Midnight

A vida nas últimas semanas estava sendo ótima. Talvez melhor do que fora por todo esse tempo. Ainda era tão irreal que Moony estava viva, e, o mais inacreditável, fora acolhida na alcateia de Radius quando ainda era uma filhote. Admito, era estranho ver as demonstrações de afeto fraterno entre os dois. Quero dizer, isso me fazia olhar para ele com olhos de irmã também, mas então eu me lembrava de que ele era o companheiro da Diamond, e as coisas ficavam uma bagunça.

Diamond. Nossa relação havia melhorado bastante. Eu sei, não deveria ter guardado toda aquela raiva gratuita dela, mas apenas se acumulou em mim por tanto tempo... Simplesmente me acostumei com a sensação. Porém, era bem melhor conviver diariamente sem nenhum tipo de atrito.

Além de tudo, Honey, a companheira do Mike, veio se juntar a nós. Éramos seis e agora somos nove, então a alcateia anda bem ativa. Caçar se tornou uma tarefa um tanto mais fácil, e a atmosfera parece estar sempre calma. Era bom poder somente... respirar.

― No que está pensando? ― Moon se aproximou de mim, sentando ao meu lado. Eu estava sentada próxima a caverna, divagando sobre tudo, enquanto mamãe, Radius, Mike e Honey estavam se preparando para sair numa caçada. Nunca fui muito afim de caçar, então me esquivava sempre que podia. As vantagens de ter uma alcateia mais cheia era poder trocar de tarefas. Em vez de caçar, irei patrulhar com papai.

― Acho que em tudo. ― disse, com a mente ainda nas nuvens. ― Tudo está tão diferente. Não que isso seja ruim. Apenas nunca imaginei.

― Provavelmente ninguém imaginou. ― ela riu docemente.

Tive que concordar. Não pude deixar de me lembrar da época onde as coisas começaram a dar errado ― quando éramos filhotes, em Slough Creek. O dia em que Moon desapareceu e todos pensamos que ela estava morta. A dor que eu senti fora tão forte, tão avassaladora. Eu não conseguia entender como aquilo havia acontecido. Então, apenas resolvi encontrar uma explicação, e ela se chamava Diamond. Teoricamente ela era a responsável por Moony, e não a ajudou quando precisava. Sinceramente, eu não consigo realmente entender o que eu pensei nesse dia, quando minha raiva se encontrou com minha tristeza, e as duas foram crescendo juntas, ajudando-se mutuamente.

Eu sempre tive uma pitada de mágoa, por ser constantemente ignorada pelo meu pai, mas não podia ser comparada a melancolia que passei a sentir desde aquele dia. Talvez no fundo, eu sempre senti raiva dela. A filha perfeita, tão querida por todos. Era sempre ótima em tudo o que fazia. Sempre ganhava atenção, enquanto eu sempre ficava em segundo plano. Parece mesquinho, eu sei. Eu só queria que meu pai me olhasse da forma que ele a olhava. Ele nunca me desprezou, só pareceu nunca se importar.

Mas com o tempo, isso passou a melhorar. Fui me sentindo mais aceita, mesmo com toda minha irritação crescente. Não foi o suficiente para dar um fim nela, mas me sossegou um pouco.

― Midnight, tem certeza que não quer vir? ― mamãe me perguntou com sua voz suave.

― Tenho.

Ela me encarou e seguiu então com os outros três lobos logo atrás de si. Todos caçavam bem, em especial Mike. Mas dos cinco irmãos, a melhor caçadora era Diamond. Seus movimentos eram delicados e precisos. Vê-la caçando era como assistir uma dança, porém bem intensa e mortal. Seu comportamento, no entanto, estava me intrigando. Ela não caçava havia um certo tempo, e seu humor estava... irritante, no mínimo.

― Tem alguma ideia do que aconteceu com Diamond? ― questionei minha irmã.

― O que quer dizer?

― Ah... bom... ― lembrei-me de que ela não estava aqui por tanto tempo assim. Era estranho como eu tinha essa sensação de preenchimento. ― Diamond sempre adorou ir caçar. Ela nasceu para isso, afinal. Mas ela anda toda amuada.

― Bem, isso é verdade. Mas não sei de nada, desculpe Middy.

Dei de ombros e fui checá-la. Dentro da caverna, uma bolinha branca de pelos dormia. Por que não estou surpresa?

Me aproximei e lambi sua testa. Aquilo me fez lembrar da época em que pensávamos que Radius estava morto e toda aquela história. Eu fiquei cuidando dela a maior parte do tempo, porque era insuportável para ela ficar com outro lobo da família.

Ela nem se moveu e continuou em seu sono. Permaneci ao seu lado por mais algum tempo. Estava tentando decifrar sua aura, tentar entender o que acontecia, mas sem resultados. Silenciosamente, saí da caverna e papai me esperava do lado de fora.

― Pronta? ― o lobo negro perguntou.

Assenti com a cabeça enquanto deixávamos Moony e Nix de prontidão na área central do território ― a própria caverna.

Patrulhamos em silêncio por todas as margens da alcateia. Nenhum de nós dois sentiu algum cheiro diferente ou algo do tipo, o que eram boas notícias. Era incomum encontrar invasores por aqui, na verdade. As alcateias dessa região já tomam conta de grandes porções de terra e não buscam por mais ― pelo menos por agora. Então, não há invasões de alcateia, apenas lobos solitários vagando pelo lugar errado. Lobos que acham que podem vencer o alfa, mas não sabem com quem estão se metendo.

― Acho que tudo bem por hoje. Fizemos um bom trabalho, Mid. ― papai lambeu meu focinho e eu retribuí. ― Vamos voltar logo, já vai escurecer.

― Pode ir na frente, já vou indo.

Ele deu de ombros e deu início a sua caminhada. Eu apenas queria um tempo em silêncio, sentindo a brisa. Nosso território ficava em um lugar muito agradável, tinha que admitir.

Olhando para minha esquerda, notei ao longe um lobo cinza-escuro. Já havia visto aquele lobo pelas redondezas diversas vezes. Como sempre, ele apenas acenou com a cabeça, esperou eu acenar de volta e foi embora. Me pergunto o que ele faz aqui. Seu porte é grande, e às vezes tenho medo de que ele tente algo. Sacudi os pensamentos. Papai o venceria de qualquer forma. Mas algo me diz que ele não é uma ameaça para nós.

Ao chegar em casa, me deparei com uma corça de tamanho não muito grande, e já sem muita carne, dentro da caverna. Haviam lhe sobrado duas coxas e mais alguma coisa no peito, além dos pequenos pedaços de carne espalhados por todo o corpo, é claro. Fucei o que pude e comi. Não estava muito esfomeada, no entanto, então não me importei demais. Diamond ainda dormia, então reservei uma coxa para ela.

Quando a Lua estava bela no céu, já totalmente à vontade em seu posto, nós nos encontrávamos cansados. Especialmente os lobos que caçaram hoje. Caçadas diurnas costumam dar mais trabalho, mesmo com as suas pelagens amarronzadas.

Assim, fomos dormir.

Acordei silenciosamente pela manhã. Papai não estava mais na caverna ― ele sempre sai muito cedo para patrulhar. Eu deveria tentar fazer o mesmo para ir junto a ele... Diamond e Radius também não estavam aqui. Fiquei um tanto aliviada por saber que ela finalmente havia saído de seu esconderijo, seja lá por qual fosse o motivo. O comportamento não usual de Diamond estava me preocupando um pouco.

Ao observar mais um pouco antes de sair, pude ver Mike aconchegado à Honey, ambos dormindo pacificamente. Nix se encontrava no fundo da caverna, seu sono pesado como sempre. Moony e mamãe também já deveriam estar de pé, vagando pelo território ou qualquer coisa.

Saindo de lá, senti gotas d’água em meu pelo. Só então notei que estava chovendo. Não muito, no entanto. Apenas uma chuva moderada e calma. Pude ver mamãe conversando com Moon, as duas sob o céu escuro. Juntei-me a elas enquanto conversávamos casualmente. Aquilo era tão... estranho. Do jeito bom, é claro.

Pouco tempo se passou quando papai retornou de sua patrulha. Nada fora do comum, segundo ele. Logo, Mike e Honey despertaram, e Nix também, sendo a última como sempre fora. Todos nós resolvemos ficar reunidos dentro da caverna naquela manhã chuvosa, enquanto nos divertíamos juntos. Não demorou muito para que Diamond voltasse também, com Radius ao seu lado. Ao nos ver reunidos como uma... família feliz, eu acho, ela sorriu.

O lobo alaranjado entrou na toca, enquanto sua companheira desfrutava um pouco mais das águas que caíam do céu. Acho que todos já sabíamos como ela adorava sentir a chuva em seu pelo.

Entrando na caverna, ela suspirou.

― Eu tenho algo muito importante para dizer a todos. ― sua voz saía ansiosa. Pude notar que sua aura estava reluzente. Brilhante, de certa forma. Levantei uma sobrancelha, desconfiando um pouco do que aquilo se tratava.

Assim que todos nós estávamos voltados a ela, a loba prosseguiu:

― Não vou enrolar demais... Mas não precisam se preocupar, são ótimas notícias: eu estou grávida! E eu e Radius iremos oficializar nossa união dentro da alcateia.

Um sorriso naturalmente surgiu em meu focinho, me pegando desprevenida. Aquilo explicava a forma como Diamond estava agindo. Logo, estávamos todos em cima dela, a acariciando e a abraçando. Era um dia feliz para nós, mesmo sabendo que ela ficaria algum tempo longe.

Diversos “parabéns” eram fáceis de se ouvir. Quando todo o alvoroço se desfez, mamãe e papai finalmente puderam abraça-la corretamente. A loba acastanhada não escondia suas emoções, e fora uma das poucas vezes em que estava estampado no focinho de papai o que ele sentia: felicidade.

Resolvi fazer o que achava mais sensato para mim e puxei um uivo. Assim, todos quase que instantaneamente começaram a uivar também. Era algo lindo de se ouvir, todos os timbres juntos formando um só som.

Nossa alcateia finalmente estava na mais perfeita harmonia.