Chá com leite. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 8
Capítulo 8.




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Esther não sabia como tinha ido parar ali.

Simplesmente estava na frente de uma banca de jornal, olhando para dentro de um parque. Alguns metros a sua esquerda, um homem velhinho vendia churros. Esther lia na placa:

Jardim Botânico

Esther sabia que era onde aqueles adolescentes estavam indo. Não estava ali por causa do encontro nem por causa deles, simplesmente fora andando, pelos lugares onde achara legal. Havia pegado seu celular e tirado muitas fotos, de todas as ruas nas quais andou.

Esther entrou na banca de jornal. Olhou para um freezer com porta de vidro. Tirou um chá mate dali, e deu uma nota de cinco para o homem atrás do balcão. Ele a devolveu duas moedas de um real.

Ela abriu o chá e tomou um pouco. Era bem diferente do que havia na Inglaterra.

Ficou olhando para uma prateleira, onde havia edições da Rolling Stone. CPM 22, Ney Matogrosso, Alexandre Nero...

Ouvia as vozes das pessoas saindo e entrando da banca, mas não deu atenção, até ouvir uma voz conhecida.

–-Hm, eu quero um Lucky Strike também – disse a voz.

–- No total fica... 27,00 – o homem na bancada disse.

Esther se virou. Reconheceu o cabelo cortado nas orelhas e a camiseta de lã.

–- Matheus? – ela perguntou.

O garoto de virou, e Esther confirmou sua teoria.

–- Oi – Matheus disse, sorrindo. Virou-se para a bancada e tirou a carteira do bolso e deu uma nota de 20 e outra de 10 para o homem atrás da bancada. – Fica com o troco.

Esther ficou observando enquanto ele guardava a carteira e colocava todas as latas de refrigerante numa sacola. Pegou uma garrafa com letras azuis, escrito: Gengi Birra.

–- Que coisa é essa? – Esther perguntou, franzindo as sobrancelhas.

–- Refrigerante de gengibre – Matheus disse, tomando um gole. – É muito bom. Você devia experimentar. Só tem aqui.

–- Hum... Não, obrigada. Sou alérgica a gengibre.

Matheus riu.

–- O que está fazendo aqui? – ele perguntou. Poderia ser algo em tom ríspido, mas soou educadamente interessado, como perguntas curiosas devem soar.

–- Eu não sei – Esther admitiu. – Eu só fui andando.

Matheus deu uma risadinha sem mostrar os dentes. Pegou a cartela de cigarros e o isqueiro, depois saiu, em seus passos longos, da banca de jornal. Esther não queria dar a entender que estava seguindo-o, mas saiu mesmo assim.

Ele acendeu o cigarro novamente daquela forma peculiar, com a mão em concha, e Esther apenas ficou observando a cinza do cigarro cair na calçada por um longo minuto. Bebericou seu chá mate, que de repente parecia gelado demais.

–- Você devia parar com isso – Esther avisou.

–- Ah, não enche. Parece minha mãe – Matheus reclamou. Mas não parecia realmente irritado. Esther riu. Matheus pareceu lembrar-se de algo. – Hum, eu vi a selfie que você tirou com minha irmã.

–- Sua irmã?

–- É. Tatiana. Tipo, aqueles adolescentes enlouquecidos que te pararam na rua e gritaram “é ruiva natural”.

–- Ah, sim. Eu não sabia que era sua irmã.

–- Ela é. É meio retardada, mas é inofensiva. Não morde ninguém, pelo menos.

Esther riu.

–- Você vai à convenção? – Matheus perguntou, apontando para outro adolescente de camisa laranja que entrava no parque.

–- Quer dizer encontro? – Esther perguntou. – Hum, pode ser. Eu não estou com minha camiseta do acampamento, mas...

–- Acampamento?

–- É. Acampamento Meio-Sangue.

–- “Meio-Sangue”? Eu nunca vou entender essas sagas.

Esther riu.

–- Dá pra ver que você não é fã – ela disse. – Todos esses refrigerantes são pra você? – ela apontou para a sacola plástica que pendia e balançava no braço de Matheus.

–- Não. Eu que trouxe os amigos retardados da minha irmã pra cá. Isso aqui é pra eles.

–- Ah.

O assunto morreu por um minuto. Depois ressuscitou.

–- Por que você tirou a foto com eles? – Matheus perguntou. Os dois estavam andando agora.

–- Hm, eu não sei. Eu só aceitei. Eles pareciam tão felizes que eu não quis acabar com a felicidade deles – Esther disse.

Matheus riu.

–- Aham. Eu falei pra eles que tinha almoçado com você – ele disse.

–- E como eles interpretaram?

–- Da maneira que adolescentes interpretam as coisas.

–- Ah. Você não mostrou meu telefone pra eles, espero.

–- Mostrei.

–- Puta merda.

Matheus riu. Jogou o toco do cigarro no chão e voltou a amassar com o pé. Esther fez cara feia.

–- Recolha – ela disse.

–- Pra quê? Meu lixo não vai fazer diferença no mundo.

–- Recolha – ela repetiu. Matheus revirou os olhos, recolheu o cigarro e jogou numa lixeira próxima. – Humpf.

–- Agora você definitivamente está parecendo minha mãe – Matheus disse. Acendeu outro cigarro. Esther reclamou baixinho, e ele chegou com o cigarro mais perto dela, até a ponta quente quase encostar nela.

–- Porra – ela reclamou, mas deu risada. Derrubou o cigarro dele no chão.

–- Ah, você vai pagar – Matheus disse.

–- Vou nada. Eu paguei seu almoço.

–- Ah, é. Por que, aliás?

–- Ah, me pareceu grosseria não pagar.

–- Grosseria?

–- É. Sei lá, eu fui lá e invadi sua mesa.

–- Eu deixei você invadir.

–- Por quê?

–- Ah, me pareceu grosseria não deixar.

Esther o olhou e deu um risinho. Bebeu mais um gole de seu chá.

–- Essa coisa é gelada – Esther reclamou. – Vocês não tem chá quente aqui?

–- Temos. É só você pegar uma chaleira de água, esquentar e colocar um saquinho de chá – Matheus disse.

–- Saquinho?

–- É. Como vocês fazem chá lá?

–- Com erva.

–- Ah – Matheus riu. – E eu achava que você não usava maconha.

–- Não esse tipo de erva.

–- Não desminta suas palavras agora.

Eles já estavam perto do bosque. Esther já podia avistar adolescentes de camisetas laranja ou roxa gritando. Avistou a garota chamada Tatiana, irmã de Matheus. A garota olhou para Esther, depois para Matheus, virou a cabeça para o bosque e gritou algo que Esther não entendeu.

Em seguida, cinco adolescentes saíram do meio das árvores. Não, sete. Não, nove. Agora eram doze.

–- Ô merda – Matheus reclamou. O bando de adolescentes voou ao encontro de Esther, que apenas ficou olhando para eles.

–- É ruiva – gritou um.

–- Natural – completou outro.

Uma garota pegou uma mecha do cabelo de Esther e colocou em sua testa.

–- Olha como eu ficaria linda de ruiva – ela disse.

–- Posso roubar seu cabelo, moça? – perguntou outra garota.

–- Vamos roubar a alma dela? – Walter sugeriu.

–- Vamos – Patrícia concordou. – Vamos, gente, todo mundo em volta dela.

–- Quanto mais gente melhor – Tatiana disse, puxando Matheus. Matheus ficou entre Yolanda e Mariana. Os adolescentes (e Matheus) começaram a pular e girar em volta de Esther, e gritaram:

–- Xablau! Xablau!

Esther não sabia o que queria dizer, só sabia que achou engraçado. Deu risada loucamente, até os adolescentes (e Matheus) cansarem de pular.

–- Você é filha de quem? – Natália perguntou, empolgada.

–- Hécate – Esther disse.

–- Qual o feitiço pra ficar ruiva? – Patrícia perguntou. Matheus parecia não entender nada.

–- Disfunção genética – Esther disse.

Passaram-se longos cinco minutos de perguntas sobre a ruivisse de Esther, com os adolescentes pegando seus respectivos refrigerantes da sacola de Matheus, até que eles correram novamente para o bosque, como gatos atrás de peixe. Esther olhou para Matheus, que estava encostado numa árvore, fumando, e olhando pra ela, como se achasse tudo aquilo muito engraçado.

–- Sua mãe levou Tatiana ao médico a primeira vez que ela caiu do berço? – Esther perguntou.

–- Ela nunca caiu do berço. Mas eu a deixei cair do meu colo, uma vez – Matheus lembrou, exalando nicotina novamente.

Esther ficou em silêncio por um momento.

–- Você vai entrar no encontro? – ela perguntou.

–- Eu não entendo nada desse tal de Percy Jackson – Matheus disse.

–- Hum. Se você fosse filho de algum deus, você seria de Hades. Ou Dionísio.

–- Dionísio? Deus do vinho?

–- É, mas não é por causa disso. Ele é parecido com você. Ou... Você é parecido com ele.

–- Não entendi.

–- Ele é que nem você. Indiferente. Arrogante. Infantil. Engraçado.

–- Eu sou arrogante?

–- Muito.

–- Ah. E infantil?

–- Mais ainda.

Passou-se um minuto de silêncio.

–- Ele fuma? – perguntou Matheus.

–- Quem? – indagou Esther

–- Dionísio. Ele fuma?

–- Não.

–- E Hades?

–- Não sei. Provavelmente sim.

–- Eu sou parecido com Hades?

–- Sim.

–- Em que sentido?

–- Você é espontâneo. Não pensa antes de falar. Faz o que quer fazer, e não se importa. Mas ao mesmo tempo você é divertido, e... – Esther ia dizer “bonito”, mas não seria a palavra certa para qualificar Hades. – arrogante, inteligente – concluiu, por fim.

–- Então eu sou filho de Hades – Matheus puxou novamente a nicotina para seus pulmões, manteve na boca por um minuto, depois soprou. Estendeu o cigarro para Esther. – Tem certeza que não quer?

–- Eu trato dependentes químicos. Não sou uma deles – Esther disse.

–- Uuuuui. Tá bom. Parei de insistir.

Esther ainda estava com seu copo de mate na mão. Bebeu novamente, mas desistiu.

–- Você não quer? – ela perguntou, enquanto Matheus ria.

–- Não. Não gosto de chá – ele disse, apagando o cigarro na árvore e arremessando a bituca no lixo. Acendeu outro e tragou.

–- E eu não gosto de cigarro, mas você continua insistindo – Esther rebateu.

–- Eu vou jogar esse chá no chão – Matheus disse.

Esther ficou em silêncio, olhando para o céu cinza.

–- O que eles disseram? – ela perguntou.

–- Eles quem? – Matheus perguntou.

–- Os amigos da sua irmã. O que eles disseram quando você mostrou meu telefone?

–- Eles disseram que eu devia te ligar de volta.

–- E você?

–- O que tem eu?

–- Você ia ligar de volta?

Matheus enfiou rapidamente o cigarro na boca. Inalou por um longo minuto, permaneceu com a fumaça na boca desnecessariamente, depois exalou devagar.

–- Eu ia esperar você ir ao sebo – ele respondeu, por fim.

–- Não foi isso que eu perguntei – Esther insistiu.

–- Ah. Sei lá. Talvez eu ligasse depois.

–- Hum. Que bom.

–- Mas eu disse pra eles não se precipitarem – Matheus adicionou.

Não devia ter dito, Esther pensou. Ficou quieta, fitando a copa das árvores.

O que seria aquilo? Um flerte?

–- Vou entrar no encontro – Esther disse, pra evitar silêncios incômodos. – Você vem?

Matheus olhou pra ela por um momento, depois enfiou as mãos nos bolsos e andou ao lado dela.

Tudo já estava dito.


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Notas finais do capítulo

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