Jovens do Novo Mundo escrita por VicKWicK


Capítulo 4
Plano fracassado


Notas iniciais do capítulo

Se vocês encontrarem um universitário na rua nesses próximos dias, faz um carinho nele, paga uma cerveja e fala que o semestre está acabando kkkkkk (cada k é uma lágrima)



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O plano de Anne de esquecer a entrevista foi bem-sucedido durante um período impressionante de duas aulas. Voltando para a sala, ela ignorou os olhares curiosos e questionadores dos colegas e focou na aula que estava em curso, no entanto não haveria escapatória durante o almoço. Anne poderia facilmente mentir para os companheiros e dizer que aceitou  fazer a entrevista apenas por curiosidade em relação a como funcionava, mas não poderia mentir para Malu, a amiga saberia que havia algo errado e, mesmo que ela não insistisse em uma explicação, provavelmente ficaria chateada pela mentira. Então, quando o sinal bateu, a morena foi até a amiga e a conduziu para fora da sala, enquanto fingia não escutar os chamados dos outros companheiros de sala.

As duas andaram até uma área verde que havia na escola (as pessoas passaram a valorizar espaços verdes e uma árvore era plantada em qualquer lugar que pudesse crescer) e se sentaram em um banquinho de madeira, algumas pessoas passavam por ali, mas ninguém deu muita atenção a elas.

  – Então, – Malu começou – vai me contar o que há de errado com você? Imagino que seu humor estranho hoje no ônibus esteja relacionado ao fato de você ter aceitado fazer a entrevista para o programa depois de todo esse tempo recusando.

É claro que a amiga já tinha entendido isso, elas se conheciam a muito tempo e sabiam muito uma sobre a outra.

—Eu ia dizer que essa é uma longa história, mas nem é tanto assim... Para encurtar o enredo: meu pai perdeu o emprego e não sei quando ela vai conseguir outro, você sabe que não tem muitas oportunidades aqui na cidade. Por isso eu aceitei participar das entrevistas, se eu passar, mesmo que acabe parando na segunda fase, eu poderia usar o dinheiro para ajudar meus pais em casa. É isso, basicamente.

—Nossa, que pesado, Anne. Sinto muito pelo emprego do seu pai e também por você fazer isso para ajudá-los. Eu sei que você faria qualquer coisa pela sua família, mesmo que seja participar de algo que nunca quis. Espero que as coisas se ajeitem logo e que você não tenha que levar isso a diante...

Anne abraçou Malu e agradeceu pelo apoio, dividir o fardo com ela realmente a fez se sentir melhor. Afinal, tudo sempre é mais fácil quando se tem o apoio de amigos e Anne pensou que as coisas poderiam melhorar logo e ela realmente não teria que se envolver com o Jovens do Novo Mundo e toda aquela baboseira de “preparar os novos líderes mundiais”.

O resto do dia passou mais facilmente, alguns colegas perguntaram como havia sido a entrevista e ela respondeu de maneira educada, mas enxuta, não que eles precisassem dela para ter as informações, pois Sarah parecia muito contente em contar para todos como havia sido a experiência dela e como ela achava que seria aprovada. Era estranho vê-la tão disposta a falar sobre algo depois de alguns meses tendo o mínimo de contato possível com a classe. Porém Anne não pensou muito sobre isso, ela não conhecia a menina e não queria emitir um juízo de valor. Esse era um princípio que ela gostava de levar a sério: nunca julgue um livro pela capa, mesmo que às vezes a capa esteja, de fato, correta sobre o conteúdo.

No ônibus de volta para casa, Malu perguntou se os pais já tinham conversado com ela e Anne respondeu que não, mas esperava que essa conversa ocorresse naquela noite após o jantar. Quando chegou ao seu ponto, se despediu de Malu e prometeu mandar mensagem caso precisasse conversar. Caminhou com calma até sua casa, o sol ainda não havia se posto e ela gostava sempre de aproveitar a luz do dia, aliás tomar sol era algo que ela adorava fazer. Anne costumava sentar perto das janelas ou no quintal de casa, ouvindo música, lendo ou só deixando o sol queimar a sua pele. Esse hábito já havia lhe rendido algumas marcas inusitadas na pele: de shorts, pulseiras, óculos e até mesmo de um rasgo em sua calça certa vez. De vez em quando ela tinha que colocar biquíni e passar bronzeador para tentar uniformizar a cor da pele, os amigos sempre achavam graça disso.

Quando chegou em casa, sua mãe ainda não havia chegado (como de costume), ela só saía do trabalho às 19, mas seu pai estava na sala assistindo desenhos com Júlia. Ele não estava com a mesma roupa que usara de manhã, porém também não estava com suas roupas habituais de trabalho. Era difícil acreditar que haviam demitido ele, o professor Renato deu aulas de música na única escola particular da cidade por 8 anos. A escola não era tão chique para que os filhos das pessoas realmente ricas da cidade a frequentassem, esses estudavam em cidades maiores onde tinham instituições de ensino famosas, mas era preciso ter uma condição privilegiada para poder pagar uma mensalidade. Anne achava improvável que a demissão tivesse decorrido de problemas nas aulas do pai, os alunos gostavam dele e os outros professores também, talvez tenha sido algum corte de gastos, a economia começava a mostrar alguns sinais de estagnação: as pessoas ganhavam menos, então compravam menos, aí o comércio vendia menos, consequentemente os preços subiam mais, e por isso as pessoas compravam ainda menos. Pode ser que os primeiros sinais de uma crise tivessem começado a alcançar as pequenas cidades, que era o caso daquela em que moravam, e a escola havia sido obrigada a reduzir as mensalidades para não perder alunos.

—Boa tarde, filha. Como foi na escola hoje? – o pai perguntou assim que notou sua presença, ela sabia que ele não perguntaria sobre as entrevistas, pois sabia da opinião dela quanto o Jovens do Novo Mundo, mas a voz dele tinha um tom de insinuação.

—Oi, pai. Foi tranquilo hoje na escola, bem normal... – Anne quase perguntou como havia sido o dia dele, mas conseguiu se impedir antes que o fizesse, ela voltou sua atenção para a irmã então. – Como foi o seu dia, Júlia?

­ –Hoje a gente aprendeu sobre vulcões e a professora mostrou muitos vídeos para gente!

Anne ficou com pouco mais na sala, deixando sua irmã contar sobre vulcões, seus amigos e então sobre o desenho que estava assistindo, depois avisou o pai que iria para o seu quarto tomar banho e depois estudar antes do jantar. A primeira parte ela concluiu com sucesso, mas quando se sentou para estudar, já de pijama e com os cachos molhados, percebeu que não iria conseguir estudar. Ela terminou a resenha crítica que estava escrevendo para o seu blog e ainda assim ainda tinha mais 1 hora até que sua mãe chegasse e talvez mais 1 hora depois disso até o jantar. Ela acabou, não por falta do que fazer, navegando entre os principais sites de notícias, o que foi uma péssima escolha, porque, é claro todos eles traziam notícias sobre as entrevistas, as quais aconteciam em todos os países-membro da OGP.

Em um dos artigos, havia uma explicação sobre o funcionamento do projeto e das seleções. A primeira fase eram as entrevistas, as quais selecionavam jovens a nível municipal, não havia um número estipulado de alunos que seriam escolhidos, mas em geral, em cidades pequenas como a dela, 2 ou 3 eram escolhidos. Claro, em grandes centros e na Capital, com suas escolas preparatórias e projetos de extensão que a rede pública nunca poderia oferecer, um número muito maior de alunos conseguia passar nas entrevistas. Depois disso, cada selecionado tinha 1 mês e a ajuda de um tutor para se preparar para a segunda fase, que era uma prova que selecionava alunos a nível estadual. A prova consistia em algumas questões alternativas, que abordavam questões filosóficas, econômicas e sobre a gestão e história de seu respectivo país, além de uma redação, geralmente um artigo de opinião, cujo tema sempre era um mistério. Caso você fosse aprovado (seriam duas pessoas de cada unidade federativa) estaria disputando em nível nacional, ficando em um internato por mais 1 mês, onde seria avaliado por diferentes testes e desafios, e só então, dois jovens representantes de cada país seriam, de fato, incluídos no projeto e levados para a base do Jovens do Novo Mundo, cuja localização era desconhecida.

Em outro site, Anne passou por alguns depoimentos de pessoas que haviam participado do processo seletivo no ano anterior. Não havia muita informação sobre o internato, as pessoas comentavam que eram instruídas a não falarem sobre os testes que eram realizados e, como ninguém queria desafiar a OGP, acabavam respeitando essa “regra”. No entanto sempre tinha aqueles dispostos a falar, principalmente para estender sua fama, pois muitas pessoas seguiam os selecionados como se fossem subcelebridades. O garoto do vídeo, havia chegado até a última fase, mas acabou não passando, disse que o internato era como um acampamento e que a cada semana eles se preparavam para um desafio diferente, de modo que os dois melhores classificados eram “efetivados” no projeto. Disse ainda que eles eram avaliados o tempo todo e que nem sempre sabiam do que se tratava o desafio daquela semana. Um outro vídeo era de uma garota, ele havia sido postado em uma de suas redes sociais e ela contava sobre como havia sido injustiçada e deveria ter sido escolhida ao final da seleção.

Haviam mais alguns vídeos, alguns depoimentos escritos anonimamente e de procedência duvidosa e, claro, fotos e informações dos vencedores do ano passado. Eram um menino, de 16 anos, e uma menina, de 17, ambos do mesmo colégio particular na Capital, o que, obviamente, havia sido motivo de propaganda da instituição. O garoto não tinha redes sociais, ou pelo menos elas não eram abertas, mas a menina, Tiffany, tinha milhões de seguidores. Em várias fotos ela aparecia vestida com o emblema da OGP, algumas em palestras na sede da organização, uma com o presidente do Brasil e diversas outras em eventos culturais e políticos pelo mundo, isso tudo em apenas 1 ano no projeto. Pelo que Anne havia escutado, os jovens participantes eram encorajados a se manterem ativos nas redes sociais, postando sobre os eventos frequentados e projetos desenvolvidos, mas nunca nada que revelasse, de fato, suas rotinas e a localização da base do projeto. Tiffany parecia muito simpática e respondia comentários de vários de seus seguidores, o que se repetia também com os participantes de outros países. Anne percebeu que eles eram mais ativos em seus primeiros anos no projeto e depois acabavam rareando suas postagens, apenas para reaparecer como políticos respeitados em seus países ou na própria OGP uns 6 ou 7 anos depois.

A garota “stalkeou” mais alguns deles até achar, por acaso, o jovem “senhor Costa” que estava presente na mesa avaliadora de sua entrevista. O nome dele era Rafael Costa, mas todos pareciam chamá-lo pelo sobrenome, ele tinha 19 anos aquele já era seu terceiro ano no projeto, o que significava que ele havia sido admitido aos 17.  Costa era bem popular em suas redes socias, principalmente entre o público feminino, o que não era uma surpresa. Como Tiffany, ele também era bastante visto em eventos da OGP e Anne pensou que era exatamente essa imagem que eles queriam vender: jovens bonitos, inteligentes e engajados que seriam preparados para fazer o melhor pela humanidade em nome da OGP. Aquilo a fazia se sentir desconfortável, principalmente quando pensava em como a influência da OGP só crescia ela imaginava como, um dia, não haveria fronteiras ou governos no mundo, apenas a Organização Global pela Paz, que sufocaria toda a autonomia das nações “em nome da paz”, enquanto boa parte da população trocaria, de bom grado, seu direito de autodeterminação por essa paz perpétua: sem guerras, sem conflitos, sem voz...

 Foi só quando Anne ouviu a voz de sua mãe a chamando para jantar que ela se deu conta de quanto tempo ficara ali, pesquisando sobre o Jovens do Novo Mundo e seus “jovens brilhantes”. Ao que parecia, o plano de ignorar os acontecimentos até o fim do prazo de convocação havia, de fato, fracassado e Anne se conformou com o fato de que isso ocuparia sua mente nos próximos 5 dias, ou por mais um mês, ou dois meses, ou para o resto de sua vida. Anne respirou fundo e foi jantar, sabendo que depois dele os pais contariam sobre a demissão e ela teria que ficar ali e fingir que já não sabia disso.


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