Silêncio escrita por Pitty-chan


Capítulo 2
Um




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[UM]

Foi mais ou menos como se tivesse ido dormir de pé. Em um segundo ele estava andando, no outro milhões de estrelas pareciam estar explodindo em suas córneas; um soco de ar no peito.

Ele se encolheu, tentando fugir do golpe que viera de dentro dos próprios pulmões. Bateu as costas na parede. Por um momento ficou cego pela luz branca e se sentiu escorregando, apenas para no segundo seguinte se encontrar na metade do caminho para levantar, mesmo apesar de não se lembrar de ter caído.

A visão enegreceu por um momento, mas voltou em uma série de explosões coloridas – o que o fez agarrar a primeira coisa na qual suas mãos esbarraram, cambaleando e entrando de supetão no banheiro do shopping.

Suas pernas tremeram e ele escorregou pela parede do box, caindo em um ângulo desconfortável ao lado da lixeira. Aquilo provavelmente deveria estar cheirando mal, mas esta é uma das vantagens de se perder um sentido como o olfato: de repente você deixa de ser tão seletivo quanto ao grau de humilhação que você aceita.

Enfiou a mão no bolso, trazendo um papel timbrado amassado. Leu-o outra vez, franzindo as sobrancelhas; as palavras naquela carta já não causavam efeito algum. Aquilo o havia atingido com dor aguda como uma facada na primeira vez, mas agora era mais ou menos como ser atacado por um pano de pratos.

Bizarro, indolor e patético.

Riu sem humor.

Tossiu.


_____

Ela entrou em casa, abandonando a chave da porta na fechadura por alguns instantes. Olhou ao redor; a sala de estar estava na penumbra. Meneou a cabeça brevemente, colocando sua bolsa no chão e virando-se para trancar a porta – quanto tempo aquilo ainda duraria?

Bateu os pés, fazendo seus passos ressoarem no assoalho e indicarem sua presença.

“Quem é?” A pergunta logo veio.

“Sou eu.”

Ela se aproximou, medindo o caminho, medindo o tempo, medindo a espera. Medindo suas próprias razões para permanecer, e o escoar de sua vida na areia da ampulheta, enquanto toda a sua juventude parecia estar se esvaindo ali, pelo chão. Porque não importava a data de nascimento estampada em seu documento de identidade, a idade real que havia em seus ossos parecia muito maior.

Enraizada em seu código genético, tatuada em seu cérebro, estampada em sua pele. E aquilo, aquele simples fato, tão pequeno, tão psicológico, tão subjetivo, tão surreal... Era a mais pura e simples verdade. Os anos estavam passando e ela havia se esquecido de viver. Em seu corpo de dezessete anos morava uma mulher de setecentos.

Forçou um sorriso inútil. A quem ele estava endereçado não podia ver.

“Como foi o dia, mãe?”


_____


Sim, era isso mesmo, ele não estava morto, não era possível. Aquele era com certeza um pesadelo muito ruim, e ele iria acordar em sua cama ou em cima de seu laptop estudando, e seria capaz de respirar normalmente outra vez. Os médicos estavam jogando palavras como Transtorno do Estresse Pós-Traumático e sintomas de longa duração na direção dele, mas Neji os ignorou e continuou olhando fixamente para o protetor de tela do computador de seu pai.

O logotipo da NTT rodava em letras cromadas, infinitamente. Rodando, rodando...

Neji ouvira as palavras catatônico e hospitalização pelas últimas duas horas, e elas haviam cessado em fazer sentido pra ele, porque esse sonho já estava durando tempo demais, sério mesmo, e ele estava começando a ficar preocupado. Sonhos não deviam durar tanto, eles não deviam infligir tanta dor crua assim, dor tão incapacitante que com certeza já o devia ter acordado agora...

Ele quase caiu de sua cadeira em surpresa quando uma mão tocou seu ombro, enviando uma pontada de dor diferente através de suas costas causada pela estocada abrupta contra a ferida que havia ali. Virou-se depressa e viu Hinata de pé ao seu lado com um sorriso gentil e triste.

“Temos que ir, Neji-nii-san. Está na hora do funeral.”

Não, não, não é de verdade...

Neji se perguntou se havia dito aquilo alto, porque o sorriso de Hinata se tornou um tanto mais triste enquanto ela fazia um gesto na direção do elevador do outro lado da sala. Neji não conseguiu continuar olhando para Hinata, porque aquele rosto estava com uma expressão tão cheia de pena que estava começando a sacudir as fundações de sua crença que aquilo era um sonho; e, então, ele virou o olhar, ao invés, para os outros ao seu redor.

Hiashi não estava olhando na sua direção; seus olhos eram frios e seu rosto endurecido enquanto ele marchava à frente deles para dentro do elevador. Hanabi rapidamente olhou na outra direção quando Neji se virou para encará-la, mas Lee não se desviou – olhou diretamente para Neji com a mesma expressão de Hinata. Ele tentou sorrir, mas seu sorriso, também, acabou surgindo como o de Hinata.

Neji colocou rapidamente a mão sobre a boca para capturar um soluço engasgado que veio sem aviso.

Não. É um pesadelo. É tudo falso.

Então por que tudo parece tão real?, uma voz perguntou, uma voz que soava evocativa à cruel, zombeteira voz do médico que anunciara a morte de sua mãe – Morte – sangue, dor, horror, espadas, seppuku, honra, NTT, escuro, frio, suicídio, medo, morte, Chichiue, katana, Chichiue morto, eu matei-

Os pensamentos perseguiram a si mesmos em volta e em volta de sua mente, seguindo as mesmas rotas a cada vez – tentando convencer a si mesmo que era um sonho quando algo continuava dizendo que não, memórias persistentes tocando melodias negras dentro de sua mente, ondas assustadoras de imagens se movendo, se achegando, se disseminando em teias por cada centímetro de sua psique até que as coisas que ele via em sua cabeça tomassem conta do que era real – e ele não conseguia se lembrar como tinha saído do elevador para a limousine, mas quando o fez estava tremendo.

Hanabi estava a sua direita, olhando fixamente para fora da janela, e ao seu lado esquerdo estava Lee. Quando os olhos de Neji se viraram para o garoto de verde, Lee o perguntou, “Tem alguma coisa que nós possamos fazer?”

Me acordem...

_____


“Tem alguma coisa que eu possa fazer por você, mãe?”

Ela perguntou, sem esperar uma resposta de verdade. A mulher não deu sinais de ter ouvido ou reconhecido a pergunta. Tenten meneou a cabeça levemente, as sobrancelhas contraídas em uma expressão que nem mesmo ela poderia nomear se a visse. Simplesmente não sabia mais o que sentir. Não sabia mais qual era a definição de viver aquela vida, afinal. Qual era a diferença entre aquilo e a morte?

“Mãe? Não tem nada que eu possa fazer?” Insistiu. A mulher não se virou em sua direção. Apenas produziu um suspiro que sinalizava que Tenten era jovem demais para entender, o que Tenten odiava.

Havia sido um acidente de carro.

Em um segundo eles eram uma família feliz e no segundo seguinte não restara nada. Tenten tivera dez anos quando acontecera, mas isso não queria dizer que não se lembrasse ou não se importasse com o que havia acontecido. Ela se lembrava bem demais, até, para dizer a verdade.

Ano de 2004.

A frota de veículos estimada pelo Departamento Metropolitano de Polícia de Tokyo havia sido de mais de 4 milhões de automóveis para uma área de um pouco mais de 5 mil quilômetros quadrados. Devido a este grande número desproporcional haviam sido registrados 91.380 acidentes, com 105.073 vítimas com lesões de diferente gravidade e 413 mortes. Uma dessas 413 vítimas fatais havia sido seu pai. Uma das 105.073 com lesões diferentes havia sido sua mãe.

Ela perdera seus olhos, sua vontade e seu futuro. Era um corpo vivendo sem uma alma.

Tenten tomara as rédeas da família. Ainda estudava aos trancos e barrancos, mas começara a fazer bicos aqui e ali para complementar a renda que tinham da pensão do Shakai Hoken, a Previdência Social japonesa. O dinheiro mal dava para pagar as despesas básicas, e sem o pouco que ela conseguia arrecadar ficaria impossível fechar as contas no fim do mês. Sua mãe, cega e sem vigor, havia se apoiado nela para sobreviver. Tenten a suportava, a instigava, a ajudava, mas não compreendia o fato de sua mãe não tentar colocar as coisas no passado e voltar a viver. Dizia que algumas coisas precisam ser esquecidas para continuar, o que não significava que deixariam de ter valor. Do fundo do coração ela acreditava que se precisa esquecer quem se era antes de uma tragédia para conseguir se reinventar e seguir em frente.

E às vezes tudo o que Tenten queria era esquecer de vez.

Um carro se chocara contra o outro com violência descomunal que a tirara de seu assento, fazendo-a bater contra o banco da frente com ímpeto, danificando sua coluna de modo que mesmo anos após ela ainda sentia dores. Provavelmente as sentiria pelo resto de sua vida. Parte do paralama do outro veículo embatera-se contra o parabrisa de seu carro, esfacelando o vidro e indo de encontro diretamente com o rosto de seu pai, que morrera instantaneamente. Parte dos rebites havia colidido com os olhos de sua mãe, destruindo os globos oculares. Ela sobrevivera, com graves sequelas. Nunca conseguiria um transplante de córneas, seria inútil. Seus olhos estavam estragados demais.

E talvez fosse aquilo que mais a impedisse de viver.

Surpresa, Okaa-san. Trouxe um belo par de óculos escuros pra você. Desculpe, mas ainda não vendem olhos no supermercado.

Às vezes Tenten era sarcástica, mas só consigo mesma, e quando estava muito desesperada. Seu pai costumava dizê-la que ela tinha a determinação e a vontade de uma leoa, que seria bem sucedida em tudo e teria um futuro brilhante, mas ela achava que agora seria impossível. Sentia vontade de chorar. Como seu pai poderia ter pensado algo como aquilo? Agora ela mal conseguia reunir coragem o suficiente para ir à escola e trabalhar a cada manhã. A maioria das vezes tudo o que ela queria era alguém para protegê-la e ajudá-la. Ela era a única fazendo por onde e provendo proteção. Não havia ninguém para fazer o contrário.

Me ajudem...

_____


“O QUE DIABOS PENSA QUE ESTÁ FAZENDO?!”

Desespero, mortificação e ódio se juntaram em uma espiral de uma vez só dentro de Neji. Ele olhou, incrédulo, de volta para Hiashi, sentado na cadeira da presidência da empresa de seu pai como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Hyuuga Hiashi, irmão mais velho dentre os gêmeos descendentes do Barão das Ferrovias Hyuuga Hideo, fora votado como presidente da mega holding TokyuG, que estivera na família Hyuuga há gerações. Hizashi, sabendo que caberia a ele apenas uma fração pequena do poder da empresa, havia usado parte de suas ações para criar seu próprio negócio com inteligência e sagacidade, logo desenvolvendo-o ao ponto de ser capaz de comprar o grupo empresarial responsável pelo setor de telecomunicações do Japão.

A famosa Nippon Telegraph and Telephone, a NTT, mega holding japonesa quase tão importante quanto o TokyuG, passara a ter um único herdeiro. Que, pelo visto, não fazia a menor ideia de quem estivera sentado em seu lugar, relegando direitos pelos últimos dois meses.

Hiashi absorveu a explosão de temperamento com maestria, o olhando de volta, impassível.

A NTT É MINHA! Ela não faz parte do Tokyu Group, foi fundada somente pelo MEU PAI! Você não tem o direito de tirar a NTT de mim!”

Assim que as palavras saíram de sua boca Neji se sentiu imediatamente exausto, desajustado, fora de seu eixo. O olhar de Hiashi estava calmo demais para alguém que recebera a notícia de que perdera o controle completo sobre um império milionário. Calmo demais. Sereno demais. Não podia ser...

Podia?

Neji sentiu algo frio e pesado em seu estômago, como se tivesse engolido uma bala de canhão. Dois meses haviam se passado depois do funeral, e a dor dilacerante o rasgava mais dia após dia. A maior parte do tempo Neji não conseguia se fazer consciente o suficiente para reconhecê-la. Se tornara praticamente inapto a funcionar.

Hiashi havia aproveitado sua desorientação para conseguir consentimento dos médicos e assinar autorizações por Neji, considerando-o menor incapaz perante a justiça, e, por tabela, acelerando indevidamente o processo do inventário de Hizashi. No meio tempo um testamento de que ninguém ouvira falar havia surgido, assinado e lavrado em cartório com a data do ano anterior.

“Leia você mesmo.”

Hiashi estendeu o papel do testamento. E ali estava. Era a letra de seu pai.

Eu, Hyuuga Hizashi, estando em perfeito juízo e em pleno gozo de minhas faculdades intelectuais, na presença de (03) três testemunhas a seguir qualificadas (…) de qualquer induzimento ou coação, resolvo lavrar o presente testamento particular para dispor de meus bens para após a minha morte da seguinte forma: PRIMEIRO: deixo para Hyuuga Hiashi a totalidade de meu patrimônio existente por ocasião de minha morte; SEGUNDO: para meu testamenteiro, nomeio Nara Shikaku, acima qualificado, fixando o prêmio de (1%) um por cento, ao qual peço que cumpra e faça cumprir as presentes disposições de última vontade.

Declaro não existir testamento anterior em qualquer de suas formas legais. Nada mais tendo a lavrar, dou por encerrado o presente testamento na presença das (03) três testemunhas acima qualificadas para as quais li a íntegra do que nele se contém.

Tokyo, 13 de Agosto de 2010
Hyuuga Hizashi

E era aquilo. Atestado e sacramentado pela justiça, assinado pelas partes requeridas, incapaz de ser investigado, sofrer qualquer tipo de recurso.

Seu nome não havia sequer sido mencionado no último desejo de seu pai. A pessoa mais importante de sua vida o tinha deixado sem nem ao menos reconhecê-lo. A vergonha acendeu uma fogueira em seu peito e o fogo se espalhou pelo rosto, pelos membros – queimando. A pele se arrepiou automaticamente e ele tentou engolir a pressão que estava se formando em sua garganta; o coração batendo rapidamente, rugindo.

Sua boca encheu-se de fel, ficando rapidamente seca, tontura invadiu seus sentidos. O bolo que se formara em sua garganta subiu, praticamente fechando sua passagem de ar. Ele se segurou no encosto da cadeira à sua frente como reflexo para impedir-se de cair.

“Por... por q-”

“Por quê?” Hiashi completou a pergunta, entrelaçando os dedos e apoiando os cotovelos sobre a mesa de carvalho. “Preciso mesmo responder essa pergunta?”

Neji o olhou de volta descrente, incapaz de aceitar, quando suas mãos começaram a tremer de tensão. Olhou rapidamente para o papel em sua mão se sacudindo, e tentou forçá-lo a parar com a outra mão, até perceber que estava todo estremecendo, incapaz de impedir-se de tremer.

Parte de Neji queria seguir Hiashi até o inferno e surrá-lo com aquela cadeira de carvalho. Mas parte dele queria rastejar até uma caverna escura e se esconder.

E de repente ele soube por que não estava naquele testamento. E o motivo foi tão cruel, tão perfurante, que algo dentro dele se despedaçou com tanta intensidade que, se literal, teria espalhado os estilhaços por um raio de trinta metros.

Porque você faz qualquer coisa por quem você ama. É isso que você faz quando aqueles que lhe são caros pedem um último desejo, mesmo que o algo vá atormentá-lo pelo resto da vida. É aceitar se doer inteiro por quem se ama.

O papel escorregou por entre seus dedos devagar, enquanto algo comprimia seus pulmões com o peso de uma coluna de metal. Em questão de segundos o ar ficou fino e desapareceu. Um chiado saiu de sua boca, seguido por um soar oco e agudo similar a um soluço. Neji piscou, quase desequilibrando-se para frente, dando alguns passos não balanceados até conseguir apoiar-se na mesa onde Hiashi estava.

Zonzo, a falta de ar e tontura invadiram sua consciência, pontos negros começaram a surgir em sua visão. Ele vacilou apoiando-se completamente sobre a mesa enquanto a imagem de seu tio entrava e saía de foco à sua frente. Hiashi ainda estava com os dedos entrelaçados, os cotovelos sobre o carvalho, olhando-o.

Uma pontada de dor alucinante irradiou de seu peito, fazendo-o trincar os dentes e escorregar, quando o homem à sua frente o segurou pelo cotovelo através da manga direita de seu casaco, sustentando-o precariamente no ar. Com a consciência por um fio, Neji o olhou entre pálpebras, sons ocos saindo de sua boca, sem oxigênio.

“Você não tem direito algum, moleque.” Os pontos negros tomaram sua visão, até que tudo viu preto. “Nada aqui é seu.”


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Com o silêncio fiquei mudo; calava-me mesmo acerca do bem, e a minha dor se agravou-- Salmos 39:2

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