8 Horas escrita por VCA


Capítulo 1
Capítulo 1 - Ponto de Quebra




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O ar que entrava pela janela era o que mantinha Mariana acordada. O vento frio da madrugada fazia com que lágrimas escorresem de seus olhos para que não ficassem ressecados. A imensidão escura que envolvia o carro só era quebrada péla fraca luz dos faróis e a fazia devanear sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Alguns fios de cabelo soltos chicoteavam em volta, mas ela já não prestava mais atenção a isso.

Com um pigarro, seu pai a acordou de seus pensamentos. Mariana olhou para ele esperando que tivesse algo a falar. Ele fitou-a de canto de olho e deu um meio sorriso.

-Achei que estivesse dormindo. - disse com uma voz rouca, desacostumada ao uso nas últimas horas.

A menina se ajeitou no banco do carona do carro para que agora conseguisse manter seu pai em sua linha de visão.

-Não, ainda - respondeu com um sorriso contido - Falta muito para chegarmos?

-Alguns quilômetros. - ele disse - Será que o celular já tem algum sinal? - perguntou, tentando agradá-la.

Mariana sacou o celular do bolso e apertou a tecla lateral, fazendo-a iluminar seu rosto com uma luz forte, que fez seus olhos arderem por alguns segundos até que se acostumassem. Viu sua foto com seu namorado no papel de parede. Sentia muita saudade de Alan e mal podia esperar para falar com ele. A barra de sinal se mantinha vazia, sem resquício de rede.

-Ainda nada, mas eu acho que já passou da hora. Faz algum tempo que saimos do meio das montanhas, já deveria estar funcionando. - ela disse deixando transparecer sua irritação.

-Bom, não tem o que fazer - ele suspirou - Mas logo você já vai poder falar com seus amigos - ele completou enquanto ligava o radio do carro que só tinha estática - É tão ruim assim passar um fim de semana sozinha com seu pai? - perguntou buscando uma sintonia que não mudava em nada o ruído estático.

-Não - respondeu - Eu me diverti muito. Há anos que sentia falta de passar um fim de semana contigo na cabana da montanha. Acho que às vezes é até bom se desligar da internet e das pessoas pra saber que as coisas continuam acontecendo mesmo que você não esteja lá. E na verdade você não vai perder muita coisa.

Ele desligou o rádio, calmo enquanto se recostava no banco e fitava a estrada mal iluminada com olhar perdido.

-Na minha época nós não tinhamos dessas coisas - o homem respondeu, quase nostálgico - a gente se importava mais com o que acontecia onde nós estávamos. O nosso mundo era menor.

Mariana sorriu, imaginando como deveria ser viver nessa época. Alguns segundos se passaram enquanto os olhos dela começaram a se perder na escuridão do horizonte novamente. Sua atenção então foi capturada por uma par de pontos brilhantes, que refletiam os faróis do carro, no breu ao lado da estrada. Passaram rápido, mas ela não pôde se conter ao imaginar a coruja que teria aqueles olhos.

Lentamente começaram a reduzir a velocidade. Mariana pôde notar que a traseira de um carro reluzia sob a luz dos faróis. Uma linha de carros se estendia pela estrada tão longa quanto a escuridão permitia observar.

- Vê se você consegue achar algum sinal pra ligar pra emergência - ele disse enquanto deixava a chave na ingnição, para manter os faróis acesos e abria a porta para sair, com uma expressão preocupada - vou ver se aconteceu alguma coisa e te aviso.

Mariana tirou o cinto e saiu do carro, sentindo suas pernas doerem pelo longo período sentada. Fechou alguns botões de seu casaquinho e começou a andar em volta, abaixando e levantando o telefone, buscando inutilmente algum sinal de rede. Um cheiro de carniça podre a atingiu, fazendo com que seu rosto se contraísse numa expressão de nojo fora de controle. Cobriu o rosto com uma das mangas do casaco e seguiu seu pai, pelo meio dos carros, em direção ao começo da longa fila. Ao olhar sutilmente dentro do carro que estava ao seu lado, reparou que não havia ninguém dentro dele. O farol deste iluminava mais um pouco o caminho a frente e revelava a mais alguns passos carros deixados de portas abertas, como se os passageiros tivessem saído depressa demais.

Mariana andou mais um pouco com cautela, procurando seu pai em algum ponto, ou qualquer outra pessoa, mas a estrada estava deserta. Manteve-se atenta ao celular pra qualquer sinal de rede, porém até aquele momento não obteve resposta alguma.

Seguiu por entre os carros que quanto mais distantes ficavam da luz, mais caóticamente estavam dispostos na estrada. Com um susto, estacou. A sua frente havia um acidente envolvendo tantos carros que a estrada estava fechada em ambas as mãos, os carros se empilhavam de forma grotesca. A menina começou a correr em direção ao acidente, rezando para que ninguém tivesse se machucado, apesar de saber que num acidente daquela magnitude não poderia ser dessa forma.

- Pai? - falou, com a voz embargada, no meio do silêncio - Pai, cadê você?

Sua respiração começou a ficar pesada enquanto sentia seu coração acelerar. “Onde estão todas as pessoas?” pensou enquanto retomava sua corrida em direção ao acidente. Levou alguns segundos até que ela notasse o som que seus pés faziam ao chapinhar no asfalto molhado.

A essa distância dos outros carros, a luz já era tão fraca que o chão era um negrume com pequenos pontos de luz refletidos. Mariana olhava em volta nada, nem uma pessoa, apenas escuridão. Seu peito começou a ficar pesado, enquanto o pânico começava a irradiar para seus membros e seu corpo começava a tremer.

-Pai! - gritou. Esperou a resposta espirituosa dele, fazendo gozação de sua reação de pânico mas tudo o que teve em resposta foi silêncio. Começou a andar mais depressa, ainda observando o celular buscando o sinal. Assim que conseguisse algum ligaria para a emergência.

Subitamente um solavanco a atirou em direção ao chão, seu pé doeu ao tropeçar em algo rígido. Caiu de joelhos, com as mãos espalmadas para aparar a queda. Viu o celular cair a dois metros a sua frente. Rapidamente se levantou, tentando secar as mãos molhadas na frente da calça jeans enquanto corria para pegar o celular. Quando a luz da tela tocou suas mãos se assustou com o tom vermelho que elas tinham. “Será que me machuquei?” foi seu primeiro pensamento. Só então apontou a luz do celular para o chão e viu que a água que vinha pisando era uma extensão gigantesca coberta de sangue.

Sentiu como se uma âncora tivesse caído até o fundo de seu peito, e dessa queda saiu um grito agudo de terror de sua garganta. Pôs a mão na boca, para tentar contê-lo e sentiu o rosto molhado do sangue que sujava suas mãos.

Tentou gritar mais uma vez enquanto o nó na sua garganta fazia com que ele mais parecesse uma golfada. Começou a chorar, em pânico enquanto corria de volta ao carro.

-Pai! - gritava, entre soluços - Pai! Cadê você? - tentou gritar mais alto, mas sua voz estava quebradiça por causa do choro. Ouviu um som atrás de si, um choque contra o capô de um carro. Começou a correr mais rápido, mas o barulho ficou mais rápido e se aproximando cada vez mais.

- Pai, é você? - gritou, em pânico sem nem mesmo olhar para trás. A luz do farol queimou seus olhos quando começou a entrar eu seu campo de visão. Ao se aproximar do carro, abriu a porta do motorista e se jogou dentro dele, travando as protas e se encolhendo no banco enquanto fitava a estrada iluminada a sua frente. Por alguns segundos a estrada estava deserta.

A traseira do carro da frente. A luz do farol dele que se estendia a uma certa distância. Um movimento.

Talvez seus olhos estivessem lhe pregando uma peça.

O silêncio dentro do carro só era quebrado pela sua respiração pesada e por seus soluços.

Congelou seus olhos na estrada a sua frente mais uma vez, havia algum movimento perdido por ali, alguma coisa que ela não percebia.

Só então viu, os dois pontos brilhantes que vira minutos atrás na beira da estrada. Fitou aquele par de pontos de luz no meio da escuridão. Respirou fundo, não sabia o que estava vendo. O que era aquilo? Se retesou no banco, sentando-se da forma certa e encarando aquele olhar na escuridão.

Subitamente os olhos se atiraram para frente revelando, correndo em sua direção, um homem adulto, alto, com o corpo magro e a pele ferida em diversos lugares. Sangue cobria seus braços e seu maxilar, molhando seu tronco. Seus pés descalços acertavam o chão em direção ao carro com uma velocidade que ela nunca tinha visto.

Tentou ligar o carro. O farol piscou. Por um segundo seu peito explodiu ao perder o homem de vista na escuridão. Quando o ronco do motor surgiu, a luz reacendeu e o homem estava a alguns metros do carro. Em segundos ele a alcançaria. Jogando a mão ao lado e fazendo um movimento com a marcha, acelerou e o carro começou a ganhar velocidade, dando ré.

Jogou o volante com violência para a direita, fazendo a traseira do carro sair da estrada. Mudou a marcha, ao procurar o homem na escuridão, o teto amassou sobre a sua cabeça, num estalo alto, como se o mundo estivesse se espatifando. Sem pensar duas vezes acelerou tentando voltar com o carro para a estrada. Os pneus rodaram, cavando a terra enquanto o carro continuava parado naquele ponto.

Subitamente o parabrisa se rachou sob a pancada de uma par de punhos. Mais um vez. A rachadura aumentou.

Mariana empurrou o pé com mais força no pedal, fazendo com que, com um tranco, o carro saísse do lugar. Virou o volante com violência para entrar na estrada novamente e sentiu quando o carro ficou mais leve. Um barulho de choque alcançou seus ouvidos enquanto ela acelerava para aquela escuridão e deixava para trás o corpo se levantando do asfalto e toda aquela desolação de carros e sangue.


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