Juntos Contra o Clichê escrita por VILAR


Capítulo 24
Quando a linha que separa a qualidade do defeito é fina demais


Notas iniciais do capítulo

Feliz ano novo, meu povo. Completamente atrasado.

Enrolei mais do que deveria, admito. O capítulo era para ter saído há alguns dias, já que não fiz nada de "trabalhoso" nas comemorações de fim de ano, como viajar.
Demorei um bocado porque fiquei pensando em como adicionar tantas coisas no capítulo sem parecer uma loucura desgovernada e cansativa.

O resultado foi esse a seguir e, bom, fiquei satisfeita.

Grande beijo,
Enorme abraço
E curtam os problemas da querida Sophie.

Feliz 2017 à todos!



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— Madrinha, você...

— Eu vou agarrar seu rosto e arrastá-lo pelo asfalto por todo caminho até Leões, sua peste! – ameaçou caminhando em minha direção. Meu corpo tremeu só de pensar na possibilidade. Leões, onde nasci, era pelo menos cinco horas de distância.

E os próximos minutos foram dedicados a inúmeras ameaças da mulher em histeria por ter descoberto que eu não estava aproveitando a cidade da maneira correta. A madrinha andava de um lado para outro, a resmungos, ignorando todos ali que não fosse eu. Parecia que a qualquer minuto pularia em meu pescoço, e isso me fez encolher os ombros.

Pouco depois que me alcançou e o carro vermelho, que a trouxe, estacionou um pouco mais a frente, a pessoa que agora caminhava em nossa direção deixou Gabriel, Maria Luiza e eu embasbacados. Oswaldo. Diretor da nossa escola.

O senhor com as sobrancelhas franzidas não hesitou em se colocar ao lado da mulher que cuspia fogo em todas as direções e agarrar seus ombros desnudos, afagando carinhosamente enquanto murmurava para se acalmar. O ato me deixou ainda mais chocada.

Quando fui chamada a diretoria, logo no primeiro dia de aula, conheci o senhor de bigode e cabelos acinzentados. Oswaldo forçava para parecer sério, mas estava claro que ele não sentia tanta raiva de mim por ter começado duas semanas depois. Meu responsável foi chamado e, como o único parente que tinha na cidade era minha madrinha, logo estávamos nós três trancados na sala chique. Agora, raciocinando um pouco mais sobre isso, Oswaldo já havia me repreendido sobre o ocorrido. Eu havia contado que anotei o dia errado imediatamente quando o encontrei, entretanto fez questão de chamar meu responsável mesmo assim. Oswaldo mantinha um olhar abobado em minha madrinha durante a uma hora que ficamos ouvindo seus sermões fingidos e, assim que saímos, foi fácil para mim deduzir que ele estava completamente apaixonado. Madrinha não negou, porém também não falou sobre retribuir o sentimento.

Apesar de saber sobre os sentimentos do diretor, vê-lo tocar em minha madrinha foi algo novo. Na reunião ele sequer deixou sua cadeira para cumprimenta-la. A provável intimidade deles me fez juntar as sobrancelhas. Não escutei nada sobre a amizade de ambos da mulher que cuspia fogo a minha frente.

— Estava esperando pela senhora. – interrompeu Oliveira, que havia me esquecido que assistia toda a cena.

Esperando por ela?

— Sim, claro. – madrinha virou para trás, finalmente abandonando meus olhos e controlando a voz. – Peço desculpas pelo atraso. O trânsito dessa cidade é o inferno. – coçou a testa com as longas unhas vermelhas ao mesmo tempo em que deixava o estresse sair do corpo em forma de suspiro.

Um pouco mais calma, retirou as mãos do amigo de seus ombros. Murmurou alguma coisa que não consegui entender pelo falatório do mundo a nossa volta e trocaram um sorriso reservado.

Com os braços agora livres, enfiou uma das mãos na bolsa que carregava, procurando por algo desesperadamente. Depois dos segundos torturantes sobre o que poderia ser, ao vê-la retirar o celular e discar para alguém me fez tremer. Não poder ser.

Senti uma cutucada leve na costela.

— Ela vai ligar para sua mãe? – indagou a voz baixinha de Malu próxima ao meu ouvido.

Engoli em seco.

— Pior. Está ligando para o meu irmão.

E, em menos de um minuto, minha madrinha realizou a proeza de deixar a pessoa do outro lado da linha a par de todos os acontecimentos – estes que nem sabia que ela tinha conhecimento.

Ao estender o celular em minha direção lhe lancei um olhar de cachorro abandonado. Qualquer coisa seria melhor do que ouvir meu irmão me dando uma bronca. Preferia acompanha-la de volta para a delegacia e aguentar seus olhares fatais por todo tempo. Mas madrinha insistiu, empurrando o pequeno aparelho a minha frente. Sem escolha, aceitei o meu destino.

A tortura está prestes a começar.

— Que saudade, Marcos...

— Você está completamente maluca?! – sua voz robótica aos berros quase me deixou surda. Pude observar, de soslaio, todos os meus amigos presentes se retraírem com a altura da voz. E nem estava no viva-voz. – Onde você estava com a cabeça de se meter em uma merda dessas? Caralho, Sophie! – Precisei afastar um pouco o aparelho da orelha para continuar com a audição saudável.

— Eu fui ajudar um ami...

 – Não interessa! – me interrompeu, frustrando meus planos de convencê-lo que não tinha feito nada de errado antes de começar seu famoso discurso. – Não deixei claro para você não se meter mais em brigas? Porra!

— Me deixa expli... – tentei mais uma vez.

— Isso é perigoso, Sophie! Ainda mais não tendo ninguém aí para ajudar caso dê merda. Você sabe disso. Quantas vezes mais vou ter que falar? Para de se arriscar sem pensar direito antes! – ótimo. Estou ouvindo pela milésima vez o discurso “faça o que eu digo, não faça o que faço” do meu irmão. – Brigar nem sempre é a solução, ok? Com certeza você poderia ter pensando em alguma coisa diferente, sei lá.

— Marcos, para de ser cabeça-dura e me escuta! – gritei, minha voz sobressaindo sobre a sua.

Meu irmão mais velho se metia em mais brigas do que eu. Socar quem mexia com a nossa família era o seu passatempo predileto. Então, por sempre estar fazendo por outras pessoas, se eu contar que me arrisquei para ajudar um amigo ele certamente entenderá o meu lado. Poderá até mesmo me ajudar a acalmar a nossa madrinha.

— Quem está sendo cabeça-dura é você! – rebateu.

— É você!

— Você!

— Você!

— É uma discussão de idiotas. – pude ouvir a voz decepcionada do Gabriel ao meu lado.

Continuamos rebatendo que estava sendo cabeça-dura por mais alguns minutos. Pude observar Leonardo passando os dedos pela face e trocar o peso de um pé para outro, inquieto com a nossa discussão. Pedro parecia pronto para se jogar no asfalto. Gabriel escondia a face com as mãos e Malu apenas observava tudo em silêncio.

Cansada de não chegar a nenhuma conclusão, gritei:

— Fiz isso para ajudar um amigo! – finalmente deixei meu irmão quieto por alguns segundos.

As pessoas a minha volta pareceram comemorar o fim da troca de “você”. Consegui até ouvir um “graças a deus” perdido.

— Amigos? Tem apenas um mês que você está aí. Não é tempo o suficiente para fazer amigos. No máximo são uns conhecidos que não devem te suportar e você deve ter uma queda por um deles.

— Eles são meus amigos, sim!

— Não são, não!

— São!

— Não são!

— Puta que pariu, de novo não! – Gabriel gemeu contra a palma da mão, abafando sua voz.

O principal motivo de considerar as discussões com Marcos uma verdadeira tortura é que nunca chegamos a uma conclusão. Geralmente concordamos com tudo, dos mais variados assuntos, agora quando discordamos... uma dor de cabeça. Todos em casa se afastam quando começamos a discutir sobre alguma coisa. Já desistiram de tentar nos impedir ou de nos convencer a compreender o outro lado.

Nossa troca de frases foi interrompida por uma voz feminina do outro lado da linha. Uma voz que conheço bem. Ela pedia, distante, para saber o que fazia Marcos gritar tanto.

— Sara, faça o Marcos entender que tempo não define amizade! – falei um pouco mais alto, para que minha irmã mais velha pudesse ouvir bem.

Sara é mais velha que Marcos três anos. Na ausência da mãe, era ela que colocava ordem na casa, então sempre a obedecíamos para não arrumarmos problemas. Sara é calma e sensata, extremamente parecida com a mãe de aparência e personalidade. O problema é quando fica com raiva. Isso, de alguma forma, puxou a madrinha, presente frequentemente em sua fase de desenvolvimento de personalidade.

Marcos contou rapidamente o que estava acontecendo para Sara, que acabou concordando com ele. Agora o telefone estava no viva-voz e eu estava aguentando dois irmãos surtando pelas minhas atitudes.

Não consigo entender o lado deles. Já deixei bem claro que fiz isso por um amigo, o que deveria me ausentar de sermões. Por amigos se faz tudo, certo?

— Aposto que eles nem gostam de você, Sophie. Você é ingênua, uma verdadeira tapada quando se trata de confiar nas pessoas. Devem estar só te usando. – argumentou Sara. Marcos concordou.

— Claro que não! Somos melhores amigos.

— E quem impôs isso? Você, não foi? – continuou minha irmã, ciente de todos os casos com amigos que já levei até seu ouvido.

Devo concordar que meu histórico com amizades não é dos melhores, mas essa onda de má sorte ficou para trás. São pessoas novas em uma cidade nova, certamente éramos melhores amigos. Mantive-me firme em discordar.

— Isso mudou, Sara. Eles são meus melhores amigos pra valer!

Sara suspirou. Marcos tomou o celular para si.

— Você diz isso todas as vezes!

Leões, pequeno munícipio que passei dezessete anos da minha vida, era um lugar complicado por ter cerca de oito mil habitantes. Todos se conheciam; até mesmo todas as suas qualidades e defeitos faziam parte da lista mental dos habitantes. Quando souberam que eu, Sophie, integrante da família Novais, era alguém que acreditava que não existiam pessoas más ao meu redor, hora ou outra garotos e garotas da minha idade se aproximavam de mim querendo amizade. Alguns eram irmãos mais novos de outros garotos que queriam vingança contra Marcos e esperavam atingi-lo por mim, outros apenas esperavam outra brecha para dizer o que achavam verdadeiramente da gente. Mesmo com tantos casos que não acabaram bem, não pretendia desistir. Tinha conseguido dois em Leões, com certeza consegui aqui também. Meus três novos melhores amigos são confiáveis.

Foi difícil convencer meus irmãos. Dez minutos depois, cansada de sentir o aparelho fervendo queimando minha orelha, Sara abandonou a chamada. Mandou-me um beijo e um abraço, mas não me esperou retribuir. Marcos continuou insistindo sobre o quanto estava errada, o que nos deixava estressados. Ambos estávamos aos gritos no celular quando madrinha deixou a delegacia.

Vi em sua saída minha salvação, já que certamente tomaria o celular para si e a conversa nada agradável com Marcos finalmente teria fim. Aproximou-se de mim rapidamente, porém Oswaldo, que até então observava distante, a abordou, impedindo sua aproximação. Não compreendi o que falavam por culpa dos gritos de Marcos, que eu nem fazia questão de retribuir mais. A relação questionável que madrinha e Oswaldo mantinham estava mais interessante.

— Madrinha chegou. Tchau. Beijos para todos. – e desliguei. Com certeza ouviria as reclamações na próxima vez que nos falarmos.

Quando me aproximei dos dois, sem esconder o medo que sentia, a situação ficou sufocante. Nenhuma de nós duas falou alguma coisa. Contentava-me em olhar para a calçada irregular ao mesmo tempo em que madrinha me lançava o seu melhor olhar decepcionado. Oswaldo olhava para mim com os olhos pequenos semicerrados, tornando-os ainda menores. Não faço a menor ideia do que isso poderia significar. Talvez um misto de decepção, por uma aluna da sua tão prestigiada escola ter se metido em problemas, e estresse, por ter feito seu amor que havia pensado ser platônico ter passado por tal coisa.

Uma eternidade se passou até que resolveu quebrar o silêncio que me matava aos poucos.

— Vamos resolver isso em casa. – o salto voltou a bater contra o concreto, sem me esperar.

Apressei-me a protestar já que, bem, de certo modo tinham pessoas que ficaram tão preocupadas quanto esperando por um agradecimento apropriado meu.

— Espera, madrinha... – pedi, olhando para suas costas e para os meus amigos ansiosos. – Eu preciso falar com os meus amigos antes...

E suas passadas pararam. Virou-se para trás o mais lentamente possível, como em um filme de terror, só que assustador o suficiente para dar medo em plena luz do dia.

— Não vou esperar nada, Sophie. Vamos embora agora. – continuou olhando para mim, me esperando mexer.

E foi o que fiz, sem reclamar mais. Corri três passos, fazendo-a voltar à caminhada, e olhei para trás, parando por um breve momento. Observei a expressão preocupada de Malu e Gabriel, o que me partiu o coração. Queria ter agradecido à presença deles apropriadamente, dá-los mais um abraço, confessar o quanto tremi só de pensar em acabar atrás das grades. Mas não podia. Não agora. Para não deixa-los a esmo, acenei, exibindo um sorriso reservado, sibilando um “até mais”.

 

***

 

Estou há pelo menos duas horas sentada no sofá escutando a bronca sobre o quanto era irresponsável que merecia. Não posso concordar que estava sendo injustiçada, eu realmente merecia tudo o que estava ouvindo. Menti várias vezes e ainda quebrei a promessa que fiz com Marcos, a de não sair por aí surrando pessoas. Traí a confiança da madrinha e de todo mundo lá em casa, já que a história certamente ficará conhecida. Estava me sentindo horrível.

O risco de ser obrigada a voltar a minha terra natal é enorme, o que madrinha fez questão de frisar a cada cinco minutos. Apenas abria a boca para implorar para continuar aqui, mas ela não parecia satisfeita.

Já me aceitei como a pior pessoa do mundo quando madrinha sentou ao meu lado, finalmente saindo da posição que a permitia me ver como uma formiga perdida no seu sofá.

Aos suspiros, apoiou os cotovelos nas pernas e tampou a face com as mãos. Não conseguia adivinhar o que poderia estar passando pela sua cabeça. Ficou assim por longos minutos até voltar a preencher a casa com sua voz.

— O que eu faço com você, Sophie? – abandonou a raiva, agora sua voz estava carregada de duvida e decepção, partindo o resto que sobrou de mim.

Não respondi. Não tinha o que falar.

Odiava não ter o que falar.

— Gangues de cor? Sério? – seus olhos voltaram a encontrar os meus. A transparência da sua dor, agora sim, terminou de arrasar o resto de mim.

A impossibilidade de nunca mais receber sua confiança me assustou. Não quero isso. Óbvio que não.

— Só queria ajudar um... amigo. – o soluço e a voz trêmula atrapalhou a determinação que queria passar. Nem eu estava acreditando em mim mais, apesar de ser exatamente isso que aconteceu.

— E desde quando você fez amizade com um líder dessas gangues, Sophie? Com quem você tem andado?

Imediatamente abri os lábios para contar toda a história. Finalmente despejar tudo o que estava me incomodando. Parar de omitir detalhes importantes para a pessoa que dividia o teto, que amava. Que era minha família.

Mas os fechei.

Madrinha conheceu Sandra, tia da má-influência que me arrisquei para proteger naquele beco. A insegurança de ela tomar como providência contar tudo para Sandra me fez hesitar. Não que eu queira acobertar essa loucura que Leonardo se envolveu, eu mesma teria contato à sua tia se não achasse que isso poderia estragar a relação de ambos, que pareceu tão boa em seu aniversário. Saber esse tipo de coisa por terceiros deixaria tudo pior. Eles poderiam nunca mais se falar.

E eu sabia disso muito bem.

A pessoa mais indicada para abrir o jogo com Sandra seria Gabriel, seu filho e primo do Leonardo, diretamente ligado à família. O problema é que ele não parece disposto a correr o risco de perder o contado com o primo. Se eu falasse mais com ele a respeito, talvez chegássemos a uma conclusão.

Madrinha voltou a suspirar quando percebeu que ainda escondia coisas. Parou de olhar para mim, claramente cansada da minha desobediência.

Senti uma fincada no peito. Mais omissões.

— O que você sabe sobre essas gangues de cor?

Sabia de muitas coisas. Sei que eles são muitos, cada uma tem seu lugar de encontro, vivem arrumando brigas e... nada. Não sei mais nada. Nada.

A realidade me atingiu como um soco.

Nada.

Não sei se estão envolvidos com tráfico, armas... ai, céus, nem se participam de tiroteios. Assassinatos?

Cobri a boca com as mãos trêmulas.

São gangues, não são? Gangues fazem isso, não? É uma espécie de máfia, não é?

Eu não fazia a menor ideia. Tudo que aprendi sobre gangues veio do mundo fictício, que sempre foi bastante romantizado. Transportei para a realidade, confiando seriamente assim em qualquer lugar.

Imaginar Leonardo envolvido com tudo de errado me embrulhou o estômago. Quando o abordei sobre, há um mês, decidiu não falar sobre nada relacionado. O máximo que descobri foi através de Jô, que apenas me informou sobre os nomes e o como a Alvorecer Rubro agia, sem citar nada disso.

Só hoje, um mês depois, percebo o quanto fui ingênua. Uma perfeita idiota, na verdade.

Ah, bem, posso estar enganada. Não, claro que estou. Se usassem armas ou, sei lá, fossem loucos o suficiente para matar uns aos outros, teria visto quando resgatei Leonardo quando três homens da Noite Prateada o cercaram no beco. Os dois lados pareciam sérios e determinados, mas lutavam de mãos limpas.

— Você não sabia nada e simplesmente se meteu no meio disso, Sophie? É isso? – madrinha concluiu ao observar minha face que deveria estar entregando todos os meus pensamentos. Como todos da família gostam de falar, sou realmente um livro aberto. Nem duvido mais.

Voltei a encarar meus tênis, envergonhada de tudo. Inquieta, apertei meus joelhos a fim de me livrar do sentimento ruim que me engolia por dentro.

— Não aprendeu nada com o Mário todos esses anos? – senti meu sangue congelar em míseros segundos pela menção do seu nome.

O nome me pegou de surpresa. Estava acostumada a apenas a escutar sua menção, nas raras vezes que era citado, como “aquele cara” ou “ele”. Às vezes o silêncio já nos remetia a seu ser. Não era uma espécie de vilão das Meninas Superpoderosas para mim, mas era para todos os outros da família, por isso aprendi a nunca citá-lo ou, quando o fazia, evitar a qualquer custo seu nome. Porém madrinha era uma pessoa diferente, era direta e não fazia questão de esconder seu nome por pena de reabrir feridas porque, como frisei diversas vezes, não tinha quaisquer buracos abertos por conta disso.

Pelo menos ela havia me escutado. Confiado em mim.

E posso ter estragado tudo.

— Não pensou em nada quando entrou na delegacia? – fechei os olhos, absorvendo suas palavras cuidadosamente. – Nada mesmo?

Talvez ficar calada seja a melhor opção, mas não queria me silenciar. Deixar essa pergunta respondida, com menos um peso na consciência. Não me arrepender, como certamente aconteceria se tivesse optado a ficar quieta.

— Pensei. Claro que pensei. Vi em flash toda minha vida passando diante dos meus olhos e que aquele seria um fim aterrorizante. – relembrei a situação de mais cedo. – Cômico, pensando melhor agora, fora do perigo. É. Cômico. Acabar do mesmo jeito que ele. Mário. – apressei em emendar o nome, sabendo que agora não precisava esconder da sua existência.

Estaria gargalhando se realmente tivesse parado atrás das grades, e provavelmente gargalharei quando acordar amanhã, quando toda a tensão do acontecimento passar de vez. Uma longa e verdadeira gargalhada de como uma coincidência tão... tão... possível como essa ocorrer de maneira tão fácil, simples, como algo destinado, quem sabe?

— Mas, sabe, madrinha? Mesmo que estivesse lá, do outro lado, seria por um motivo completamente diferente. – voltei a sustentar meu olhar no seu. Abandonei o medo e deixei outro sentimento me envolver. Orgulho, talvez. O mais distante de arrependimento possível. – Não menti quando fiz isso por um amigo. Foi minha motivação na hora e provavelmente faria tudo de novo se voltasse no tempo.

Seu olhar de descrença ficou tão evidente que me incomodou, pois sei o que vem a seguir. E já havia escutado todo um discurso sobre hoje.

— Você está aqui há dois meses, Sophie. Na escola, apenas um. Como pode ter arranjado uma amizade tão forte a ponto de se arriscar? É impossível para qualquer pessoa.

— Não sou qualquer pessoa, madrinha. – ostentei um sorriso reservado, repleto de dor por tê-la magoado. – Sou Sophie Novais, a garota que é capaz de fazer amizades mais rápido do que o recorde mundial do Sonic na fase inicial. – ao perceber seu olhar confuso, tratei de acrescentar. – É rápido. Acredite. Questão de segundos.

Madrinha acompanhou meu sorriso, apesar de claramente não estar nada feliz. Parece apenas cansada de tentar colocar alguma coisa na minha cabeça.

— Tem razão. Você é Sophie, a garota que confia demais nas pessoas. Que tem uma vontade irracional de se sacrificar por elas sem nem saber se fariam o mesmo, ou até menos, por você. – ela jogou o corpo para trás, afundando no sofá macio, parecendo relaxar um pouco. – Uma idiota completamente inconsequente que dá trabalho pra caramba.

Não me incomodei da forma carinhosa que se referiu a mim em sua frase. Idiota era basicamente meu apelido no meio familiar. Não era uma espécie de marcação, todos tinham um apelido tão amável quanto. Marcos era o otário e Sara, a mão-de-vaca.

— Vá para o seu quarto. Voltaremos a falar disso depois.

O estalo da minha coluna foi ensurdecedor, já que estava na mesma posição há tanto tempo. Alonguei meu corpo e parti para a escada, pronta para tentar esquecer toda a loucura. Na metade dos degraus, entretanto, sua voz voltou aos meus ouvidos.

— Filha, minha querida, você precisa entender. – parei a caminhada e virei para o lado, para fitar sua face cansada. – Essa inconsequência não é motivo de orgulho. Você nos tem para ajudar a corrigir seus erros agora, mas não será assim para sempre. Em alguma ocasião você estará sozinha, sem ninguém para estender a mão para te ajudar, porque todo mundo passa por um momento assim. Não dá para evitar. – voltou a ajeitar sua postura, enquanto ponderava brevemente. – As únicas certezas que temos, além da morte, é que, algum dia, quando menos esperamos, algo testa nossos limites. E isso poderá se tornar algo muito mais sério do que o que ocorreu hoje nas mãos de uma pessoa que não pensa nas consequências, minha menina.

Absorvia tudo. Pressionava os lábios e apertava o corrimão, ansiosa com o seu conselho. Mesmo agora, com suas palavras carregas com sentimentos, não conseguia enxergar o que estava fazendo de errado. O certo não era salvar sempre um amigo?

— Querida, ah, minha querida... essa sua parte é bonita, sim. Ainda mais com tantas pessoas individualistas e egoístas nesse mundo. Não quero que se torne alguém que não liga para o próximo. Mas precisa entrar nessa sua cabecinha que algumas pessoas, em vez de aceitar a sua mão e apreciá-la, te puxarão para baixo. Algumas entrarão na sua vida só para isso. Preciso refrescar sua memória sobre seu histórico de amizades? – acebei a cabeça, negando.

Então ficamos em silêncio por algum tempo. Precisava digerir tudo. Não era um discurso novo para mim, longe disso, ouvia palavras parecidas mais vezes do que gostaria por todos os membros da minha família. Eu sabia disso, claro. Não saio confiando em qualquer pessoa assim, sem mais nem menos.

A questão era que eles eram meus amigos. Melhores amigos. E melhores amigos não traem uns aos outros. Não tem porque suspeitar que façam algo de errado.

— Não entrarei no mérito das pessoas que conheceu agora. Mesmo se avisasse alguma coisa você as defenderia com unhas e dentes, não é? Estou cansada hoje para isso. Quem sabe outro dia? Mas, como disse, não estaremos, eu, seus irmãos, a sua mãe, sempre presente para te alertar sobre algo, querida. Pense em minhas palavras.

A deixa para continuar o trajeto tornou-se clara.

E foi o que fiz.

Enfiei-me no meu quarto com os pensamentos duvidosos sobre ser tão inocente – como todos fazem questão de afirmar – torturando minha cabeça o resto da tarde.


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Notas finais do capítulo

*Sonic, mais conhecido como ouriço azul que vivem comparando com Mário, mesmo os jogos tendo propostas diferentes.

Parece que reconhecer um defeito é mais difícil do que parece, não é mesmo?


E QUEM SERÁ ELE, AQUELE QUE NÃO DEVE SER MENCIONADO?

TÃ-TÃ-TÃ