Exílio Soturno escrita por Kirialini


Capítulo 2
Armadilha Astral




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/597740/chapter/2

25 de outubro de 2014.

Ponto de Vista de Salsicha:

Estamos há uma hora na estrada, a caminho de Boston. Estômago roncando, quando me lembro da comida que trouxe do Eleanor’s. Então abro o compartimento de emergência da Máquina Mistério e retiro as embalagens com o lanche.

– Sanduíche de bacon para mim – começo a conferir. – O mesmo para o Scooby, frango pra Velma, peito de peru pra Daphne e atum pro Fred.

– Trouxemos para todos – Scooby diz.

– Guarde o meu pra mais tarde – diz Velma a mim. – Mas muito obrigado.

– Eu não posso negar, não tive uma refeição decente hoje – Daphne recebe seu lanche.

– Fred – Velma começa. – Que tal encostar a van e eu assumo o volante, assim você pode comer e descansar um pouco.

No início, Fred até titubeia, mas com a insistência de todos, ele passa a direção pra Velma e come seu lanche. Continuamos nesse rodízio durante o percurso. Depois de onze longas horas, quem está no volante quando entramos na cidade de Boston, a uma hora da manhã, é Daphne. Passamos na frente da universidade e algumas quadras depois encontramos um hotel. É lá que vamos nos hospedar.

Fred se dirige até o balcão e, depois de alguns minutos, volta com duas chaves na mão.

– Quarto 17 para as meninas – ele estende uma das chaves pra Daphne. - Quarto 19 para os meninos – e balança a chave que sobrou.

Mal chegamos no quarto e eu desabo numa das camas e caio no sono. Imagino que os outros tenham feito o mesmo, mas não estava acordado pra ver.

Ponto de Vista de Velma:

— Madame, eu apreciaria se a senhorita se mexesse menos. Com todo respeito. — diz a voz encantadora como o som de uma harpa.

— Peço desculpas, estou me esforçando para ficar imóvel – digo sem jeito. - Nunca reproduziram minha imagem numa tela. Estou ansiosa pelo resultado.

A razão pela minha inquietação com certeza não se deve a minha imensa vontade de ver uma pintura minha de túnica. Apesar de ser uma grande apreciadora de arte, sei que não sou Gioconda alguma e nunca me apeguei a apreciação de minha aparência. Meu desconforto se resume ao fato de que o artista que está me pintando não se cala e eu sequer vi o seu rosto, o qual está escondido pela tela no cavalete. Além de não lembrar como parei aqui, servindo de sua musa.

— Quando sua mãe me disse que a filha dela era a mais bela do vilarejo, cheguei a duvidar - as palavras saem de sua boca e um tom avermelhado toma conta do meu rosto. — Um grande tolo eu fui — algumas poderiam achá-lo galanteador, eu penso que é inconveniente.

— E-e-eu não sei o que dizer - estou gaguejando. — A pintura levará muito tempo ainda?

— Assim espero. Desejo que ela se torne impecável, muito embora, eu não acredite que seja possível alcançar a formosura da cena real.

— Está me deixando embaraçada - me sinto impotente. — Acho que devo ir embora, tenho certeza que achará uma modelo muito mais atraente que eu.

— Meu anjo - sua voz transita do sedutor para um protótipo de maníaco. - Essas correntes não são por acaso - ele termina sua frase com uma risada que corre por toda a minha espinha.

— Do que você... - não termino a frase, porque, ao desviar me olhar para baixo, entendo exatamente do que ele falava. Correntes apertadíssimas me prendem naquela pose, mas só agora pude sentir a agonia que elas me causam.

— Quando seus amigos tentaram fugir foi divertido e cheio de adrenalina, mas bastante cansativo - ele suspira. - Principalmente o garoto magrelo e seu companheiro vira-lata. Espero que você não seja muito apegada a eles. Ops... revelações sobre o enredo, me perdoe, acho que estraguei a surpresa — o deboche em sua voz é quase tangível.

Minha respiração acelera imediatamente e alguns fragmentos de palavras saem da minha boca. A única coisa que consigo fazer é gritar desesperadamente, mas aquilo termina num choro soluçante. Posso sentir o sal de minhas lágrimas escorrendo pelo meu rosto.

— O que você... - tomo fôlego para continuar a frase. — O que você fez com eles? — Estou rouca.

— Nenhuma tinta no mundo tem a mesma textura esplêndida que sangue – há prazer em suas palavras. - É como se a tinta e a tela dançassem a luz da lua. No final, você verá o quanto a coloração do seu cabelo ficou fantástica com ele. Uma pena que você não poderá agradecer sua amiga ruiva pela colaboração – mal termina a frase e seus risos preenchem o atelier.

— Para que tudo isso? - estou berrando, gastando o último pingo de voz que me resta, tentando esquecer o aperto que sua última frase me traz.

— Vocês acabaram com nossas chances. Não farão de novo.

Por um momento, não consigo escutar o barulho discreto que o pincel faz ao deslizar pela pintura.

— Péssimas notícias, a tinta vermelha acabou.

Uma mão com garras negras rasga meu tórax e me transforma numa cascata de sangue que escorre até o chão e corre em direção ao pintor. Ele abaixa o pincel até a poça que se forma ao redor dele e molha as cerdas levemente. Um última pincelada é dada e ouço sua voz novamente.

— Finalmente está terminado. Agradeço a sua preferência.

A tela se vira até que a pintura fica em meu campo de visão. Estou com dificuldade para respirar e não sinto meu corpo. Meu sangue está se esvaindo de mim rápido demais. Talvez minha consciência esteja perdida a ponto que não posso identificar o artista, mas sua obra está mais nítida do que nunca. Lá estou eu, com dois vazios no lugar dos olhos, e abaixo de mim, quatro cabeças: dois garotos, uma garota e um cachorro.

Ponto de Vista de Daphne:

— Eu quero te mostrar algo fascinante — disse a voz que vinha do nada para mim. Não é uma figura de linguagem, não há mesmo nada ao meu redor além de um breu que lembra os abissais da Terra.

Pequenos pontos começam a clarear e um cenário vai se formando, olho ao redor e vejo um céu cheio de estrelas, um vilarejo antigo e bem na minha frente há pessoas. Eu queria ter ficado no breu. Essas pessoas olham para mim com ódio claro, não são aqueles olhares venenosos que alguma colega invejosa lança quando seu namorado ou sua aparência são melhores, mas sim quando você lhes tira algo precioso, como esperança. Eu achava ruim? Antes tivesse ficado tranquila, pois quando olhei para o chão e me vi coberta por lenha até o alto das minhas coxas eu grito com agonia

– Calma, calma, você vai ver, menina apressada! - diz aquela mesma voz como se fosse um pai mostrando ao filho algo novo - Um, dois, três, para o álcool, quatro, cinco, seis para o discurso, ná ná ná, segue assim nosso curso, sete, oito, e...FOGO!

Eu franzo meu cenho confusa e zangada por aquela coisa maldita que não localizo brincar numa hora dessas, mas sinto um cheiro esquisito de fumaça, e percebendo que vem de algum lugar abaixo de mim, direciono o olhar para meus pés.

Eu estou numa fogueira, eu sou uma bruxa. É uma questão de tempo até me despedir desse plano. Estou chorando antes mesmo de me dar conta.

— As lágrimas vem, mas elas secam em breve, mocinha, já viu cinzas chorarem? NÃO! PODE PERGUNTAR A ELAS ALI DO LADO, suas irmãs não choraram, meu bem!

Ao meu lado há corpos e corpos carbonizados empilhados abaixo de uma cruz onde está escrito ''Deus Seja Confortado''.

— NÃO! VOCÊS NÃO PODEM FAZER ISSO COMIGO, NÃO SOU BRUXA, EU JURO, NÃO SOU BRUXA, JURO POR DEUS! ME TIREM DAQUI!

— JURA POR DEUS? - fala a voz do Nada - Como uma bruxa imunda ousa jurar pela Santíssimo? A não ser que seja verdade... você quer mesmo sair daí criança? A qualquer custo? VOCÊ quer não morrer queimada?

— SIM! Me tire daqui, por favor, dói demais! - as chamas já estão próximas ao meu peito e tudo que eu queria era levar um tiro, pelo menos, bem no coração. Mas então o Nada suspira e num piscar de olhos duas mãos fortes me agarram e alguém me pega no colo. Antes de olhar eu já sei quem é.

— Freddie, meu amor! Você está aqui, então tudo está bem! Era tão ruim, eu não desejaria isso para meu pior inimigo...

Ele sorri e beija meu cabelo.

— Shh, já passou, eu cheguei, te salvei, nunca mais vai passar por dor alguma se eu puder impedir, você vai para longe daqui, suas pernas não queimam mais... Olho para lá e realmente minha pele está intacta. O QUÊ?! Será que foi uma ilusão? Mas eu senti!

De qualquer modo não importa. Aperto o ombro de Fred para que ele me coloque no chão e ele me solta devagar, quase com tristeza e então me dá um olhar, o mesmo que ocorre entre nós quando temos que nos separar.

— Espere! Você disse que eu vou para longe daqui? Isso não significa... Você vem também né?

— Não, Daphne — ele responde com voz amarga.

— C-Como assim? A regra, Fred! Vamos juntos, sempre juntos! E porque você ficaria NESSE lugar?!

Uma risada sombria e terrivelmente familiar rompe no ar. Garras invisíveis arrastam meu namorado e o colocam ali, onde eu estive antes, no coração da fogueira.

— NÃO!

As mesmas garras me seguram e mantém no local, observando a pessoa que mais amo no mundo arder no fogo do que pra mim, naquela hora, era o inferno.

— Você não achou que ia ser de graça, hum? Nós aqui nos modernizamos, queridinha, nada vem sem um preço. Eu prometi que VOCÊ não ia queimar, e de fato, quem está queimando é o Freddinho! - o Nada sussurra com diversão em meu ouvido.

— MALDITO! AMBOS QUEIMAREMOS ENTÃO! - agarro a entidade que me segura e arrasto para a fogueira onde Fred permanece, ouço algo semelhante a um rosnado de desprezo e uma garra selvagem arranha meu peito e me joga de volta a escuridão.'

Ponto de Vista de Fred:

Me encontro escrevendo um livro, meus dedos deslizam pela máquina datilográfica, as palavras fluem da minha mente com a mesma naturalidade dos pingos de chuva das nuvens carregadas, tudo consequência de minha mente cheia de desejos, sonhos que só posso realizar naquele mundo. Estou digitando tão rápido, tão rápido, se meus dedos tivessem asas eles voariam, mas começo a me assustar, talvez por causa do ritmo incessante um ardor agonizante vai pouco a pouco tomando conta de minha mão. Não pode ser normal...

— E não é mesmo.

Uma voz zombeteira sussurra em meu ouvido diretamente atrás de mim, eu pularia de minha cadeira espantado, mas justo naquele momento descubro que estou preso a minha mesa de escrita e aquele ardor em minhas mãos era na verdade...

— Meu Deus, quem é você? O que fez comigo? – meus dedos jorram sangue e estão costurados de forma nojenta com a máquina datilográfica.

— Ah, essa tendência que vocês humanos têm de sempre necessitar de alguém para depositar suas culpas. – A coisa agora possui um tom de falsa austeridade.

Viro rapidamente para trás o máximo que posso em minha atual situação. A voz desapareceu, só vejo uma figura negra e esfumaçada, a única coisa que consegui definir são suas garras enormes, que arranham meu peito da mesma forma que a faca escorregar pela manteiga. Caio imediatamente no chão, a dor é agonizante. A criatura se ajoelha, posicionando sua cabeça rente a minha, e me beija.

— Olhe só, lhe dei tudo o que mais queria criança, ser um escritor fixo – Aquilo ressurge de outra posição que não consigo determinar, mas sei que se refere a máquina, ainda unida de forma macabra ao meu corpo. – E uma bela dama, quem de vocês não deseja uma para ancorar seus corações antes que o mundo os arranque de um só golpe?

Com isso a criatura alternativa que está em cima de mim enfia a mão em meu peito. Começo a chorar feio uma criança, não pela dor, mas pelo desespero tão grande de estar trancado com aquelas coisas, sozinho.

Sinto minha força vital se esvaecendo, minha respiração fica cada vez mais fraca, minha visão se escurece à medida que se desfoca, minha última imagem é os olhos brilhantes e dourados, que só agora percebo que a criatura possuía.

E eu estou sozinho. Meus malditos amigos, para onde foram seus sentimentos? Diz a voz em minha mente e continua: Note, porque será que você é amado só quando parte? Devo enviar alguém ao passado para abençoar a criança estranha? Todas aquelas que rodeiam o mundo visível e invisível? Se você não acha o bastante, espere e verá, os condenados explícitos dominarão o mundo

Meus batimentos cardíacos ficam vagarosos, só posso esperar pela última batida, mas o som fica cada vez mais oco. Como batidas em...uma porta.

— Fred! — A voz de Daphne tira-me do pesadelo e eu sinto um alívio, sem entretanto conseguir me livrar da sensação absurda de ressentimento por estar preso sozinho naquele pesadelo. – Temos que ir à Universidade logo, não temos todo o tempo do mundo. Salsicha! Scooby! Fred! — ela só se cala quando abro a porta — Ah, vocês estão vivos, afinal.

— É o que espero — percebo Velma com uma caixa de biscoitos Scooby. - Café da manhã? — aponto para a caixa.

— Quê? — ela segue a direção que meu dedo aponta até a caixa em sua mão. - Ah, sim, digo, não pra mim – ela abre a caixa.

Nenhum despertador no mundo pode ser páreo ao som da abertura combinado ao aroma dos biscoitos. Ao menos para Salsicha e Scooby. O resultado é instantâneo: rapidamente estão ao meu lado acordados como sentinelas.

– Você nos conhece mesmo, Velma — ele apanha a caixa de biscoitos e começa a devorar junto a Scooby.

— Prontos, turma? — eu digo já preparado para sair do Hotel em direção a Universidade, sacudindo um pouco a cabeça numa tentativa vã de me livrar de maus pensamentos.

— Fred — Daphne aparenta estar embaraçada. — Samba-canção não é um traje muito usual para ir a uma...qualquer lugar que seja.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Exílio Soturno" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.