Chá com leite. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 10
Capítulo 10


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: We Don't Care (MGMT)



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Matheus ficou sem nada para falar. Desesperadamente, procurou algum assunto. Esther odiava cigarros, então ele descartou nicotina como base para uma conversa. Olhou pelas prateleiras. Estava no meio dos maiores autores do mundo, e mesmo assim, nenhum livro lhe veio à cabeça.

Por sorte, Esther era mais inspirada.

–- Hum, posso te perguntar um negócio? – ela perguntou.

Ai, Deus, Matheus pensou.

–- Claro – disse.

–- É sobre a sua mãe – Esther começou. O corpo de Matheus instintivamente entrou na defensiva. Esther percebeu. – Desculpe. Não é da minha conta.

–- Não – Matheus disse. – Não é mesmo. Mas pode perguntar.

Esther rangeu os dentes.

–- Como assim ela... “Trepou com o vizinho”? – Esther perguntou.

Matheus riu alto. Era só aquilo que ela estava curiosa, afinal.

–- Ah, foi quando eu tinha uns dez anos. Na realidade, eu que descobri. Eu tava brincando com um amigo lá do colégio, daí nossa bola caiu no vizinho. Sobrou pro magrelo aqui ir pegar – ele abriu as palmas das mãos, indicando a si mesmo. – Daí, eu vi eles. Só isso.

Esther parecia chocada.

Matheus guardou todo o desapontamento dentro de si, desde aquele dia. Lembrava-se claramente de sua própria mãe se agarrando loucamente com um cara que não era seu pai, enquanto o marido dela estava no computador, na casa ao lado.

Matheus havia pulado novamente o muro, com a bola na mão, e havia ficado encolhido no canto do quintal por uns bons 30 minutos. Depois de sair do seu torpor, ficou trancado no quarto, curtindo sozinho sua decepção.

–- Desculpa – Esther disse, de repente.

–- Por quê? – Matheus perguntou.

–- Por perguntar. Quer dizer... Eu não conheço sua mãe, mas...

Matheus sorriu. Cinco minutos atrás, quando ouvira Fernando bajulando Matheus pelas costas, concluíra que Esther era realmente muito ingênua. Nem havia percebido que Fernando estava fazendo o que sempre fazia: tentando arranjar alguém pra Matheus.

E por que diabos Matheus gostou tanto que fosse Esther?

–- Desculpa mesmo – Esther enfatizou. Matheus fez gesto de deixar pra lá.

–- Se tiver outra coisa pra perguntar, pode perguntar – ele disse. Ela mordeu o lábio.

–- Seu pai sabe? – ela perguntou.

–- Sabe, sim. Nem foi por causa disso a separação. Na realidade, ele tinha um caso, também. Mas isso é outra história.

–- Ah... E a Tatiana?

–- Ela não sabe que nossos pais tinham casos. Eu não concordei com meus pais no quesito de mentir pra ela sobre os casos, porque eles queriam dizer que era por “motivos particulares” a separação – Matheus riu. – Mas eu não contei nada pra ela. Então não, ela não sabe.

–- Ah. E seus pais sabem que você sabe?

–- Mamãe sim. Eu prefiro não contar pro meu pai. Isso vai... Quebrá-lo mais ainda. Ele amava minha mãe. Mesmo ela sendo racista, homofóbica, arrogante e perua. Mesmo tendo aquele caso, que era mais por vingança do que por outra coisa, ele amava ela.

Esther ficou em silêncio. Matheus puxou conversa.

–- Você nem me falou sobre sua família – ele disse. – Quer dizer, quase nada.

–- Não tem muito pra contar – Esther disse. – Meu pai e minha mãe se conheceram aqui. Casaram, foram pra Inglaterra, nunca saíram. Tenho minha tia Clara, aquela do restaurante, e ela tem três filhos. O Theodore, que é gay, tem a Olivia, que é a melhor pessoa do mundo, e tem a Cath, que... – Esther franziu o nariz. Matheus achou aquilo fofo. --... Bom, é a Cath.

Matheus riu.

–- Certo – ele disse. – E o que essa tal Cath fez?

–- Arrancou dois dentes meus e roubou meu primeiro namorado – Esther disse, como se isso fossem razões pela qual ela deveria morrer. Matheus riu de novo.

–- Bons motivos – Matheus disse, segurando o riso.

Esther o fitou, sem expressão.

–- Matheus – ela disse. – Você está zombando de mim?

Matheus franziu o cenho.

–- Em geral, quando as pessoas estão bravas, elas falam o nome inteiro da pessoa – Matheus disse. Esther comprimiu os lábios.

–- Eu nem sei seu nome inteiro – ela disse. Matheus sorriu.

–- Matheus Jairo Soares – Matheus disse, estendendo a mão. -- Mas ignore o “Jairo”, então é só Matheus Soares. E você?

–- Esther Montenegro Shire – Esther disse, apertando a mão dele. Matheus pôde perceber seu sotaque britânico nas alturas com a pronuncia de “Shire”, quase como se ela falasse “Shaiére”.

Depois de se cumprimentarem, Esther mudou novamente a expressão. Soltou a mão dele, e perguntou:

–- Matheus Jairo Soares, você está zombando de mim?

Matheus franziu o cenho novamente.

–- Já disse que é pra ignorar o “Jairo” – ele disse.

–- Não mude de assunto – Esther o repreendeu.

–- Tá... Não, não to zombando de você. Fica calma, garota ruiva.

–- Não me chame assim.

–- O quê? “Garota”?

–- “Ruiva”.

–- Por quê?

–- Parece que você tá... Sei lá... Fazendo bullyng comigo.

Matheus deu risada.

–- Eu ia encarar como um elogio se tivesse cabelo ruivo. Quer dizer, é raro e é lindo – ele disse.

Esther ficou encarando a primeira página do livro. Matheus examinou-a. Começou a notar pequenos detalhes. O nariz se franzia quando ela lia algo que não gostou. Ela tinha uma pequena cicatriz perto da orelha. Notou que seus olhos eram de um verde-musgo, que estava apagado.

Matheus sentiu uma vontade angustiante de acender algo no olhar dela. Algo que ele vira no encontro de adolescentes malucos no dia anterior.

–- Me fala mais da sua família – ele pediu. Esther franziu as sobrancelhas.

–- Hm, meu pai vem de uma família onde ele era o irmão menor. Ele perdeu todos os irmãos deles. A maioria de morte natural, velhice. Eu pensei que isso ia deixar ele bastante amargo, mas ele é incrivelmente divertido. Já minha mãe... Bom, ela quer quebrar todos os laços com o Brasil.

–- Por quê?

–- Ela ama a Inglaterra. Acha que tudo lá é um mar de rosas. Isso porque ela se recusa a ver de verdade, sabe? Recusa-se a ver a crise enorme pela qual eles passam. E ela é bastante... Hum... “Chupa rola de gringo”. Eu ouvi esse termo, não sei se está certo.

Matheus riu.

–- Está, sim – ele disse.

–- Bom, pois é. O nome dela é Rosalinda Montenegro, mas ela quer ser chamada de Rose Montgomery – Esther revirou os olhos, e Matheus deu risada. – Ela só foi pra Inglaterra porque meu pai, Tobias Shire, tinha parentes lá. Era pra ser uma viagem, mas ela quis ficar. Daí eles se casaram.

Matheus ficou quieto por um momento.

–- Eles se amam? – ele perguntou.

–- Sim. No começo era um namorinho bobo e clichê, mas eles se amam, sim. Dá pra ver isso.

Matheus franziu as sobrancelhas.

–- Nenhum namoro é “clichê”. Existem momentos clichês, mas eles não são nada se são de verdade, sabe? – ele disse.

Esther ficou quieta. Matheus pensou que ela estivesse olhando para o livro, mas quando viu, ela estava olhando pra ele, como se o examinasse. Matheus a olhou de volta, fazendo questão de manter uma distância.

–- Posso ver seu celular? – Esther perguntou, de repente. Matheus arqueou as sobrancelhas. Ia dizer não, mas sua mão involuntariamente já lhe estendia o aparelho. – Obrigada – ela disse.

Matheus se obrigou a espiar o que ela fazia.

Ela abriu o contato escrito “Meu Chip”, e pegou o próprio celular. Cadastrou o número, e em seguida devolveu o aparelho a Matheus, que fitava Esther, de sobrancelhas arqueadas.

–- Não acredito – ele disse.

–- O quê? – Esther perguntou.

–- Você é a única pessoa que conseguiu meu telefone sem pedir pra mim!

–- Ai, que convencido.

–- Não. É que você... Sei lá, tenho a sensação que você não precisa disso. Que você não precisa pedir nada. Não precisa que rebaixar assim, sabe? Só uma impressão.

–- Impressão absolutamente correta – Esther brincou, e ficou fitando Matheus. Matheus ficou fitando-a também, mantendo uma distância não muito grande.

Quando ficou incomodado demais, Matheus olhou para a xícara de chá.

–- Quer mais? – ele perguntou, apontando. Esther olhou pra xícara também.

–- Não, obrigada – ela se levantou, levando o livro preto. Passou pela frente de Matheus, que se estapeou por dentro quando se pegou olhando para a bunda de Esther. Matheus se levantou, e Esther deixou o livro sob a bancada, vasculhando numa bolsa transversal que Matheus não sabia que existia.

Matheus andou até o outro lado do balcão.

–- São R$ 15. Mas R$ 10 pra você, gata – Matheus disse, brincando. Estaria mesmo brincando? Nem ele ficou tão certo assim... Esther pegou uma nota de R$ 20,00, e Matheus pegou a nota, devolvendo-lhe R$ 10,00.

–- Fica com o troco pra você, gato – Esther provocou, enfiando o livro dentro da bolsa. Bateu, com o punho fechado, no peito magro dele. Matheus não conseguiu responder. Ele observou enquanto Esther desaparecia pela rua, ainda atordoado com a forma que ela o provocou, tão casual e divertidamente.

Matheus percebeu que estava sorrindo, e não apagou o sorriso dos lábios quando saiu de trás do balcão e se posicionou no meio da calçada, querendo alcançá-la. Só pode ver uma mecha de seu cabelo ruivo desaparecendo por uma esquina.

Ainda atordoado, Matheus entrou no sebo novamente.

Seus dedos estavam sobre o ponto no qual Esther batera.

Aquele ponto ardia, embora não de dor. Não, era algo diferente. Matheus ficou com os dedos ali, enquanto estava apoiado no balcão, olhando fixamente a nota de 20. Fernando de repente se materializou ali, olhando de Matheus para o balcão, sem entender nada.

–- Onde está a moça... Esther? – Fernando perguntou.

Sem perceber, o sorriso de Matheus fez-lhe escapar uma risada dos lábios.

–- Não sei – Matheus disse. – Mas ela é garota, e ela é maluca, como todas as garotas são, né?

Fernando sorriu também, como se entendesse a piada de Matheus.

–- Sim – Fernando disse. – É uma pena que ela tenha ido assim, pois eu preparei uma coisinha pra ela.

Fernando estendeu um sanduíche que tinha uma azeitona espetada com um palito de dentes em cima, e Matheus sorriu.

–- Pode deixar que eu entrego pra ela depois, Fer – ele disse. Pegou o celular, olhando para o número de Esther em sua agenda de contatos.

Fernando fitou Matheus.

–- Você gostou dela, moleque – Fernando disse. Matheus ia protestar, mas Fernando continuou. – Sei que gostou, não tente esconder.

Matheus grunhiu. Para quem ouvisse de fora, era uma negação.

Mas, como Fernando sabia, era uma afirmação.


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Notas finais do capítulo

Que final de capítulo bosta. Eu devia ter editado. Agora já foi.