Chá com leite. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Your Life Is a Lie (MGMT)



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Capítulo 2

Esther não tinha certeza se deixar a mochila atrás das costas era uma boa ideia.

Claro, não havia nada de muito valor na mochila dela, apenas livros em inglês e um tablet (que já tinha uns bons quatro anos), mas ela definitivamente não estava com vontade de ser roubada.

As ruas tinham o movimento que sempre tinham numa terça-feira no horário do almoço. Esther apenas via os casacos de lã que pesavam cinco kg ou três toneladas e se sentia grata por não precisar vestir aquilo. Estava mais acostumada com o frio do que qualquer um naquela cidade.

Aquela fora uma cidade muito bem indicada pelos seus guias turísticos – que, no caso, eram seus pais. Embora tivesse um alto índice de machismo, e fosse uma das 160 cidades mais caras do mundo, Esther não via problema. Afinal, a Liverpool estava pior. E, fora isso, seria bom visitar a cidade natal de seus pais.

Fez questão de fazer um curso de português antes de chegar no Brasil. Pensou que seria uma língua muito enrolada, cheia de onomatopeias e palavras impronunciáveis, mas descobriu que era muito mais fácil de falar do que parecia.

–- Está no seu sangue – seu pai, Tobias, lhe dissera. Ela rira e dissera:

–- Tomara. Lá parece muito bom.

–- Você vai gostar – afirmara sua mãe, Rosalinda (que, na Inglaterra, exigia ser chamada de Rose, e exigia, também, que Tobias fosse pronunciado como “Tobaias”). – Só... Fique longe dos pretos.

Esther suspirou. Racismo era só mais um dos milhares de defeitos que sua mãe tinha. Por sorte, seu pai sempre tivera aquelas conversas em particular com ela, dizendo que o que sua mãe dizia sobre os negros era bobagem.

–- Eles não são diferentes de nós – ele sempre dissera.

Esther sempre entendera.

Por outro lado, não significava que seu pai não tinha nenhum preconceito. Se dependesse dele, os gays seriam absolutamente exterminados do mundo, evaporariam, como se nunca estivessem estado lá.

Desde que chegara ali, percebeu que os dois provavelmente haviam sido muito infelizes ali. Para a desgraça de sua mãe, havia bastante negros – em suas maiorias imigrantes, mas ainda sim eram negros. E, para a desgraça de seu pai, havia muitos gays.

Esther ainda não compreendia como não puxou nenhum desses dois preconceitos. Se bem que ela mesma também não era absolutamente perfeita – um dia, arranjara um namorado negro e bissexual, apenas para ver a reação dos pais.

–- Tire esse criado daqui – a mãe dissera, “gritando em voz baixa”.

–- Nunca pensei que um bichinha desses ia entrar na minha casa – o pai murmurara, mal humorado, com os lábios implorando por um cigarro.

Esther dera altas gargalhadas as expressões deles. Não se sentiu muito culpada, embora achasse que deveria.

Que idiotice a minha, ela pensou, anos mais tarde.

Chegou, finalmente, ao restaurante onde marcara de encontrar a sua tia, Clara. Entrou, e o cheiro de comida fresca lembrou-a que estava com fome. Porém, não iria comer até que os parentes decidissem fazer isso também.

Esther passou os olhos pelo lugar, mas não achou os parentes. Ela resolveu se sentar numa mesa perto da janela. Largou a mochila ali e ficou olhando o movimento. Para o tamanho do restaurante, estava com movimento médio.

Nesse momento, sentiu uma mão em seu ombro. Virou-se, e deu de cara com uma velhinha que parecia um pãozinho de alho.

–- Tia Clara – Esther se surpreendeu. O rosto da tia costumava ser fixo, com sombras de um sorriso permanente. Naquele momento, ela estava toda enrugada, com linhas realçando a pele flácida e caída. Esther pensou que ela parecia um bulldog velho, com o sorriso meio-aberto apenas com a linguinha rosa pra fora.

–- Esther, querida! – Tia Clara disse, dando-lhe um beijo em cada bochecha. Sentou-se na cadeira da frente. . – Ah, cada dia mais linda!

Esther queria realmente poder dizer o mesmo. Nos anos que não vira sua tia, Clara desenvolvera um estilo brega, algo que poderia ser chique, se não tivesse um toque de peruisse tão grande. Uma camiseta rosa clara de gola, com um lenço marrom por cima, e uma saia do mesmo tom faziam-na parecer uma embalagem de pão fatiado.

O chapéu era a pior parte. Rosa, com uma pena azul saindo, como se Tia Clara resolvesse, de repente, virar a rainha da Inglaterra. Esther sorriu, fazendo força para a tia não perceber que, na verdade, estava achando-a muito engraçada.

–- Como foi à viagem, querida? – a tia perguntou. Esther ficou séria, mas calma.

–- Foi ótima, tia – disse, devagar, com medo de soltar algo que se arrependesse depois. – Faltaram refrigerantes, mas tinham tantos sucos que nem se percebia. Haha.

A tia deu uma gargalhada. Era um som estranho, como se ela estivesse tossindo e engasgando ao esmo tempo. Esther pensou que ela realmente estivesse engasgando, mas a tia parou de rir e deu um sorriso com os dentes velhos.

–- Que bom, querida! Faz um tempo que eu não viajo. Para onde você acha que eu poderia ir? – a tia perguntou. – Eu gostaria de ir para um lugar quente!

–- A Califórnia é legal – Esther ia dizer “Índia”, porém não achava que sua tia se encaixaria bem na paisagem. – Hum, tem umas cidades sul-americanas... Acho que você ia gostar da Guiana francesa, tia.

–- Hum... Ainda é colônia da França?

–- Sim, tia.

–- Ah, compreendo. Bem, pode ser legal. Vou consultar meu agente de viagens.

Esther considerava essa coisa de “agente de viagens” uma viadagem, mas deu um sorriso e continuou:

–- Hum, como está Cath? – perguntou. A tia entrou na defensiva.

–- Morta – disse, rispidamente.

Esther gelou. Pensou que era brincadeira, mas sabia que a tia não fazia brincadeiras. Ela umedeceu os lábios, e balbuciou:

–- M-meus pêsames.

A tia pareceu se contrair ainda mais. De repente, ela parecia um pão fatiado raivoso.

–- Pare de ser falsa – Clara disse. – Ela arrancou dois dentes seus quando você tinha oito anos. Você a odiava.

–- Odiar é uma palavra muito forte para... – Esther começou. A tia interrompeu.

–- Meu deus, Esther! Você sabe que eu não me dou com sua mãe. Você não se dava com Cath também. Não precisa fingir que todos nessa família se amam.

Esther comprimiu os lábios.

–- Eu não estou fingindo que amava ela. Só estou lamentando a sua morte – disse.

–- Você não lamentaria nem se ela tivesse sido torturada por dois dias – a tia disse. Aquelas palavras não combinavam com o jeito delicado e cortês de Clara. – Sorte que ela morreu num acidente de ônibus. Não preciso de seus pêsames.

Esther estava com a boca seca.

Veja bem, Esther não era boa com conversas inconvenientes, com discussões nem com climas tensos. Porém, tia Clara parecia fazer questão de mostrar que odiava a mãe de Esther, e que sabia que Esther odiava Cath.

Esther tentava não odiá-la.

–- Hum... Tia, vamos mudar de assunto? – Esther implorou, um pouco desesperadamente.

–- Claro. Como está Tobias? – a tia mudou totalmente a postura.

–- Ah, está bem. Quer dizer, ele está bravo comigo porque metade dos meus amigos é homo ou bissexual, mas ele está bem.

A tia riu.

–- Aquele velho nunca se deu com gays. Quando ele descobriu que Teodhore era gay, ele tentou renegá-lo completamente da família.

–- Sem sucesso – Esther completou, satisfeita.

Esther lembrava-se vagamente de seu primo Teodhore: louro, com olhos azuis opacos, uma pele branca que ficava um pouco vermelha demais quando tomava sol; ombros largos e braços fortes. Lembrava-se também que a mãe sempre achava que Esther e Theodore dariam um ótimo casal. Esther sempre lançava olhares de censura à mãe por conta disso. Lembrava também dos suspiros de suas amigas e dos cochichos.

–- Ele é tão gato!

–- Meu Deus, que braço, ein.

–- Deve segurar muitas coisas pra ter esses músculos... Poderia segurar as minhas.

Esther lembrava, principalmente, da reação da família ao descobrir que Theodore era gay. A mãe de Esther deu de ombros quando soube da homossexualidade, mas, ao descobrir que o namorado de Theodore era um negro, assustou-se, perguntou se Theodore estava usando drogas, e disse:

–- Esther faz trabalho voluntário numa clínica de reabilitação. Podemos ajudar vocês.

–- Ajudar Aaron? – Clara perguntou.

–- Não, Theodore. Certamente tem algo errado com seu filho, Clara. Sentir atração por uma pessoa de cor! Há!

O pai de Esther fizera uma cara de nojo que poderia virar um meme, e começara a tratar Theodore como se este fosse um resto de aborto de urubu – ignorando o rapaz, fingindo que não ouvia o que ele dizia, desviando os olhos quando Theodore apareceu com seu namorado, Aaron, na ceia de Natal, quando Esther tinha sete anos. A mãe de Theodore, Clara, que ainda encarava Esther com seus olhos cor de mel, ficara chocada, mas após conhecer Aaron começou a tratá-los como se fossem um casal qualquer. O pai de Theodore, Edward, ficou indignado, esbravejou e chamou a polícia. Quando os policiais chegaram, Edward disse:

–- Meu filho é gay! Isso é uma ofensa moral a família!

Os policiais se entreolharam, deram de ombros e disseram:

–- Não podemos fazer nada, senhor.

–- Não podem dar um remédio pra ele? Tem que ter uma cura pra isso!

–- Não é uma doença, senhor.

Após isso, Edward e Tobias começaram há passar muito tempo juntos. Faziam o que eles chamavam de “coisas de homem”: consertavam carros, reformavam as casas um do outro, jogavam sinuca, bebiam, observavam seus arsenais e poliam duas armas. Apesar disso, os dois eram absolutamente diferentes: Tobias era calmo, controlado, do tipo que jogava Golfe aos sábados, preferia vinho à cerveja e se recusava delicadamente a não ir à Igreja com a esposa. Edward era espontâneo e falante, adorava praticar tiro ao alvo, e fazia questão fechada de espalhar para os sete ventos que não acreditava em deus, ralhando com a esposa quando ela fazia uma menção a Maria Mãe de Deus, a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro ou a qualquer outra santa cuja Clara adorava. Certo dia, Clara encontrou Edward mandando e desmandando em Tobias, que pregava um grande cartaz numa estaca de madeira.

–- O que diabos é isso, Edward? – Clara perguntou.

–- A “Associação dos machos” – Edward esclarecera. Clara olhara para o marido, baixo e barrigudo, e precisou perguntar a si mesma porque casara com ele. Olhou para Tobias: um homem alto, com cabeleira branca despenteada. Tobias, por mais homofóbico que fosse, tinha um olhar desesperado, como se implorasse para Clara tirá-lo das mãos de Edward.

Clara deu altas gargalhadas.

–- Meu Deus, Edward, não é criando um grupinho fechado que você vai ser mais homem – ela disse. – Trate de deixar Tobias em paz. Ele tem coisas pra fazer. Não tem, Tobias?

–- Hã... – Tobias começou. Edward interrompeu.

–- Ele concordou, Clara!

Quando Esther ouvira a história, precisou de onze ou doze minutos para parar de rir. Theodore, por sua vez, guardou uma mágoa tão profunda e tão obscura do pai que a simples menção do nome de Edward fazia-o contrair-se. Esther percebia isso, e sabia que, delicado como Theodore era, toda essa tristeza não poderia se transformar em raiva, nem se o pai o espancasse. Theodore não sentia raiva: era praticamente uma fortaleza de sentimentos bons, ingenuidade e felicidade. Aaron, por outro lado, ficara indignado com Edward.

–- Não vai nos aceitar! – esbravejara. – Vai ter que aceitar, sim! Humpf, seu próprio filho!

A tagarelice de tia Clara trouxe Esther novamente ao presente.

–-... Sua mãe disse que seus amigos não eram “amáveis”, Esther. O que ela quis dizer com isso.

Esther tentou processar.

–- Hã... Ah, você sabe que ela é bem racista. Eu tenho vários amigos negros – Esther disse, por fim.

–- Eu perguntei se era por causa disso. Ela disse que sim, mas que havia outras coisas. Pode me explicar, Esther?

Esther entendeu de imediato.

–- Hum... Eu faço um trabalho na clínica Clean For Tomorrow, e, muitas vezes quando um paciente se recupera eu acabo formando uma amizade com ele, ou ela. E minha mãe não acha que eu devesse andar com... “essas figuras”.

–- Ah, ela está bravinha porque você tem amigos ex-drogados?

–- Eu chamaria de ex-dependentes químicos, tia.

–- Ah, compreendo. Hm, se eles se recuperaram totalmente, não vejo problemas.

Esther lembrou-se de um dos seus piores casos: Kimberly, uma adolescente que fora abusada durante quatro anos seguidos por seu segundo padrasto, começou a fumar baseado, como a maioria dos jovens em Liverpool fumava. De princípio, nada demais, até pela região na qual ela morava. Porém, quando começaram a aparecer marcas de picada nos braços da garota, Esther resolveu ir até Angel, a diretora da clínica.

–- A garota este em situação de risco – dissera.

–- O máximo que podemos fazer agora é contactar o resto da família – Angel dissera. Esther descobriu que a menina tinha quatro meios-irmãos, três tias vivas, cinco primos e sete sobrinhos.

Como puderam todos ter se esquecido dela?, Esther pensara.

A muito esforço, depois de muitas discussões e de muitos argumentos, a garota concordou em ir para a clínica. Era uma clínica pública, sendo assim tinha muita gente trabalhando de má-vontade, mas Esther exigiu permanentemente tratar a garota.

Depois de três anos, a menina ficou totalmente limpa. Teve vários psiquiatras que desistiram dela, mas Esther lembrou-se de sua prima Olivia, irmã de Theodore e Cath, que era psiquiatra. Olivia, com seu jeito meigo, nem parecia ser da mesma família que Cath, a não ser pelo cabelo louro quase branco.

Esther deve de lembrar a si mesma que Clara ainda estava ali.

–- Hm, e como está Edward? Hm, ouvi dizer que está tolerando Theo em casa novamente – perguntou pra tia.

–- Ah, ele está bem. Sim, Theodore tem tentado se aproximar do pai. Sabe como Ed é... Teimosia pura. Bom, pelo menos ele não grita mais com Theo.

–- Isso é um ponto positivo – Esther concordou. – Tem visto Aaron?

–- Sim! Theo acha que ainda é meio cedo pra trazer ele para jantar na nossa casa. Sabe como é, Edward pode ter um súbito ataque de raiva ou algo assim. Mas Aaron é um rapaz adorável, você sabe. Ah, ele é paisagista. Contei-te que ele que está refazendo nosso jardim?

–- Hm, não contou!

–- Pois é. Já está na segunda semana. O rapaz é muito talentoso, sabe? Absolutamente incrível o trabalho dele com trepadeiras.

Esther concordava no quesito Aaron ser um rapaz adorável. Era bastante emburrado e meio antissocial, mas definitivamente era uma pessoa meiga. Esther lembrava-se de ter comentado com ele que adorava Tulipas. Então, no aniversário de quatorze anos de Esther, ele levara pra ela um vaso com Tulipas de cinco cores diferentes. A partir dali, Esther passou a gostar tanto de Aaron que jamais esquecia seu aniversário.

Sabia que Aaron era talentoso também. O vaso não só tinha essa variedade de tulipas, mas era coberto por unha de gato. Esther simplesmente não entendia como Tobias, Edward e milhões de outros imbecis podiam odiar alguém como Aaron simplesmente porque escolheu ficar com um igual.

–-Hm, você está com fome, querida? – tia Clara perguntou.

–- Um pouco só – mentiu Esther. – Quer comer?

–- Sim. Estou faminta.


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Notas finais do capítulo

Grandinho, não? Vai ter maiores que ele, mas não estão próximos.
~ Desculpem-me a demora pra postar. Só tem um acompanhamento, entende? Desmotivação é foda...