Chá com leite. escrita por Isadora Nardes
Notas iniciais do capítulo
Sem música do capítulo dessa vez. Se lembrarem de uma que combina, deixem nos comentários.
“Me chama de Mat”.
Idiota!, Matheus pensou.
Ele acendeu o cigarro e ficou ali, encostado na janela do restaurante, sentindo os olhos de Esther em suas costas. Tragou o máximo de podia, fazendo seus pulmões quase estourarem de tanta nicotina, depois soltou a fumaça, vendo-a rodopiar no ar frio de Junho.
Sentiu o gosto de Lucky Strike em sua boca, e observou o fogo na ponta do cigarro o consumir lentamente. Tragou novamente, dessa vez incomodado com a sensação estranha que deixara para dentro do restaurante.
Ele se encolheu em sua blusa de lã. Não sabia como a garota ruiva podia aguentar o frio, vestindo apenas uma blusa de manga comprida e uma calça jeans.
Quem disse que ela está só de blusa comprida?, uma voz perguntou, dentro de sua cabeça.
Bem que eu adoraria descobrir, Matheus respondeu.
Jogou o toco de cigarro na calçada, e amassou com o pé.
Entrou dentro do restaurante, mais feliz com a sensação de ar quente. Voltou para a mesa, onde Esther vasculhava sua bolsa desesperadamente.
–- Shit... – ela murmurava, baixinho. – Shit, shit, shit!
–- Hum, calma – Matheus disse, sentando-se a mesa. – O que é tão importante a ponto de você xingar em inglês?
–- My knees... – Esther murmurou, vasculhando onde já tinha vasculhado.
–- Hum?
–- Minhas chaves!
–- Ah.
Matheus olhou para a mesa.
–- Seriam essas aqui? – ele apontou para um chaveiro ao lado do pote de gelatina.
Esther levantou os olhos pra ele, depois olhou pra chave. Ficou vermelha, e grunhiu:
–- Obrigada.
Matheus deu risada. Era engraçada a maneira como inglesas ficavam envergonhadas. Esther pegou o molho de chaves e enfiou dentro da bolsa, como se estivesse decidida a comer sua refeição em silêncio.
Matheus começou a devorar sua gelatina. Esther ergueu os olhos pra ele, deu uma risadinha e voltou seus olhos para o prato.
–- O que foi? – Matheus perguntou, sem esperar terminar de engolir para enfiar mais gelatina na boca.
–- Tem gelatina no seu nariz – Esther disse.
Matheus colocou a palma da mão da ponta de seu nariz. Afastou a gelatina para o chão, e continuou a comer. Passaram-se cinco minutos, e Esther terminou seu prato. Limpou a boca e amassou o guardanapo.
Matheus ficou um pouco incomodado quando Esther ficou fitando-o, então puxou conversa.
–- Hum, porque “más companhias”?
–- Hã?
–- Tipo, você disse que seus pais reclamavam que você andava em más companhias. Como assim?
–- Ex-dependentes químicos.
–- Tipo, maconheiros?
–- Quase todo mundo lá fuma maconha. Tipo, ex-viciados em heroína, cocaína.
–- Ah. E porque você anda com eles?
–- Eu faço trabalho voluntário numa clínica de reabilitação. Esses caras viram meus amigos depois que ficam limpos.
–- E seus pais nãos gostam?
–- Minha mãe não gosta só porque tem caras negros. Meu pai não gosta porque ele odeia drogas. O que é irônico, já que ele é fumante.
–- Seu pai é hipócrita, então?
–- Completamente.
–- Aquela velha... Desculpa, aquela idosa. Aquela é sua mãe? A que estava aqui com você?
–- Não. Minha tia. Irmã da minha mãe.
–- Ah. Você tá ligada que ela parece um pão fatiado fazendo cosplay da rainha da Inglaterra, né?
Esther deu risada.
–- Aham. Ela é bem brega – Esther concordou.
–- Ninguém avisou isso pra ela?
–- Ela já tá quase morrendo. Deixa ela ser brega enquanto pode.
Foi à vez de Matheus rir.
–- Ela é preconceituosa também? – ele perguntou.
–- Não é racista nem homofóbica. Mas ela exterminaria todos os muçulmanos do mundo, se pudesse.
–- Hum... – Matheus pensou. – Os Estados Unidos já estão fazendo isso por ela. Mas qualquer dia desses você pode aparecer na sua casa com um negro muçulmano e gay, só pra ver o que acontece.
Esther precisou de três minutos para parar de rir.
–- O mundo vai rachar ao meio – Esther concluiu, por fim.
O clima de riso ficou no ar por certo tempo, enquanto Matheus observava as pessoas lá fora, com seus casacos de lã.
–- Como você aguenta? – Matheus perguntou, de repente.
–- Aguento o que? – Esther perguntou.
–- Ficar só com essa blusa.
–- Ah. Lá na Inglaterra é mais frio, mesmo no verão.
–- Lá é verão agora, hã?
–- Uhum. As pessoas estão de blusa de algodão, e só.
–- Meu Deus. Vocês devem ser feitos pra se decompor e virar neve, porque não é possível...
Esther riu.
–- Mais lá em Nova York é mais frio ainda – ela disse.
–- Você foi pra Nova York? – Matheus perguntou.
–- Uhum. Na verdade, eu fui visitar meu primo Yohan. Mas eu saí antes, por que... Bom, a esposa dele é uma merda.
–- Como assim?
–- Ela é uma nazifascista morando no Brooklyn. Acho que dá pra imaginar o que acontece.
Matheus riu.
–- Tua família não é muito normal, é? – ele perguntou.
–- Hã. Você também não é – ela disse.
–- Não, não sou – ele concordou.
Os dois ficaram se fitando, como se não houvesse mais nenhum assunto sobre o qual conversar.
–- Hum, no que você trabalha? – Esther puxou assunto.
–- Tô na faculdade de medicina. Trabalho meio período num sebo. Sabe como é, a faculdade já tá paga, mas ainda tem custo de material, fora meus cigarros e conta de luz, água, telefone. E você?
–- Eu faço psicologia.
–- E trabalha em...?
–- Hum, eu não trabalho, na verdade. Já tá tudo pago. Eu guardei dinheiro da herança do meu vô desde que ele morreu. Eu tinha... Hm, 11 anos.
–- Oxe. Imagina quantos cigarros dá pra comprar – Matheus pegou a caixa de cigarros e abanou.
–- Você idolatra nicotina?
–- Você não?
–- Você está fazendo medicina. Eu jamais iria a um médico que fuma.
–- Se você soubesse quantos amigos meus da faculdade fumam...
–- Eles não vão nem pra residência.
–- Não?
–- Não. E você também não.
–- Ah, eu vou sim. Eu sou um aluno esforçado – Matheus guardou o cigarro no bolso novamente. – Por mais que você ache que não.
–- Eu acho.
–- E quantos anos você acha que eu tenho?
–- Hum... 19.
–- 19?
–- Sim. Você é muito infantil.
–- Eu tenho 24.
23 e meio, uma voz disse, em sua cabeça.
–- Ah. E quantos anos você acha que eu tenho? – Esther perguntou.
Matheus a observou. Ela tinha bochechas pálidas e sardentas, tinha uma testa sem espinhas e um sorriso fechado.
–- 22 – Matheus disse. Esther balançou a cabeça. – 21? 23? 49? Estou perto?
Esther riu.
–- 25 – ela disse. Matheus bateu na mesa.
–- 25 e nunca fumou? – ele perguntou.
–- Já disse que não fumo. Na realidade, eu odeio cigarros.
–- Odeia quem fuma, também?
–- Não.
Matheus ficou estranhamente feliz em ouvir aquilo.
–- Hm, em que sebo você trabalha? – Esther perguntou.
–- Ah, você não conhece.
–- Eu só trouxe livros de psicologia. Talvez eu passe por lá pra comprar algum livro.
–- Mundial Books – Matheus disse. – Você já leu... A Cidade das Ilusões?
–- Não. Sobre o que é?
–- Tem esse garoto, David, e essa garota, Míriam. Eles são irmãos, e moram na Inglaterra. A mãe deles morreu, eles moram com os avós, e blá-blá-blá. Daí o pai deles aparece, do nada, e ele ficou rico. Daí ele leva os dois pra Nova Orleans, e...
–-... Ela se casa com um cara por pura obrigação, o David briga com o pai por causa da abolição de escravos, depois ele vai para o outro lado do país e se forma médico, mas acaba tendo que lutar na guerra...
–-... E a Míriam se apaixona pelo André, e o Gabriel se apaixona pela Míriam...
–- Etc. etc. Sei. Já li.
–- Aham. Foi o melhor livro que eu já li.
–- Melhor que Les Misérables?
–- Eu não li Les Misérables.
–- Não leu Les Misérables?
–- Não.
–- Meu Deus. Como você sobreviveu sem ler esse livro? É tipo... O melhor livro.
–- Ah. Uma inglesa não devia dizer isso.
–- Por quê?
–- Vocês tem a Rowling.
–- E vocês tem Machado de Assis.
–- Uma inglesa que leu Machado de Assis – Matheus riu. – Certo.
Esther tirou um bloco de notas da mochila, depois uma caneta, e começou a escrever. Matheus observou suas unhas curtas e lisas, e se perguntou por que inglesas não pintavam as unhas.
Ela arrancou uma folha do bloco e estendeu para Matheus, que inclinou a cabeça para ler.
–- Um número de telefone? – ele perguntou.
–- Meu número de telefone – Esther corrigiu. Ela se levantou e colocou o bloco de notas e a caneta na mochila, depois tirou a carteira. Matheus a observou andar até o balcão, onde um chinês mal-encarado esperava as pessoas pagarem. Ela deu uma nota pra ele, ele murmurou algo e ela negou com a cabeça. Ela recebeu algumas moedas, e voltou para a mesa, enquanto guardava a carteira e colocava a mochila nas costas.
Matheus estava boquiaberto.
–- Aquele cara sabe falar? – ele perguntou. Esther riu.
–- Aham. Ele é bem legal, você só precisa forçar um pouquinho – ela disse.
Força com ela, uma voz na cabeça de Matheus disse. Ele a ignorou.
–- Hum... Tchau. Boa sorte com... O que quer que você esteja fazendo – ele disse.
–- Eu to aqui só pra relaxar um pouco, mesmo – Esther disse, tirando o cabelo alaranjado debaixo da alça da mochila. – E você?
–- Eu estou de férias. Minha missão de inverno é não fazer nada e trabalhar no sebo.
Esther riu novamente.
–- Hum. Boa sorte em não fazer nada – ela disse.
–- Tchau – ele balbuciou. Ela acenou e andou pela porta, em direção ao frio.
Matheus precisou de um minuto antes de conseguir pegar o papel em cima da mesa e guardar no bolso.
Levantou-se, tirou a carteira do bolso e foi até o balcão. O chinês mal-encarado tinha olhos com pés de galinha e um rosto enrugado. Matheus estendeu o dinheiro, mas o homem recusou e disse:
–- Aquela garota já pagou pra você.
Matheus ficou olhando para o cara, achando que era brincadeira. Mas ele manteve o rosto impassível. Matheus balbuciou um “boa tarde”, e colocou a carteira novamente no bolso.
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!