Camélia escrita por SatineHarmony


Capítulo 1
Prólogo




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Inukashi inspirou fundo com avidez, como se saboreasse o ar. Ultimamente, sentia-se tão frágil que temia que cada respiração sua fosse ser a última.

Eu vou sobreviver, eu vou sobreviver... O pensamento, que martelara sua cabeça durante toda sua infância e adolescência, veio à tona com intensidade dobrada. Quem me dera se eu tivesse igual força de vontade, lamentou-se ao recordar a liberdade da qual desfrutava nos tempos passados. Cuidar do hotel, fazer negócios, aproveitar a companhia de seus cães... Agora, ela não era capaz de fazer mais nada — no momento, ela era tão útil quanto um zero à esquerda.

A sensação de debilitação que tomava conta de seu ser era frustrante. Às vezes, Inukashi pegava-se pensando em suicídio — tudo seria tão mais fácil caso ela simplesmente desistisse de tudo... Mas ela nunca faria isso com Mama, e nem com Shion — na verdade, ambos os Shion ficariam muito tristes com a sua partida. Talvez, até mesmo Rikiga se sentiria desconfortável, caso Inukashi morresse. Claro que ela nunca teria certeza disso — afinal, nunca se deve subestimar a indiferença de alcoólatras cafetões.

Talvez este fosse o seu castigo. Ela nunca previra que viveria tanto tempo assim; talvez a sua hora tivesse chegado. Este poderia ser um sinal — o sinal de que ela já obtivera tudo possível de sua vida, e, agora, deveria partir. Apesar de ter feito as coisas que fizera, Inukashi não guardava nenhum arrependimento — na verdade, ela possuía apenas um: morrer em silêncio.

Quantas moedas será que ela deu para Nezumi, para fazê-lo prometer cantar quando a sua hora chegasse?

E, no final das contas, o filho da mãe nem se dignaria a aparecer. Que mentiroso.

A cortina da janela ao lado da sua cama tremulou, desfazendo o padrão criado pelo vento. A postura de Inukashi tornou-se tensa ao ver uma mão apoiar-se no batente, fazendo apoio para que o corpo passasse pela abertura sem dificuldade.

Ela reconheceu de imediato aquela silhueta esguia que se movia com a habilidade de um felino — por mais que o seu nome indicasse extrema aversão a tal animal. Os cabelos azuis estavam mais longos do que nunca, chegando quase na metade das costas delineadas. As feições estavam mais sérias, mais definidas — elas inspiravam experiência e maturidade. Os olhos prateados, porém, não mudaram coisa alguma — continuavam tão penetrantes como já eram onze anos atrás.

Os cantos da boca de Inukashi curvaram-se para cima em um sorriso:

— Seu maldito, você está atrasado.

* * *

Shion fechou o livro que estava lendo ao ouvir seu alarme apitar. Saiu de seu quarto, rumando às escadas. No entanto, antes de cruzar a porta que dava acesso ao segundo andar, vestiu o jaleco e um par de luvas cirúrgicas, que estavam dispostos sobre um banco, próximo aos últimos degraus.

Seguiu pelo corredor de paredes brancas, parando em frente à porta localizada na parede do fundo. Abrindo-a, deparou-se com uma dúzia de prateleiras contendo inúmeros equipamentos hospitalares. Após percorrer os olhos por todos eles, encontrou o que queria: uma bolsa de soro.

Fechou a porta de madeira, virando-se novamente para o corredor.

Seu corpo paralisou-se. A bolsa de soro escorregou por entre seus dedos congelados, até cair no chão. O silêncio era tão intenso que o som mínimo resultado do encontro do plástico com o piso equivaleu a uma explosão atômica.

Pele alva.

Longos cabelos azuis.

Olhos prateados incrivelmente persuasivos.

Nezumi.

Mil e uma perguntas surgiram em sua mente: Você está bem?, Por onde você esteve?, Por que você me deixou?, Por que você está de volta?, Por quanto tempo?, Você sentiu a minha falta?, Hamlet e Cravat ainda estão vivos?, Como você entrou na minha casa?, Quando você vai me dizer o seu nome verdadeiro? No entanto, Shion encontrou forças apenas para impulsionar-se na direção do outro garoto — não, homem; aquele garoto que outrora o ensinara tanto agora era um homem.

Corpos colidiram, mãos tatearam, lágrimas caíram. Soluços e suspiros soaram, até que suas bocas encontraram-se. Foi um beijo completamente desleixado que gritava mais necessidade do que amor — entretanto, se essa necessidade era provocada pelo amor, então esses dois não eram tão diferentes assim, certo?... Dentes bateram entre si, um lábio inferior foi mordido, fios de cabelo foram puxados, uma nuca foi arranhada.

Línguas roçaram-se, e pernas desfaleceram, levando seus respectivos donos ao chão. Um par de braços envolveu o pescoço alheio, o outro abraçou uma cintura estreita.

Quando suas bocas por fim se separaram, Shion estava ofegante, e Nezumi apresentava certo rubor sobre suas maçãs do rosto.

— Nezumi, eu... — mais lágrimas foram derramadas dos seus olhos vermelhos. Ele era incapaz de encontrar fôlego suficiente para pronunciar corretamente uma palavra sequer.

O outro pousou seu dedo indicador sobre os lábios de Shion:

— Shh, nós conversamos mais tarde. Eu prometo que teremos tempo para isso. — assegurou, notando a incerteza e a hesitação presentes na fisionomia alheia. Shion assentiu, posicionando seu queixo sobre o ombro de Nezumi.

O homem de cabelos azuis pensou ouvir um agradecimento sussurrado do outro, porém, antes que pudesse confirmar, sentiu a respiração de Shion tornar-se ritmada.

Então é isso?, Nezumi, pensou, reprimindo a vontade de soltar uma risada. Onze anos sem se verem — onze anos depois daquela despedida arrasadora —, e a primeira coisa que Shion faz ao tê-lo de volta é dormir? Ele deve estar exausto de tanto trabalhar, Nezumi lembrou-se, deslizando suas mãos pelas costas deste, de forma a distribuir carinhos.

Durante o tempo em que ele peregrinara de lugar em lugar, ele sempre tratava de receber notícias sobre No. 6. Sem coragem de visitar a cidade-estado até agora, Nezumi informava da melhora progressiva do lugar através de rumores — ora verdadeiros, ora falsos. Entretanto havia algo em que todos estranhos eram unânimes: o Comitê de Restauração estava fazendo um trabalho formidável no governo — em especial, um jovem de cabelos estranhamente brancos.

Nezumi sentia-se sujo. Era como se ele tivesse faltado com alguém — e não era com Inukashi. Ele era um covarde por ter usado a sua enfermidade como desculpa para voltar. Sim, era isso que ele era — um covarde. Um covarde e um fraco, por ser incapaz de olhar nos olhos de Shion e pronunciar aquelas três palavras: Voltei por você.

Por ora, Nezumi tinha Shion em seus braços, e nada mais importava.


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Notas finais do capítulo

Antes de tudo, uma coisinha:
Para convencer Inukashi a conseguir informações sobre o reformatório, Nezumi promete a ela que lhe cantaria quando sua hora de morrer chegasse (volume 3).
...E é isso ^^ Eu quero muito continuar essa história, porque essa ideia já estava na minha cabeça há bastante tempo. Então, por favor, se você se interessou, é só deixar um review *-*