não sentia nojo algum da saliva do amigo. Na verdade...

Como seria beijar aqueles lábios suaves? Que gosto eles teriam? Leorio gostava de imaginar que eles tinham gosto de chocolate, pois os olhos do Kuruta eram como chocolates. Doces, belos, que davam vontade de ficar olhando. Mas, às vezes, esses mesmos olhos ficavam vermelhos, como vinho. Nessas horas, Leorio imaginava que o beijo teria gosto de vinho. Doce também. Mas inebriante.

Ah, se o Kuruta soubesse! Se ele ao menos suspeitasse do efeito que exercia sobre o mais velho! Se ele soubesse que seus olhos, seu sorriso, tudo nele fazia com que Leorio se sentisse... Ele mesmo não sabia explicar. Só sabia que arranjava qualquer desculpa, qualquer desculpa mesmo para ter o loirinho ao seu lado por mais algum tempo, por menor que fosse.

Ele fazia de tudo, tudo para ter o Kuruta ao seu lado, mas seus esforços às vezes caíam no vazio. O loirinho não o amava. Não lhe prestava a menor atenção. Estava sempre enfurnado naquele escritório, lendo livros atrás de livros, enviando cartas, fazendo contatos... Mas era pior quando ele saía do cômodo. Pois, quando saía do cômodo, sua vida entrava em risco.

O loirinho ia atrás das aranhas, daqueles monstros que destruíram seu passado. Ele queria destruí-las de volta, pisoteá-las como se fossem insetos. E tantas vezes voltava para casa com uma expressão de derrota no rosto, com olhos tristes. Nesses momentos, o coração de Leorio se apertava no peito, e ele entendia um pouco da dor que o Kuruta sentia, aquela dor que parecia ser grande demais para uma pessoa só.

Pois, quando o loirinho saía de casa, uma parte de Leorio morria. Morria de preocupação, de medo de perder seu grande amor. Ele não dizia isso em palavras, é claro, mas, sempre que Kurapika voltava para casa são e salvo, era como se seu coração acordasse de um coma e desse piruetas em seu peito. Porque seu coração não batia quando o Kuruta estava em apuros.

Mas de que adiantava, afinal? Kurapika sempre ia embora de novo, sempre o deixava para trás. O mais novo sempre conseguia se desvencilhar de suas preocupações, de suas perguntas, de seu amor. Ele nunca tinha tempo para conversas calmas, para uma tarde ensolarada no quintal, para um filme acompanhado de pipoca com leite condensado. Às vezes Leorio até acreditava que sua presença o irritava.

Por que Kurapika tinha de ser tão cruel? Por que não percebia as reais intenções de Leorio? Magoado por esses pensamentos, ele começou a arrumar a escrivaninha, ciente de que o loirinho ficaria furioso quando acordasse. Ele odiava quando Leorio mexia em suas preciosas anotações.

Ao organizar aqueles volumosos papéis, um desenho chamou a atenção do mais velho. Era um esboço simples de dois cilindros e de duas esferas perfeitas que pareciam flutuar no limbo. Leorio estremeceu. Sabia o que era aquilo. Sabia bem demais. Via aquilo sempre que o loirinho ficava com raiva e o fuzilava com olhos de vinho.

Eram os olhos. Os olhos que Kurapika perseguia quase tão intensamente quanto caçava as aranhas. Os olhos que ele juntava no porão da casa, sempre com o rosto marcado por lágrimas. Os olhos que ele pretendia enterrar em sua terra natal, como uma homenagem a todos aqueles que morreram nas garras das aranhas.

Leorio levou as mãos ao rosto, sentindo-se um monstro. Como podia ficar ressentido com o loirinho quando a dor dele era infinitamente maior que a sua? Kurapika perdera tudo. Família, amigos, lar... Até a própria identidade! E Leorio? Leorio tinha tudo. Pois, com o loirinho a seu lado, não precisava de mais nada. Então, por que se sentia tão triste?

Ele se sentia triste porque não era correspondido, porque não tinha a força e a coragem necessárias para defender seu amado de tudo e de todos. Ele apenas ficava em casa, de braços cruzados, olhando ansiosamente pela janela, esperando a volta do Kuruta. A qualquer momento, pensava, a qualquer momento ele vai voltar, a qualquer momento eu o verei subindo a colina.

Às vezes o loirinho voltava ferido. Às vezes voltava chorando. E, embora o coração de Leorio sangrasse nesses momentos, ele também ficava um pouco feliz. Pois se sentia útil. Aqueles momentos de dor e solidão eram os únicos em que o Kuruta se entregava totalmente a Leorio, como um cachorro que confia seu próprio destino a seu dono. E, de alguma forma, Leorio sentia uma alegria profunda nessa dor.

Sim, ele fazia o seu melhor. Cuidava dos ferimentos. Fazia carinho na nuca do loirinho enquanto ele chorava compulsivamente em seu ombro. E continuava a fazer carinho mesmo depois de ele se perder no sono e repousar sereno em sua cama. Leorio acariciava aqueles cabelos dourados, aquele rosto de anjo, aqueles lábios de chocolate, de vinho, ou seja lá qual fosse o gosto.

Um latido baixo despertou Leorio de seus devaneios. Kurode estava deitado de barriga pra baixo e agora e observava o dono com a língua de fora. Leorio apenas fez “shiu” para que ficasse quieto e voltou sua atenção para o jovem loiro que voltara a babar sobre o livro de capa dura.

Com todo o cuidado do mundo, pegou-o no colo, aninhando aquele corpo pequeno contra o seu. Kurode, obediente, abaixou a cabeça e acompanhou o mestre com olhos mimosos enquanto ele saía do cômodo. Leorio parou no meio do corredor e fitou as duas portas à sua frente. A da esquerda levava ao quarto do loirinho. A da direita levava a seu próprio quarto. Para onde deveria ir?

Hum, fez o mais novo, movendo a cabeça. Seus cabelos dourados roçaram a camiseta branca de Leorio e, por um segundo, ele fez menção de entrar à direita. Mas seu amor era fiel de verdade, e ele jamais faria algo para magoar o pequeno anjo que tinha em seus braços. Com um suspiro, entrou no quarto da esquerda.

Rápido demais, o Kuruta estava na cama. Leorio sentiu os braços estranhamente vazios. Gostava de sentir o corpo do loirinho contra o seu. Gostava de ouvir sua respiração tão perto de si. Gostava de admirar seus lábios finos e seus cabelos dourados e seus cílios longos que emolduravam os olhos que tanto amava. Os olhos chocolate. Os olhos vinho. Os olhos de seu anjo.

Leorio foi tomado por um pensamento insano. Será que... lá no fundo, bem no fundo, o loirinho o amava também? Afinal, era sempre a Leorio que ele procurava quando as coisas não davam certo. Não apenas para receber seu tratamento médico, mas também para dividir as mágoas de uma missão fracassada e o pesadelo de ser fitado por olhos vazios e sem vida dentro de cilindros de vidro.

Talvez, apenas talvez, os sentimentos de Leorio fossem correspondidos, mas o loirinho estivesse tão envolvido em sua própria missão que não tinha tempo para outros sentimentos que não raiva, ódio e sede de vingança!

Mas isso não era o bastante. Leorio queria que o Kuruta o amasse por completo. Queria que um pouco daquele ódio cedesse espaço para um sentimento mais puro, como o amor incondicional que Leorio sentia pelo jovem indefeso que observava. Com um sorriso no rosto, aproximou-se e afagou aqueles cabelos dourados, pensando em como seria maravilhoso se o loirinho o amasse também.

As lágrimas que molhavam suas camisetas quando o Kuruta chorava em seus ombros. A saliva que umedecia seus dedos quando ele tocava aqueles lábios desejosos. O olhar intenso que lhe dirigia sempre que ele tentava impedir o loirinho de partir em mais uma missão suicida, tudo isso poderia esconder alguma coisa, alguma coisa da qual nem o próprio Kuruta suspeitava.

Alguma coisa como o amor.

Leorio, dizia o Kuruta, sempre que ficava bravo ou triste. A simples mudança de entonação fazia os pelos dos braços do mais velho se eriçarem. Ele está me chamando. Ele está me chamando! Acho que precisa de mim! E às vezes precisava. E essa necessidade fazia Leorio se sentir mais útil. Pouco lhe importava que perdesse preciosas horas de estudo cuidando do loirinho. Ele o amava, e nada era mais importante do que isso.

Mas não seria maravilhoso se o Kuruta o amasse também? Se, em vez da saliva em seus dedos, pudesse ter seus lábios por inteiro, pudesse ter o gosto inebriante do vinho, a doçura do chocolate? Se, em vez das lágrimas de dor e tristeza, pudesse ter o olhar cheio de calor e paixão, cheio daquele sentimento que ninguém consegue explicar, mas todos conseguem compreender?

Esse era o lado mais cruel de seu amor. O desejo que o acompanhava. O desespero de querer ser correspondido. A mágoa de não receber o mesmo carinho que ofertava com tanto amor, com todo o seu ser. Mas ele era persistente. Não desistia fácil. Sabia que poderia conquistar o coração do loirinho aos poucos. Sim, ele sabia.

Afinal, não era ele quem Kurapika procurava quando ficava ferido? Fisica ou emocionalmente? Não era ele quem Kurapika abraçava com força sempre que não suportava a própria dor? Não era ele quem estava sempre por perto, levando o loirinho para cama certa, fazendo-lhe curativos e ouvindo seu choro compulsivo e profundo?

Sim. Sim! Ele era correspondido! Tinha certeza disso! Só precisava esperar. Ser um pouco mais paciente. Porque, quando Kurapika olhava no fundo de seus olhos, ele via uma pequena chama. A mesma chama que queimava dentro de seu peito, que fazia seu coração bater. A chama que era o sentimento mais lindo de todos e que às vezes ficava tão grande que Leorio não sabia como guardá-la em seu peito.

Ele inspirou fundo, ainda olhando o seu amado. O seu anjo. O seu loirinho. Estava mais perto agora. A apenas alguns centímetros dos lábios que tanto desejava. Estava a ponto de desvendar o gosto deles quando percebeu um movimento leve como o bater das asas de uma borboleta. As pálpebras de Kurapika. Ele estava acordando.

— Leorio? – perguntou, sonolento – Onde eu estou?

— Na sua cama. Está cansado. Tente dormir. – disse Leorio, arrumando os cabelos loiros de Kurapika para que não caíssem em seus olhos.

— Hum. – ele murmurou, embriagado em seu próprio sono – Obrigado.

Aquelas palavras fizeram o coração de Leorio se aquecer de paixão. Então, Kurapika sabia! Kurapika sabia que era ele quem o levava para cama praticamente todas as noites! Ele sabia...

— Boa prova amanhã, Leorio.

— O quê?

Ah, claro. A prova da faculdade. Leorio pensou em agradecer, mas o Kuruta já voltara a dormir. Seu peito subia e descia lentamente com a respiração, e os lábios estavam fechados desta vez. Sua expressão estava serena. Olhando para ela, Leorio sabia que nenhum pesadelo assolava a mente de seu amado. E isso o alegrava.

Os lábios tinham gosto de vinho. O mesmo vinho que Leorio mantinha guardado nos fundos da cozinha e que buscava sempre que os pensamentos não o deixavam em paz. Então, era verdade. O olhar do loirinho se refletia em seus lábios. Ou, talvez, ele apenas tivesse o mesmo hábito que Leorio. Talvez também buscasse na bebida a fuga para seus próprios medos. Ah! Leorio preferia a primeira opção.

Com a chama ainda queimando em seu peito e a certeza de que os sentimentos do Kuruta eram muito mais profundos do que ele suspeitava, Leorio retirou-se do quarto. Não precisaria da bebida naquela noite. Bastava-lhe a sensação de que no fundo, lá no fundo, ele era correspondido.


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