Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 1
Um




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abril de 1940

– Lucille, ma chérie! Que surpresa! – exclamou Colette Boulanguer , tentando se levantar da cama.

Lucille Vermont correu para ela, a fim de impedi-la de levantar.

– Colette, fique onde está! Nem pense em sair daí. – ela ralhou, carinhosamente.

– Lucille, já não agüento mais ficar aqui! – exclamou Colette, suspirando ruidosamente. Lucille apenas sorriu e a observou. Sua irmã era linda. De pele translúcida quanto à pétala de uma magnólia, cabelos louros como trigo maduro e os olhos azuis herdados da mãe que era da Normandia, desde criança Colette sempre fora o centro das atenções e se fosse ao Folies Bergere ou ao Moulin Rouge seria uma sensação. Já Lucille havia puxado ao pai. De cabelos escuros que caiam em suaves ondas quando soltos, mas que ela agora conservava presos num coque severo. Seus olhos eram de um verde escuro que podiam clarear ou ficarem quase pretos se ela estivesse alegre ou furiosa. Diferente da irmã alta e elegante, Lucille era pequena, mas não frágil. Isso os homens sempre percebiam se cometessem o erro de tentar seduzi-la.

Mas a despeito da beleza, Collete optara por ser esposa e mãe. Agora resmungava presa à cama, de resguardo do nascimento de sua primeira filha, a graciosa Hélene, a quem Lucille foi espiar em seu berço, do outro lado da cama.

Adorava a sobrinha. Enxergava nela a sua própria filha que perdera, vitima do último inverno. Lucille achou, na ocasião, que toda a alegria de viver se fora com ela. Mas, a partir do momento em que Hélene nasceu, a vida dela se modificou. Por algum tempo Lucille até acreditou que sua irmã tinha ciúmes dos cuidados que ela dedicava à sobrinha, mas ao mesmo tempo, achava que a irmã sabia que ela procurava apenas dar a Hélene o que não pôde dar à própria filha.

– Este monstrinho está dormindo? - Perguntou Colette.

– Não fale assim comigo, maman! – Lucille se virou segurando Hélene. – Se choro, é porque quero chamar a sua atenção.

– Ah, sim. E como chama! – sorriu Colette, recebendo-a em seus braços. – Não só a minha e a do papai, não é? Tem que acordar Paris inteira.

– E Pierre, onde está? – a moça indagou.

– Trabalhando. – a outra acomodava o bebê junto ao seio para alimentá-lo.

– Há esta hora? – incrédula, ela olhou no relógio. Eram onze e quinze da noite.

– Sim. Ele está chefiando a equipe de cozinheiros do Presidente. – declarou orgulhosa.

– Mas que maravilha! – Lucille exclamou – Mas por que até agora?

– Bem, parece que o presidente recebeu uma delegação alemã hoje.

– Alemães? Em Paris? Mas todos sabem que os alemães estão às portas da França!

– É, eu sei. Mas talvez le Président queira tentar afastar o perigo, dialogando com eles.

A jovem balançou a cabeça inconformada com a ingenuidade da irmã. As noticias que os jornais traziam não eram animadoras. E a sensação presente era de que a França apenas aguardava a sua vez. O governo acredita que podiam manter os alemães longes por causa de [1]Maginot, mas a máquina de guerra alemã evoluíra muito em relação à francesa nos últimos anos. Sim, era apenas uma questão de tempo da França ser invadida também.

– Bem, eu já vou. – Lucille declarou, levantando-se. – Preciso ir até o Moulin.

– O que vai fazer lá?

– Tenho que buscar Elise. Ela tem medo de voltar pra casa sozinha.

– Bela companhia... Duas mulheres sozinhas na noite de Paris. – zombou Colette. – Por favor, Lucille, tenha cuidado, sim.

– Não se preocupe. O Moulin fica há apenas duas quadras de casa. – ela retrucou beijando a irmã no rosto. Inexplicavelmente, ela sentiu a garganta apertar ao ver a imagem da irmã recostada nos travesseiros. Collete parecia tão frágil quanto uma boneca de porcelana.

– O que foi, Lucille? – perguntou a jovem.

– Nada, nada. Mas por favor cuide-se, sim. Amanhã volto para vê-la. – Lucille beijou a irmã novamente e fez uma carícia na cabeça da sobrinha que agora dormia satisfeita. Ela saiu do quarto e se dirigiu a saída.

No momento em que ia segurar a maçaneta, a porta se abriu e seu cunhado Pierre entrou.

– Olá, Lucille.

– Olá, Pierre. O que aconteceu?

A expressão no rosto de Pierre Boulanguer indicava que algo estava errado.

Seu cunhado não era bonito, mas havia nele uma calma e bondade tão visíveis, que ela não foi contra o casamento de sua irmã, quando Colette declarou que a diferença de idade entre eles era de vinte anos.

Mas essa calma havia desaparecido quando ele a puxou para um canto e disse:

– Lucille, saia de Paris! Eu vou levar Colette e Hélene para a Suíça esta noite.

– Mas Pierre, sabe que Colette ainda não pode viajar.

– Sim. Eu sei. Mas tenho que sair da França o mais rápido possível. Só Deus sabe o que vai acontecer se eu ficar.

Lucille, literalmente, desabou no sofá. Aquela declaração de Pierre a havia assustado.

– Como assim? – ela perguntou.

– Lucille, ouça. – ele sentou-se ao seu lado – Os nazistas estão se aproximando da França. Cedo ou tarde, eles implantarão o seu domínio aqui. Esta noite, as conversas nos corredores do palácio eram sobre a possibilidade de fuga de vários gabinetes do presidente o mais rápido possível

– Meu Deus...

– Não se sabe a que distância eles estão. Mas o pior foi que, durante essas conversas, toda a equipe de cozinha tinha olhares na minha direção. São meus conhecidos há muito tempo. Sabem o que aquilo significaria para mim.

– Mas por que você?

– Esqueceu que eu sou judeu? Nasci na França, é verdade. Mas sou judeu.

Era verdade. A mãe dele era francesa mas seu pai era judeu.

– E como irá levá-las até a Suíça?

– Tenho uns amigos que estão fazendo isso. Levam fugitivos das cidades sitiadas até a fronteira. Não me pergunte como. E lá os nazistas não podem fazer nada. É território neutro. Meu irmão mora em Lyon e está me esperando. De lá atravessamos para a Suíça. Mas tenho de sair antes que eles se aproximem demais.

– Então hoje pode ser a última vez que verei minha irmã? – ela murmurou.

– Não, claro que não. Venha conosco.

A tentação era grande. Mas alguns rostos se formaram em sua mente, fortalecendo a decisão de ficar.

– Obrigada, Pierre. Mas eu preciso ficar.

Ele não escondeu a sua tristeza.

– Colette ficará desesperada sem você.

– Fique tranqüilo. Arrumarei um jeito de entrar em contato com vocês.

– Então encontre rápido. – Ele a abraçou – Acho que deveria se despedir de Colette e Hélene.

– Não seria muito arriscado se ela me visse com os olhos lacrimejantes.

– É, tem razão. Bem, querida cunhada, cuide-se.

– Cuidem-se também. E que Deus os guie.

E Lucille saiu pela porta tentando não se desesperar com a partida deles

***

É horrível a sensação de que o mundo desabara na sua cabeça. Era assim que Lucille se sentia desde que Pierre lhe dera a noticia de sua fuga junto com Colette e Hélene.

À medida que ela me aproximava do Moulin Rouge, o som de risadas e musica se tornava cada vez mais alto. Aquela alegria espontânea na noite parisiense não duraria muito. Junto com a ocupação viriam também a rigidez e austeridade alemãs.

Perdida em seus pensamentos, Lucille não reparou em uma sombra que a seguia há algum tempo.

Ao virar uma esquina, ela foi despertada de seus pensamentos por uma voz rouca:

– Tem horas aí, mademoiselle?

Assustada, a moça recuou para trás, murmurando:

– Desculpe, monsieur, não tenho não.

Procurou desviar dele, mas ele se pôs em sua frente.

– Por favor, monsieur. Saia de minha frente!

Ele se aproximou dela e Lucille pôde sentir o hálito de bebida.

– Se você não tem horas, lindeza, pode ter algo que me interesse também.

Quando ela se virou para fugir, já era tarde demais. Foi segura pelos braços e pressionada contra a parede. Por Deus, ou aquele bandido tinha a força de dez homens, ou o seu medo o tornava invencível. Lucille desviava o rosto tentando não sentir os lábios dele contra os seus. Mas não conseguiu evitar o contato da barba por fazer arranhando seu rosto.

Por um momento ela achou que iria desmaiar, tal era o seu desespero. Mas, dentro da nevoa em que se viu envolvida, ela ouviu uma voz ecoando no silencio daquela rua.

– Por que você não a solta, miserável?

Lucille pensou por dois segundos que era Pierre, tal era a calma daquela voz. Mas bastou um olhar para que ela percebesse o seu engano. Não era Pierre.

O marginal logo a soltou e, fitando o homem à sua frente, não se arriscou a levar uma surra. Fugiu correndo pelas sombras.

Totalmente esgotada, a jovem resvalou até o chão, enquanto seu salvador continuava olhando para as sombras se esperasse, a qualquer momento, o marginal voltar com seus comparsas.

– Hum! Esse não voltará tão cedo por aqui. – ele percebeu, então, a moça caída no chão. – A senhora está bem? Ajudou ela a se levantar. A luminária urbana iluminou o rosto da jovem. Ele a soltou imediatamente.

– Sim, obrigada. – Lucille respondeu, tentando se recompor – Foi uma benção dos céus o senhor estar por perto.

– É. – ele puxou uma cigarreira evitando olhá-la – A senhora fuma?

Ela balançou negativamente a cabeça. Finalmente conseguiu prestar atenção no homem à sua frente. A parca luminosidade da rua não facilitava a tarefa. Seu salvador era alto, de ombros largos. Suas roupas eram escuras e sóbrias. Um chapéu encobria parcialmente os olhos, mas a boca era bem desenhada e o queixo coberto por uma barba bem aparada.

– Importa-se? – perguntou ele mostrando o cigarro.

– Não. Pode ficar à vontade.

Ele acendeu o isqueiro virando-se de costas para ela.

– É muito perigoso andar por aqui à noite. – declarou ele, ainda de costas, soltando uma nuvem de fumaça. Ela teve a impressão de que ele não queria ser olhado atentamente.

– É, eu sei. Mas estava indo buscar uma amiga.

– Será melhor andar acompanhada da próxima vez. Posso não estar por perto para salva-la. – Ele olhou-a meio de lado.

Algo naquela frase fez o sangue de Lucille ferver. Que homem arrogante!

– Não é preciso, senhor. – respondeu friamente. – Eu poderei seguir sozinha daqui.

– Bem, talvez agora a senhora esteja salva. Mas quem sabe o que o futuro pode lhe reservar?

– O senhor está me agourando?

– Não. Digamos que esteja me colocando à sua disposição.

A arrogância daquele homem tirou o seu último pingo de controle:

– Não, obrigada! Esteja certo, senhor, sou lhe muito grata pelo que fez, mas farei de tudo para que os nossos caminhos não mais se cruzem.

Ele se curvou à sua frente em reverencia, pegou sua mão e a beijou, dizendo:

– Ficaria surpresa em saber o quanto isso poderá ocorrer. E eu estarei esperando que ocorra.

Dito isso, tão silenciosamente quando apareceu, ele adentrou a escuridão, deixando-a entranhadamente só.

Rapidamente, ela pegou sua bolsa do chão e começou a correr como se perseguida por mil demônios, só parando quando se viu à porta da casa noturna onde Elise trabalhava.


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Notas finais do capítulo

[1] A Linha Maginot que era uma barreira de fortificação com extensão de 400 quilômetros, construída ao longo da fronteira franco­germânica. (nota da autora)



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