Menina escrita por Lalye


Capítulo 3
Capítulo 3




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A minha vida era uma casa na beira de um penhasco, sustentada por estacas, na boca de um precipício. Dia a dia uma estaca se quebrava, e eu via o abismo me engolir um pouco mais.

Antes que ele me engolisse por completo, eu resolvi dar mais uma chance – e só mais uma – para minha vida. Eu conheci Charles. Ele era legal, amigo, companheiro, preocupado. Ele poderia ser minha chance. Ele queria ser minha chance.

Eu dei corda, eu acabei conseguindo gostar de alguém, e parecia que finalmente eu ia conseguir construir estacas, em vez de deixar a casa cair. Charles me fazia esquecer um pouco o frio que eu sentia em mim mesma. Ele tornava as conversas com Syaoran quase agradáveis, o mundo era suportável enquanto eu tinha Charles por perto. Passei a acreditar – junto com meu psicólogo e meu psiquiatra – que eu ainda poderia me recuperar da morte da minha mãe, da falta de sentimentos que me abateu. Mais pessoas da China passaram a me ligar, querer me visitar na Inglaterra e conhecer Charles. Como eu havia imaginado, Syaoran contou para todos sobre meu relacionamento. Ele parecia mais feliz do que qualquer outro. Ele, quase mais do que o próprio Charles, me fez casar.

Eu me casei na China, como era a tradição. No meu casamento foi toda a família do Charles, e se deram muito bem com a minha família. Syaoran, Sakura e a família linda deles estava lá. Meus pequenos primos em segundo grau eram maravilhosos, e eu me senti quase mal por não ter tido tanto contato com eles. No final das contas, estar na China me despertou mais daquele sentimento que eu experimentei quando minha mãe morreu – um remorso por estar longe de casa. Chorei muito na minha noite de núpcias, e Charles não conseguiu entender o porquê. Mas ainda assim foi muito carinhoso comigo. Eu me senti sortuda, pela primeira vez na vida, por quem estava do meu lado, efetivamente. Finalmente eu não via Syaoran naquele lugar, não via uma ausência materna, não via um vazio estranho. Eu via Charles, e isso era o mais reconfortante que eu pude sentir na minha vida.

Passamos três meses na China, e nesse tempo todo, Syaoran estava lá. Me lembrei porque gostei tanto dele antes, porque ele era um bom homem, uma boa pessoa. Voltei a ter por ele um sentimento bom, claro, limpo, puro! Conversei muito com a Sakura, e isso não foi mais ruim. Brinquei com os filhos deles, e pela primeira vez, me dei bem com toda a minha família. Todos pensavam a mesma coisa: Charles fazia muito bem para mim. Eu teria uma vida melhor a partir de agora. Eu poderia ser feliz.

Depois que voltamos da China para Londres, vivemos juntos durante um ano e meio. E então a vida resolveu mostrar para mim que não importa quantas estacas você construa para manter sua casa, a força da Fortuna é mais forte, da sorte, e do revés. Enquanto você constrói sua sustentação, ela muda suas estruturas. Charles havia se tornado a minha estrutura principal, a última que me segurava ao penhasco. Eu só não havia notado bem, que as outras já não existiam, e que eu não havia as construído se não junto à grande estaca que era o Charles. Se ele se fosse...

Foi realmente terrível. Charles morreu em um acidente de carro, no meio da madrugada. Eu nem me lembrava de ele ter saído da cama! Mas ele estava há quilômetros de casa, junto com uma mulher que nunca foi identificada. Eu tive dificuldades em compreender o que havia acontecido. Na verdade acho que eu nunca aceitei bem a ideia de ele ter morrido, pois eu nunca consegui associar aquele cadáver com o Charles com quem eu era casada. Ele se tornou um mistério que eu nunca tentei desvendar. Várias pessoas da minha família vieram no enterro, inclusive Syaoran, dessa vez sozinho, para me oferecer apoio. Todos estranharam minha postura. Eu não conseguia chorar. Eu não pude. Não pude chorar, porque não entendi, não entendi o que havia acontecido.

Syaoran ficou na minha casa, e tentou me dar apoio e cuidar de mim. Ele me ajudou a me livrar das coisas de Charles, e me ofereceu a casa dele para eu tirar umas férias. Eu recusei, disse que tinha que ir trabalhar. A minha indiferença quanto à morte de Charles parecia machuca-lo. Mas algo em mim tinha voltado, e era a visão do abismo. A minha sustentação foi embora, e então eu pude ver que o abismo realmente me queria para si outra vez. E eu não sabia se havia razões para me negar a ele dessa vez.

Antes de voltar para o Japão, Syaoran me colocou de novo no tratamento, e me fez prometer que não faria besteiras. Bem, eu tinha quase quarenta, não fazia mais sentido fazer besteiras. Ele nunca ficou realmente tranquilo com a minha situação, e depois de uns meses de apatia ele conseguiu com que eu pegasse um atestado muito longo, e me fez tirar umas férias no Japão, me levando quase à força. Eu não gostava mais de ficar perto de Syaoran, o sentimento por ele havia voltado a ser estranho, e acabava me lembrando não só de Charles, mas de meu sentimento de menina. Eu me peguei pensando mais de uma vez como teria sido minha vida se Syaoran nunca houvesse saído da China, para início de conversa. Mas eu repudiava esses pensamentos, quando os notava. Até que eu encontrei uma brecha mental. Teria dado tudo na mesma coisa. Porque com Sakura ou sem Sakura, Syaoran nunca me amaria.

Minha depressão foi para outro nível, e ninguém mais via esperança em mim. Nem os filhos de Sakura e de Syaoran conseguiam ficar perto de mim por muito tempo. Eu jogava videogame com eles, mas depois de um tempo eles se assustavam com a maneira que eu jogava com os olhos vidrados na televisão como se eu não pertencesse a esse mundo. Sakura tentava usar alguns dos poderes das cartas para me reanimar, e o próprio Kero se mostrou empenhado em fazer alguma coisa mas eu mesma não via soluções nem motivos na minha vida. O Japão só me fazia lembrar do início dessa jornada sem sentido. Eu olhava para a Tomoyo e via seu vestido molhado das minhas lágrimas de garotinha. Eu não podia mais ficar ali.

Eu consegui voltar para a Inglaterra, consegui voltar pro meu trabalho. Passei mais cinco anos à base de remédios, para dormir, para não pensar em besteiras, para qualquer coisa. Meus amigos da Inglaterra pouco a pouco desistiram de mim também. Um dia as pessoas se cansam. O único que não se cansava era Syaoran, e ele me visitava com frequência, mudava a decoração da minha casa, comprava roupas comigo. Tentava me ajudar de forma tão intensa que me magoava, que me fazia sentir terrível por ser como eu sou. E eu era, nada mais, que uma casa prestes a cair de um precipício.

Pouco a pouco, eu passava a acreditar que eu era o precipício.


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