Chá com leite. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 5
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Sem música do capítulo dessa vez. Se lembrarem de uma que combina, deixem nos comentários.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/596926/chapter/5

“Me chama de Mat”.

Idiota!, Matheus pensou.

Ele acendeu o cigarro e ficou ali, encostado na janela do restaurante, sentindo os olhos de Esther em suas costas. Tragou o máximo de podia, fazendo seus pulmões quase estourarem de tanta nicotina, depois soltou a fumaça, vendo-a rodopiar no ar frio de Junho.

Sentiu o gosto de Lucky Strike em sua boca, e observou o fogo na ponta do cigarro o consumir lentamente. Tragou novamente, dessa vez incomodado com a sensação estranha que deixara para dentro do restaurante.

Ele se encolheu em sua blusa de lã. Não sabia como a garota ruiva podia aguentar o frio, vestindo apenas uma blusa de manga comprida e uma calça jeans.

Quem disse que ela está só de blusa comprida?, uma voz perguntou, dentro de sua cabeça.

Bem que eu adoraria descobrir, Matheus respondeu.

Jogou o toco de cigarro na calçada, e amassou com o pé.

Entrou dentro do restaurante, mais feliz com a sensação de ar quente. Voltou para a mesa, onde Esther vasculhava sua bolsa desesperadamente.

–- Shit... – ela murmurava, baixinho. – Shit, shit, shit!

–- Hum, calma – Matheus disse, sentando-se a mesa. – O que é tão importante a ponto de você xingar em inglês?

–- My knees... – Esther murmurou, vasculhando onde já tinha vasculhado.

–- Hum?

–- Minhas chaves!

–- Ah.

Matheus olhou para a mesa.

–- Seriam essas aqui? – ele apontou para um chaveiro ao lado do pote de gelatina.

Esther levantou os olhos pra ele, depois olhou pra chave. Ficou vermelha, e grunhiu:

–- Obrigada.

Matheus deu risada. Era engraçada a maneira como inglesas ficavam envergonhadas. Esther pegou o molho de chaves e enfiou dentro da bolsa, como se estivesse decidida a comer sua refeição em silêncio.

Matheus começou a devorar sua gelatina. Esther ergueu os olhos pra ele, deu uma risadinha e voltou seus olhos para o prato.

–- O que foi? – Matheus perguntou, sem esperar terminar de engolir para enfiar mais gelatina na boca.

–- Tem gelatina no seu nariz – Esther disse.

Matheus colocou a palma da mão da ponta de seu nariz. Afastou a gelatina para o chão, e continuou a comer. Passaram-se cinco minutos, e Esther terminou seu prato. Limpou a boca e amassou o guardanapo.

Matheus ficou um pouco incomodado quando Esther ficou fitando-o, então puxou conversa.

–- Hum, porque “más companhias”?

–- Hã?

–- Tipo, você disse que seus pais reclamavam que você andava em más companhias. Como assim?

–- Ex-dependentes químicos.

–- Tipo, maconheiros?

–- Quase todo mundo lá fuma maconha. Tipo, ex-viciados em heroína, cocaína.

–- Ah. E porque você anda com eles?

–- Eu faço trabalho voluntário numa clínica de reabilitação. Esses caras viram meus amigos depois que ficam limpos.

–- E seus pais nãos gostam?

–- Minha mãe não gosta só porque tem caras negros. Meu pai não gosta porque ele odeia drogas. O que é irônico, já que ele é fumante.

–- Seu pai é hipócrita, então?

–- Completamente.

–- Aquela velha... Desculpa, aquela idosa. Aquela é sua mãe? A que estava aqui com você?

–- Não. Minha tia. Irmã da minha mãe.

–- Ah. Você tá ligada que ela parece um pão fatiado fazendo cosplay da rainha da Inglaterra, né?

Esther deu risada.

–- Aham. Ela é bem brega – Esther concordou.

–- Ninguém avisou isso pra ela?

–- Ela já tá quase morrendo. Deixa ela ser brega enquanto pode.

Foi à vez de Matheus rir.

–- Ela é preconceituosa também? – ele perguntou.

–- Não é racista nem homofóbica. Mas ela exterminaria todos os muçulmanos do mundo, se pudesse.

–- Hum... – Matheus pensou. – Os Estados Unidos já estão fazendo isso por ela. Mas qualquer dia desses você pode aparecer na sua casa com um negro muçulmano e gay, só pra ver o que acontece.

Esther precisou de três minutos para parar de rir.

–- O mundo vai rachar ao meio – Esther concluiu, por fim.

O clima de riso ficou no ar por certo tempo, enquanto Matheus observava as pessoas lá fora, com seus casacos de lã.

–- Como você aguenta? – Matheus perguntou, de repente.

–- Aguento o que? – Esther perguntou.

–- Ficar só com essa blusa.

–- Ah. Lá na Inglaterra é mais frio, mesmo no verão.

–- Lá é verão agora, hã?

–- Uhum. As pessoas estão de blusa de algodão, e só.

–- Meu Deus. Vocês devem ser feitos pra se decompor e virar neve, porque não é possível...

Esther riu.

–- Mais lá em Nova York é mais frio ainda – ela disse.

–- Você foi pra Nova York? – Matheus perguntou.

–- Uhum. Na verdade, eu fui visitar meu primo Yohan. Mas eu saí antes, por que... Bom, a esposa dele é uma merda.

–- Como assim?

–- Ela é uma nazifascista morando no Brooklyn. Acho que dá pra imaginar o que acontece.

Matheus riu.

–- Tua família não é muito normal, é? – ele perguntou.

–- Hã. Você também não é – ela disse.

–- Não, não sou – ele concordou.

Os dois ficaram se fitando, como se não houvesse mais nenhum assunto sobre o qual conversar.

–- Hum, no que você trabalha? – Esther puxou assunto.

–- Tô na faculdade de medicina. Trabalho meio período num sebo. Sabe como é, a faculdade já tá paga, mas ainda tem custo de material, fora meus cigarros e conta de luz, água, telefone. E você?

–- Eu faço psicologia.

–- E trabalha em...?

–- Hum, eu não trabalho, na verdade. Já tá tudo pago. Eu guardei dinheiro da herança do meu vô desde que ele morreu. Eu tinha... Hm, 11 anos.

–- Oxe. Imagina quantos cigarros dá pra comprar – Matheus pegou a caixa de cigarros e abanou.

–- Você idolatra nicotina?

–- Você não?

–- Você está fazendo medicina. Eu jamais iria a um médico que fuma.

–- Se você soubesse quantos amigos meus da faculdade fumam...

–- Eles não vão nem pra residência.

–- Não?

–- Não. E você também não.

–- Ah, eu vou sim. Eu sou um aluno esforçado – Matheus guardou o cigarro no bolso novamente. – Por mais que você ache que não.

–- Eu acho.

–- E quantos anos você acha que eu tenho?

–- Hum... 19.

–- 19?

–- Sim. Você é muito infantil.

–- Eu tenho 24.

23 e meio, uma voz disse, em sua cabeça.

–- Ah. E quantos anos você acha que eu tenho? – Esther perguntou.

Matheus a observou. Ela tinha bochechas pálidas e sardentas, tinha uma testa sem espinhas e um sorriso fechado.

–- 22 – Matheus disse. Esther balançou a cabeça. – 21? 23? 49? Estou perto?

Esther riu.

–- 25 – ela disse. Matheus bateu na mesa.

–- 25 e nunca fumou? – ele perguntou.

–- Já disse que não fumo. Na realidade, eu odeio cigarros.

–- Odeia quem fuma, também?

–- Não.

Matheus ficou estranhamente feliz em ouvir aquilo.

–- Hm, em que sebo você trabalha? – Esther perguntou.

–- Ah, você não conhece.

–- Eu só trouxe livros de psicologia. Talvez eu passe por lá pra comprar algum livro.

–- Mundial Books – Matheus disse. – Você já leu... A Cidade das Ilusões?

–- Não. Sobre o que é?

–- Tem esse garoto, David, e essa garota, Míriam. Eles são irmãos, e moram na Inglaterra. A mãe deles morreu, eles moram com os avós, e blá-blá-blá. Daí o pai deles aparece, do nada, e ele ficou rico. Daí ele leva os dois pra Nova Orleans, e...

–-... Ela se casa com um cara por pura obrigação, o David briga com o pai por causa da abolição de escravos, depois ele vai para o outro lado do país e se forma médico, mas acaba tendo que lutar na guerra...

–-... E a Míriam se apaixona pelo André, e o Gabriel se apaixona pela Míriam...

–- Etc. etc. Sei. Já li.

–- Aham. Foi o melhor livro que eu já li.

–- Melhor que Les Misérables?

–- Eu não li Les Misérables.

–- Não leu Les Misérables?

–- Não.

–- Meu Deus. Como você sobreviveu sem ler esse livro? É tipo... O melhor livro.

–- Ah. Uma inglesa não devia dizer isso.

–- Por quê?

–- Vocês tem a Rowling.

–- E vocês tem Machado de Assis.

–- Uma inglesa que leu Machado de Assis – Matheus riu. – Certo.

Esther tirou um bloco de notas da mochila, depois uma caneta, e começou a escrever. Matheus observou suas unhas curtas e lisas, e se perguntou por que inglesas não pintavam as unhas.

Ela arrancou uma folha do bloco e estendeu para Matheus, que inclinou a cabeça para ler.

–- Um número de telefone? – ele perguntou.

–- Meu número de telefone – Esther corrigiu. Ela se levantou e colocou o bloco de notas e a caneta na mochila, depois tirou a carteira. Matheus a observou andar até o balcão, onde um chinês mal-encarado esperava as pessoas pagarem. Ela deu uma nota pra ele, ele murmurou algo e ela negou com a cabeça. Ela recebeu algumas moedas, e voltou para a mesa, enquanto guardava a carteira e colocava a mochila nas costas.

Matheus estava boquiaberto.

–- Aquele cara sabe falar? – ele perguntou. Esther riu.

–- Aham. Ele é bem legal, você só precisa forçar um pouquinho – ela disse.

Força com ela, uma voz na cabeça de Matheus disse. Ele a ignorou.

–- Hum... Tchau. Boa sorte com... O que quer que você esteja fazendo – ele disse.

–- Eu to aqui só pra relaxar um pouco, mesmo – Esther disse, tirando o cabelo alaranjado debaixo da alça da mochila. – E você?

–- Eu estou de férias. Minha missão de inverno é não fazer nada e trabalhar no sebo.

Esther riu novamente.

–- Hum. Boa sorte em não fazer nada – ela disse.

–- Tchau – ele balbuciou. Ela acenou e andou pela porta, em direção ao frio.

Matheus precisou de um minuto antes de conseguir pegar o papel em cima da mesa e guardar no bolso.

Levantou-se, tirou a carteira do bolso e foi até o balcão. O chinês mal-encarado tinha olhos com pés de galinha e um rosto enrugado. Matheus estendeu o dinheiro, mas o homem recusou e disse:

–- Aquela garota já pagou pra você.

Matheus ficou olhando para o cara, achando que era brincadeira. Mas ele manteve o rosto impassível. Matheus balbuciou um “boa tarde”, e colocou a carteira novamente no bolso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!