Chá com leite. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Penny Lane (The Beatles)



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A vida nas cidades me enfastia,

Enjoa-me o tropel das multidões,

O sopro do egoísmo e do interesse

Mata-me nalma a flor das ilusões.

Mata-me nalma a flor das ilusões

Tanta mentira, tão fingido rir,

E cheiro forte de tristeza e tédio

Rejeito as glórias de falaz porvir!

Rejeito as glórias de falaz porvir,

Golas e festas, o prazer talvez,

E busco altivo as solidões profundas

Que dormem quedas do Senhor aos pés.

Que dormem quedas do Senhor aos pés,

Ao doce brilho dos clarões astrais,

Ricos de gozos que não tem no mundo,

Pródigas sempre de beleza e paz!

Em Viagem

Matheus abriu a porta de madeira velha, meio podre e torturada pelo tempo. Ela rangeu em protesto, mas, por fim, aceitou se abrir. Ele entrou em casa e fechou a porta, que dessa vez se recusava a fechar.

-- Merda – ele murmurou, forçando a porta. Viu algumas lascas travando a fechadura, e os puxou. Elas caíram no sapato de Matheus, que ele bateu na parede para limpar.

Por fim, trancou a porta que praticamente implorava para ser trocada e respirou fundo.

O cheiro dentro de casa não era muito melhor do que a aparência desta. Tinha um forte cheiro de livros velhos e produto de limpeza – pode parecer bom, mas não é. Eram paredes de um bege desbotado, com prateleiras de livros praticamente lotadas. Os sofás estavam cheios de pelos de gato (isso se devia a dois fatos. 1: Matheus tinha uma preguiça monumental e não via sentido de limpar, sendo que vivia sozinho ali; 2: o gato de Matheus, Pierre, tinha uns treze quilos, e soltava pelos cor de doce-de-leite a cada vez que andava), e, no lugar da poltrona, havia uma cadeira de madeira, igualmente desbotada pelo tempo. O chão era coberto de carpete, mas este era sujo e com coisas espalhadas – livros abertos e envelhecidos, roupas, bugigangas, fragmentos de anotações e, especialmente, ração de gato.

A obscuridade daquele lugar parecia infiltrar-se nos canos, perfurar as paredes e parecia que nunca, jamais, ia ser arrancada dali. O prédio era um prédio de classe média alta, e o apartamento era de Matheus, mas o estado deplorável em que se encontrava era especialmente diferido do resto do corredor. Ao entrar, você poderia ter a sensação de entrar em outra galáxia: um buraco negro onde todas as coisas perdidas iam parar. Porém, por baixo de todo aquele ultraje decorativo, via-se as sombras de um apartamento que num passado distante havia sido novo e reformado, com aquele cheiro de plástico e pó de construção.

De qualquer maneira, Matheus era absolutamente indiferente quanto à decoração, como vocês devem ter percebido. Andou pelo chão até os sofás, sem se desviar de nada no chão, largou a bolsa bege de couro na cadeira e se jogou no sofá maior. Sentiu o algodão do sofá ceder. Era outra coisa que precisava ser trocada.

Ouviu o miado de Pierre. Depois, sentiu as patas do gato por suas pernas, e observou-o sentar sua barriga. O gato o fitou por um momento, com aqueles olhos verde-floresta, depois fechou a cara, encostou o rosto nas próprias patas, e ronronou.

Matheus, inconscientemente, mechia os dedos no pelo de seu gato.

Preciso dar banho nele, Matheus pensou, mas não se moveu. Preciso trocar a porta. Preciso comprar um micro-ondas novo. Preciso trocar o sofá. Preciso pintar isso aqui. Preciso de mais dois pares de sapato.

Preciso de cigarros.

Matheus fechou os olhos, com preguiça de se levantar. Havia ficado na biblioteca desde o momento que abrira até o momento de fechar durante dois dias, estudando para quando as aulas voltassem depois do inverno, mexendo e remexendo em livros de medicina, fuxicando entre as prateleiras da biblioteca pública, com o cheiro peculiar e adorado de livros velhos enchendo o ambiente, e, mesmo que atacasse sua renite, ele não podia parar. Desde a confusão com a segunda amante que seu pai arranjara, Matheus havia se atrasado um pouco nos estudos. Então, voltava ao enorme prédio no centro da cidade e tentava decorar novamente todos os nomes de falanges, falangetas, ossos das pernas, dos braços, do crânio, do cacete a quatro...

O celular, na bolsa, tocou e vibrou, fazendo a bolsa mexer junto. Matheus estendeu a mão, agarrou a bolsa e puxou-a. Tirou o celular lá de dentro e atendeu, preguiçosamente:

-- Alô?

-- Sete dias – uma voz disse, ao telefone.

-- Oi, Tati – Matheus cumprimentou.

-- Droga. Você sempre acerta – ela disse, mas não parecia realmente irritada.

Em seus 14 anos, Tatiana era uma garota de estatura média, cabelos lisos e compridos e olhos castanho-claros sempre animados. Sua aura feliz era imperturbável; no entanto, se ela resolvesse te olhar fixamente, você poderia derreter aos poucos. Era irmã de Matheus.

-- Diga o que foi, Tati – Matheus fechou os olhos novamente, decidido apenas a escutá-la.

-- Mamãe quer ver você – Tatiana disse.

Matheus franziu as sobrancelhas. Desde quando a mãe dele, Úrsula, queria vê-lo?

-- Hum, Tati, você fumou? – ele perguntou. Ela riu sarcasticamente.

-- Não, porra. Quer falar com ela?

-- Você sabe que não.

Ele ouviu Tatiana suspirar.

-- Mat, vocês precisam se falar, e...

-- Não, não precisamos – Matheus interrompeu.

--... E ela está dando o primeiro passo – Tatiana concluiu, ignorando Matheus. – Porra, Mat, ela quer realmente te ver.

-- O problema é dela.

-- Mat...

-- Da pra parar de me chamar de Mat? Eu tenho 24 anos.

-- 23 e meio – Tatiana corrigiu.

Matheus respirou fundo, decidido a não se irritar.

-- Ok, Tati – ele disse. – Pode, por favor, dizer pra mamãe que eu estou muito ocupado fazendo nada para ir vê-la agora?

-- Claro – Tatiana disse, com a voz amena. – E você pode, por favor, ir tomar no cu? Ah, e não se esqueça de me levar no encontro de meios-sangues amanhã.

Matheus apenas ouviu o telefone sendo desligado.

Ele largou o celular no sofá e ficou olhando para o teto.

“A mamãe quer ver você”.

Matheus realmente não estava a fim de ir ver sua velha mãe gorda, orgulhosa, falsa e egocêntrica. Não importava o que tivesse acontecido. Mesmo se alguém tivesse morrido, ele realmente não queria vê-la. Não importava se ele estivesse virando pó de tanto tédio, era melhor ser sugado por um aspirador de pó do que ir vê-la.

Eu preciso de um aspirador de pó novo, Matheus pensou.

Sentou-se no sofá, ouvindo Pierre reclamar. Esfregou os olhos e olhou para a janela. Às sete da noite, o céu já estava escuro, pois era inverno.

Curitiba não conseguia ficar quente por muito tempo, de qualquer maneira. Fora apenas por isso que continuara nela. Se não tivesse raízes profundas ali, teria se mandado para o outro lado do mundo no dia de seu aniversário de 18 anos. Aliás, ele tentara cortar todas as raízes que tinha ali, embora não conseguisse se desapegar de pequenas e estúpidas coisas. Praças cujo amava. Lugares dos quais sentiria falta. Pessoas que jamais sairiam dali. Lojas que só tinham ali.

Coisinhas pequenas e estúpidas que só havia naquela capital. Refrigerante de gengibre. Um parque só para cachorros. Esculturas de tigres no meio de giratórias. Carros de 30 ou mil anos a venda por um preço quase simbólico. Galerias que foram transformadas em lojas que foram transformadas em cafés.

Matheus ouviu o telefone tocar de novo. Não aguentava mais Penny Lane tocando.

Preciso mudar o toque, ele pensou.

-- Alô? – ele atendeu mais irritado do que da última vez.

-- Filho?

Matheus gelou. Teria Tatiana contado para a mãe cada palavra do que ele dissera? Tentou soar indiferente.

-- Oi – ele disse. A voz soou meio esganiçada.

-- Filho. Eu quero falar com você, Mat.

Ouvir seu apelido novamente fez Matheus sentir uma irritação irracional.

-- Está falando – ele respondeu, rispidamente.

-- Filho, eu quero ver você.

-- Tem fotos minhas no facebook.

-- Você não tem facebook, filho.

Matheus ficou encurralado.

-- Fale logo, mãe.

Ele cuspiu a palavra, como se fosse azeda.

-- Matheus – ela pronunciou o nome do filho devagar; Matheus sentiu um tremor no corpo, e sentiu a apele arrepiar. A maneira como ela falou aquilo... Com uma mágoa evidente na voz... O fez sentir culpado. Ele afastou o pensamento e fez força para ouvir. – Eu preciso ver você, meu filho.

Matheus comprimiu os lábios. “Meu filho”. “Filho”. Ela o chamara de filho. Quando fora a última vez que ela o chamara de filho? Não tinha ideia. Ela o chamara assim, do nada! Deveria ele estar feliz? Não tinha certeza. Sentiu-se mais culpado ainda. Depois de dez longos segundos, conseguiu falar:

-- Aonde?

-- Lembra-se do restaurante que eu levava você quando você tinha uns seis anos?

Matheus forçou a memória. Lembrou vagamente de um lugar.

-- Hum... Perto da Carlos Gomes, né?

--Você lembra?

-- Hã-hã.

-- Ótimo. Amanhã ao meio-dia tá bom?

-- Hum... Sim.

-- Ok. Vejo-te lá, filho.

Ela desligou. Matheus sentiu o lábio inferior tremer.

O telefone continuava desligado. Ele fitou a tela, sentindo uma dor enorme no peito. Ele afastou-a e se levantou do sofá. Não percebeu o tamanho de sua fome até a mãe mencionar um restaurante.

Andou até a cozinha. Esta não tinha exatamente uma porta; era apenas um arco desgastado, como se tivessem pegado um martelo e batido repetidas vezes na parede até formar um buraco grande o suficiente para uma pessoa passar. Mesmo assim, Matheus tinha que se encurvar pra passar. Seus 1,85 de altura o incomodavam às vezes.

As paredes da cozinha eram de lajotas, mas estavam cheias de gordura e pingos de molhos que Matheus derramava – veja bem, Matheus era meio (muito) desengonçado. O cômodo era composto de um fogão engordurado, armários empoeirados e cheios de comida pronta e macarrão instantâneo, uma geladeira há tempos não limpa, uma mesa dobrável com quatro cadeiras, e era só.

Matheus abriu a geladeira, cheia de comidas que só se precisava esquentar. Havia kibes prontos, restos de pizza, rocamboles e outras coisas que Matheus não sabia o nome, mas comprou mesmo assim.

Pegou um pedaço de pizza amanhecida, colocou numa frigideira e ligou o fogão. Após três minutos esperando, ele se lembrou de que não deveria colocar pizza na frigideira. Ele, desesperada e estabanadamente, desligou o fogão, jogou o pedaço de pizza numa tigela e bufou. Não sabia absolutamente nada sobre cozinha, a não ser que aquela tigela ia quebrar se ele a colocasse no micro-ondas (ele apenas sabia disso porque havia quebrado uma tigela igual na semana anterior). Então, ele abriu o armário onde deveriam estar os pratos limpos. Não havia nenhum. Ele olhou para a pia, entulhada de louça, implorando para ser lavada. Matheus pegou o prato menos sujo que conseguiu encontrar e passou um papel-toalha; considerou limpo o suficiente.

Colocou a pizza ali e colocou o prato no micro-ondas. O velho eletrônico também estava sujo; era velho, e fazia barulhos estranhos, como se tivesse algo ali gritando pra sair. Matheus achou que três minutos eram o suficiente para esquentar o pedaço de pizza.

Sentou-se na cadeira dobrável e ficou olhando para as paredes. Eram indiferentes pra ele, eram sujas e, em alguns pontos, havia teias de aranha. Matheus tinha absoluto pavor de aranhas.

O micro-ondas apitou repetidas vezes até ele se dar conta de que o pedaço de pizza estava pronto. Ele puxou com força a porta do micro-ondas, que se recusava permanentemente a abrir.

-- Porra! – ele gritou, para o vazio, puxando com mais força. Antes que ele pudesse perceber, o aparelho estava caindo sobre ele, e ele estava dando um grito estridente. O aparelho raspou em sua cabeça, deixando um corte ardente, depois caiu no chão e se despedaçou. A portinhola de vidro espalhou cacos para todo o lugar. Matheus grunhiu: -- Mas... Que... Porra!

Matheus ficou um tempo parado, estirado no chão, pensando em como tudo sempre dava errado.

Por fim, se levantou, pegou o celular e pediu uma pizza.


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Notas finais do capítulo

Sobre "música do capítulo"? Você ouve se quiser, só pra deixar emocionante. Beijos.



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