Meu Melhor Amigo escrita por Marcos Vinícius


Capítulo 4
Quatro


Notas iniciais do capítulo

Os três primeiros capítulos foram sucessos. Agradeço pelos comentários positivos e carinhosos. Acho que não há dígitos em visualizações que gratificam um autor tanto quanto pessoas mostrarem-se dispostas e felizes com seu trabalho, pois isso que nos movimenta a prosseguir e nos deixa satisfeitos com o que fazemos. Aproveitando do assunto, reforço o pedido: façam comentários, deem suas opiniões, sugestões, apontem erros, acertos. Vocês são demais!



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Matt

Bato com o punho sobre o livro de Matemática. Eu realmente não sei qual o problema dos professores da minha escola. Estando mal acostumado com o novo ambiente, já trago do primeiríssimo dia de aula uma pilha de deveres para serem entregues no dia seguinte. Que ótimo! Com meu pijama azul, jogo-me sobre a cama, espalhando livros, cadernos, lápis. Seria uma longa noite.

Quase duas da manhã, o frio parecia aumentar cada vez mais. Cubro as pernas com a colcha do meu pai, mas não era o suficiente. Minha mãe provavelmente já devia ter caído no sono na sala de estar pelo barulho da tevê, que transmitia — mais uma vez — filmes assustadores que passavam nas terças-feiras, e que, se ela estivesse realmente acordada, jamais deixaria sintonizar naquele canal.

Ao redor de livros enormes, meus cotovelos ficavam apoiados em extensas almofadas enquanto, deitado de bruços, balançava para o lado e para o outro os pés gelados, parando na almofada, também fria, aveludada logo atrás. Geralmente tenho facilidade com trigonometria e afins, mas de forma alguma eu conseguia concentrar-me no conteúdo.

Pouso a caneta sobre os lábios. Minha cabeça estava repleta em uma confusão devido à conversa que tive com Felipe ontem à tarde, quando caminhávamos lado a lado de volta para casa. Preocupado com ele, não pude deixar de lembrar-me de trechos dela, além de pensar no péssimo estado que Felipe se encontrava.

Durante a aula, somente mirado no celular, seja jogando ou trocando mensagens com amigos, Felipe estava visivelmente em conflito consigo mesmo. Não sorria, não chorava, estava neutro. Não que significasse que estivesse bem caso estivesse sorrindo. Pessoas riem, riem e riem, mas no fundo podem estar completamente diferentes do que mostram por fora, corroendo-se por dentro. Como Felipe.

Ver que eu estava sendo um tanto inútil diante da situação, repreendo-me. A condição em que ele se encontrava estava péssima. Coitado. Uma vez ou outra eu me virava para vê-lo, ver se estava tudo bem com ele, se estava tudo certo. No entanto a única visão que tinha era a dele lá no fundo da turma se empanturrando com doces, salgados e batatas com uma expressão no rosto bastante cansada e destruída.

Eu espero que, assim como eu agora, ele tenha respondido ao menos metade desse gigante dever.

Tentando encorajá-lo, pego o celular na cabeceira ao lado, digito uma mensagem de texto: Espero que suas mãos estejam no livro, porque amanhã há duas lições a serem entregues.

Envio.

Sem demora ele responde com um rostinho zangado. Ele odiava quando eu o pegava no pé em relação aos estudos.

Matt, quanto é 7x9?, perguntou logo em seguida.

Na semana seguinte, por culpa de um filme longo, insônia e uma xícara rosa na qual bebi litros de café congelado, acabei acordando extremamente tarde. Remexia a escova de dente na boca, enquanto com a outra mão livre colocava o mais rápido que podia os livros que ficaram em cima da cama depois da tremenda maratona de estudos.

Nos meus ouvidos encontravam-se fixados dois fones, emitindo algum pop chiclete qualquer. Logo um deles desprende-se, caindo sobre minha calça, prendendo-se lá. Com as duas mãos ocupadas, não pude impedir a queda de um pouco de creme dental nela. E estressado, derrubo a mochila sem querer, espalhando todo o material sobre meu tapete de marfim.

— Matt! Vem logo você vai se atrasar! — Ouço os gritos de sempre, ecoando da cozinha até meu quarto.

Tive um leve pressentimento que hoje não seria um dos melhores dias.

Em uma curta viagem entre curvas, buracos e saltos dentro daquele carro sujo e fedorento, finalmente eu havia chegado à escola. Paguei o motorista, desejei bom dia e disse que se ele tirasse sua camisa suada do banco detrás talvez seu carro não ficasse com um cheiro tão ruim. Daí por diante fui correndo pelas escadas até minha sala de aula, como em todos os dias. O relógio no meu pulso marcava 07h20min. Vinte minutos atrasado. Eu nunca me atrasei tanto! Até o Felipe é mais pon...

— Oi Matt!

...tual.

Felipe surge inesperadamente, ou como as garotas dizem: brota. Na porta da sala de aula, em papel EVA, ficava um lindo desenho de um sol e uma pequena serraria enfeitando a frase “Bem-vindo”. Felipe estava sentado encostado nela, estirado no chão do corredor vazio e escuro — o dia não havia começado por inteiro. Além dos sapatos novos azuis e brancos, percebi que a aula estava em andamento e que Felipe não estava assistindo-a.

— Bom dia. O que você tá fazendo aqui do lado de fora? — questiono, confuso. Ele continuava a mascar um chiclete e mover seus dedos sobre a tela do seu celular como se eu não estivesse ali. Pelo cheiro era de uva, o seu predileto.

— Sabe a atividade de ontem? — Com uma expressão de criança sapeca, ele ria. — Pois é, não a fiz. — Cuspiu o chiclete fora, deixando-o como um ponto lilás no meio do pátio.

— Como é? E então o professor te expulsou por isso? Só por que não fez aqueles cálculos estúpidos? Isso não é justo.

Que Felipe sempre foi pego no pé pelos professores sem fazer ao menos nada isso todo mundo do colégio sabia, era óbvio. Mas ali não era mais a oitava série onde tudo se resolvia com uma advertência que não passava de um papel branco riscado por uma secretária e uma conversa de 10 minutos com a mãe de Felipe.

Ali era o ensino médio.

Felipe não era Ruben, Pedro, Steve ou qualquer outro cara que tinha os erros acobertados por serem filhos do dono da escola ou por serem do time de soletração.

Era Felipe. Felipe: o garoto loiro que mesmo usando alguma camisa ou acessório e que este não fosse aprovado pelo gosto pessoal de qualquer funcionário dali era suspenso injustamente.

Eu sentia que aquele ano pra ele seria diferente, ou melhor, eu sentia que ele também queria que fosse, que queria mudar, e eu não somente queria, eu devia lhe ajudar com isso. E por hipótese alguma eu deveria deixar essa situação se passar em branco, despercebida.

— Mais ou menos. — Enquanto ele falava, pego uma folha de papel e retiro o chiclete que jogara no chão. — Ele sempre implicou comigo. Não é, Matt? — Estava tão grudento.

— Tem razão. — Suspiro, girando os olhos e me levantando. Sorrio com os lábios para dentro, tanto para deixar com ele meu consolo quanto pela razão de que eu jamais riria de uma forma seria em uma hora daquelas. — Só, o que você quis dizer com “mais ou menos”?

— Eu... — Felipe toca na testa com dois dedos juntos, como se tivesse sentindo a enxaqueca da chata velhinha do cachorro-quente que morava em frente ao colégio. Enquanto aguardava uma resposta eu olhava no relógio do meu pulso o ponteiro girando. Felipe observava o bloqueio de tela do seu celular como se em uma foto sexy da atriz Lucy Hale fosse lhe dar palavras. Eu estava a ponto de lhe dar um soco. Por que ele não olhava para mim enquanto falava? — É que ele foi chato comigo — soltou, me deixando boquiaberto. Eu não queria acreditar no que eu tinha acabado de escutar.

— Eu não acredito. — Cruzei os braços o olhando por cima, subo o tom de voz. Teria Felipe mais uma vez aprontado alguma de suas artimanhas? Ele não via que eu me irritava bastante quando ele se metia em confusões? — Você o respondeu? O q-que você fez, Felipe? — Gaguejar era uma das formas de notar e deixar visíveis meu nervosismo e irritação.

— É, foi isso mesmo — diz, com a maior naturalidade possível na voz, enquanto retirava as “areias” dos olhos, possivelmente por uma noite mal dormida.

Eu não pude acreditar que ouvi aquilo. Por qual motivo ele voltou a ser o mesmo garoto que era antes? Definitivamente Felipe sequer notava no quanto eu não queria que aquilo voltasse a acontecer. Peguei-me com uma expressão feia no rosto, minha boca se transformou em um perfeito “c” de cabeça pra baixo, e eu nunca senti minhas sobrancelhas tão juntas como naquele momento.

— Eu estava preocupado contigo. — Em frente à porta, parei uma mão sobre a maçaneta me preparando para sair dali. Eu poderia sentir a própria fumaça sair pelo meu nariz. — Mas dessa vez vejo que você não se importa muito, certo? Você sempre faz besteiras e eu tenho que ser gentil e ainda por cima não ouvir ao menos um “obrigado” em troca de todo o meu esforço pra tentar te fazer se sentir bem e escapar das suas encrencas ileso. A verdade é que eu já estou no meu limite de tentar lhe ajudar, de tentar de fazer ficar melhor, de tentar te fazer sorrir um pouco...

Felipe sentiu o peso das minhas palavras, seu olhar parou sobre um dos armários vermelhos do corredor, que após a batida do sinal, encheu-se de estudantes problemáticos, como ele.

Suspiro.

— Esquece. — Entro pela porta branca.

Esta foi a primeira vez que vi eu mesmo falando alto daquele jeito. Isto me surpreendeu, mas eu fiquei feliz. Acho que eu devo parar de ser tolo também. Mas mesmo assim eu estava triste. Não por mim, por ele. Mesmo de uma forma insensível como minhas palavras foram ditas e interpretadas, elas eram verdadeiras, e Felipe conhecia isso. Por outro lado, não queria que ficássemos de mau um com o outro, Felipe precisava de mim. Se eu disser a ele tudo que está me deixando infeliz, tenho certeza que ele irá me desculpar. E não tocarei mais no assunto, irei perdoá-lo e tudo ficará bem.

Cada aula tinha 45 minutos de duração, e rabiscando alguns desenhos nos espaços em brancos entre cada questão de matemática enquanto bolas de papeis voavam no meio da sala de aula eu parava o rosto sobre a mão e continuava pensando nele.

Não era a primeira vez que Felipe era expulso, dessa vez foi compreensível sua saída, porém com tudo que ele vem passando eu não achava sequer justo, não agora. Felipe estava passando por muitos problemas em casa e sempre foi “lerdo” com os estudos. Não há muitas pessoas a quem ela possa recorrer, e ainda assim não engole seu orgulho para pedir ajuda. Eu me encontrava absurdamente cansado em relação a isso, mas eu tinha que continuar, porque mesmo ele não sendo uma pessoa tão grata, sua face entristecida gritava desesperadamente por socorro. Eu jamais poderia ignorá-la.

Meus pensamentos ocultaram os barulhos ao meu redor, inclusive o estrondoso chamar da sirene que se não fosse pela forte arruaça que os estudantes faziam sempre quando encerrava a aula, eu jamais sairia daquele transe.

Nerds liam mais uma folha de algum livro de John Lock, desocupados tragavam seus cigarros encostados na porta do banheiro masculino, caras e garotas corriam para o andar mais alto onde os estudantes costumavam se pegar; essas e outras situações ocorriam de forma surpreendente rápida durante o intervalo de míseros 15 minutos que tínhamos entre uma aula e outra. Eu observava atentamente cada uma delas enquanto desnorteadamente andava pelos corredores do colégio.

Eu e Felipe usávamos daquele tempo para comermos doces, grande parte de chocolate, outra de uva, seu vício eterno. Felipe sempre bancava nossa comida, bebida ou até mesmo quando fugíamos de casa para almoçarmos juntos ás vezes em algum restaurante da número 12. O único lugar aonde ele ia além do campo de futebol, parque e cantina, era onde as líderes de torcida treinavam e faziam seus movimentos quentes seguidos de acrobacias únicas. Fora esses lugares, procurar na sala dos professores ou na biblioteca seria completamente desnecessário.

O vi pela última vez na entrada da classe e até agora ele não havia dado sinal de onde havia se metido. Pondo a mão sobre a testa como soldados do exército faziam para protegerem os olhos do sol, eu passava a vista por cada canto daquela grande e povoada escola a sua procura — mesmo não fazendo sol algum.

— O que houve mano? — Tony, atacante do time de futebol do colégio e nomeado rei por três anos seguidos no baile de fim de ano da escola percebe os círculos que eu fazia enquanto caminhava no centro do pátio e me pergunta a razão de estar assim. Ele segurava um iPhone, com certeza presente de sua tão apaixonada — e rica — mãe.

— Sabe do Felipe? — pergunto. Aproximei-me para mais perto dele, coçando o queixo. Acho que estou nervoso.

— O número 17?

A ideia dos jogadores de se referirem um ao outro com os números de suas camisetas e posições nos jogos era extremamente infantil e incomodante. Felipe era da equipe. Futebol era a única coisa que fazia bem. Não estar no time seria um desperdício de si próprio. Tony falava comigo por ser o melhor amigo do Felipe. Às vezes me via junto com ele nas arquibancadas, assim como outros. Poucos reparavam em mim. Eu não me incomodava nem um pouco com isso.

— Sim, ele — confirmei com a expressão cansada. Tony não olhava no meu rosto, continuava vidrado no celular, atento a cada toque que fazia. Olho para mim mesmo. Qual o problema das pessoas hoje? Eu estou tão desarrumado assim?

— Ah! Ele foi embora — disse por fim, enfiando as duas mãos no seu casaco.

— O quê? Mas pra onde?

— Não faço ideia. — Mastigou o nada, fez bico e em seguida se despede batendo com o braço no meu ombro. Saiu como um furacão pra cumprimentar as garotas loiras e esbeltas que estavam à meia hora flertando com ele atrás de mim. — Até mais, Bruno.

— É Matheus. — corrigi, tarde demais.

Do lado de fora, a rua parecia tão extensa sem a companhia de Felipe. Não havia ninguém, e a ladeira gigante pela qual eu descia parecia mais uma montanha russa do que um simples asfalto preto.

Do nada sinto uma gota de água caindo sobre meu punho.

Iria chover.

Joguei minha mochila no chão e me inclino para abri-la passando livros e mais livros até enfim enrolar sobre o braço minha jaqueta azul e puxa-la. Os pingos aceleravam-se e eu podia ver no canto da rua e nas calçadas poças se formando como também minha nuca ficando completamente encharcada. Sem pensar muito, corri para baixo de uma varanda de uma gigante floricultura.

Eu poderia morar do outro lado da cidade, mas com Felipe o tempo passa correr mais rápido, com Felipe a caminhada se torna mais gostosa de fazer, com Felipe eu esqueço completamente das dores nos pés. Mas ele não estava aqui, ele fugiu... Ele fugiu de mim; deixando-me ali sozinho tomando um banho gelado.

A forma como nos falamos pela última vez foi errada, a forma como eu falei foi errada. Estaríamos agora correndo com os cabelos e a roupa de baixo molhadas pela chuva, chutando as poças de água um no outro, sorrindo, felizes. Nada estava saindo ao meu favor hoje e eu jurava que era pela sua ausência.

Felipe não poderia fazer parar de chover, Felipe não poderia fazer a grama do jardim da escola ficar menos enlameada, e muito menos Felipe poderia responder por mim aquelas questões de gramática que não consegui de jeito nenhum terminá-las. Mas de uma coisa ele podia: ele podia deixar tudo aquilo parecer mais fácil. E olhar para o temporal nublado e ver a água escorrer lentamente pelas folhas se perdendo dentro dos esgotos, eu só conseguia ficar cada vez mais chateado. Aquilo meio que partia meu coração.


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