Sombras de Cerejeira escrita por Mrs Flynn


Capítulo 1
Os olhos




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Aquela moça de pele muito branca olhava a janela do quarto alto e via as folhas da velha árvore caírem pelo vidro. Ela não sentia o vento, mas aquelas folhas sendo levadas por ele a faziam quase ter a sensação de senti-lo.

Seus olhos verdes como esmeraldas polidas e claras estavam bem abertos e refletindo a luz que entrava pela janela. Aqueles olhos de gato eram estonteantes, agudos, observadores, sagazes, perfuradores, ingênuos, em alguns momentos, dissimulados quando se sentia ameaçada, ou impelida a não chocar ou mesmo mentir pelo bem maior... Mas naquele momento eram apenas duas esmeraldas vazias. Como joias reluzindo sob a luz do sol, desmotivadas.

Sentada em uma cadeira de balanço de madeira velha de carvalho que fora a herança de sua velha e amada avó, ela olhava para Paris pela janela vendo a tarde cair junto das folhas de outono. Aqueles olhos estavam então tristes.

Olhos que poderiam ser arrancados e vendidos como pedras preciosas, de tão cobiçados pelos homens todos da sua classe social. Eles queriam ser apreciados por aqueles olhos, eles queriam que eles caíssem sobre seus encantos. Queriam amordaçá-los. Eles queriam amordaçá-los porque aqueles olhos não tinham limites. Aqueles olhos mordiam. Eles queriam aprisionar aqueles olhos livres aos seus efêmeros encantos de príncipes disfarçados. Mas eles estavam sempre olhando as folhas caírem de modo a ver o tempo passar e esperar a morte. Não tinham pretensões, nem almejavam. Pareciam demasiadamente mal usados! Mortos.

Como ser visto por aqueles olhos, se eles nada enxergavam? Apenas algo simples como aquelas patéticas folhas amarelas àquele patético vento, podiam prender a atenção daqueles olhos. Nada mais grandioso podia arrancá-los de seu repouso blasé sobre uma estação do ano. Eles eram irredutíveis e serenos. Não podiam ser amordaçados, porque não precisavam de nada que os donos das mordaças tinham à oferecer.

Ela semicerrou o olhar, ouvindo aquele barulho de ranger característico da porta do seu quarto a se abrir. Continuou olhando a janela. Mas ficou alerta.

--- Sakura, você está atrasada, mon amour, vamos lá embaixo para o jantar com os Blanc... –disse a mãe, sorridente.

A mãe de Sakura, Annelise, era uma mulher de cabelos ruivos, muito claros como os dela, mas tinha olhos verdes num tom quase negro como boa parte da família. Só ela tinha puxado os olhos. Aqueles olhos da avó. Aqueles que a assombravam e assombraram por muito tempo...

Ela às vezes odiava aqueles olhos. Os homens gostavam tanto que não paravam para olhar para outro lugar nela que não fosse os olhos, no primeiro momento. E todas aquelas afirmações dos familiares tipo; “Oh, como eles são iguais aos de Marie!” ou “É impressionante como eles são lindos como os de Marie” davam-na arrepios. Porque ela sentia-se mais triste ainda por não poder ter conhecido a avó que os deixou tão ricos e abastados. E que era um assunto tabu para a família que não comentava nada sobre a mulher desde que Sakura se entendia por gente.

Bem como quando diziam que aquele cabelo rosa não combinava com aqueles lindos olhos verdes e aquela testa comprida. Mas Sakura gostava de tingir os cabelos ruivo claros de uma tinta rosa muito clara. Queria fugir, sabia em seu coração, daquele mundo tão abastado que não fazia jus à personalidade tão sincera e apegada ao passado e às coisas pequenas.

--- Não está na hora do jantar. Está de tarde, mamãe. –disse ela, com uma voz simetricamente planejada para não deixar a mãe preocupada.

--- Tudo bem. –suspirou Annelise. –Mas vamos lá embaixo me ajudar a aprontar a mesa? Quero que esteja tudo impecável. Os Blanc são amigos da família desde que seu pai e eu éramos crianças. Você vai conhecer Laurent, o filho deles. Eu também vou. Ele nasceu depois que os Blanc foram embora... Não é interessante? –ela sorriu sem jeito - Por favor, Sakura... –suspirou.

--- Você fala tanto, mamãe. –sorriu Sakura, simplista.

As folhas do outono se balançaram mais rapidamente, embalando-a em sua melodia. Ela estava serena, mas então tornou-se séria. A voz de sua mãe imterrompeu-a.

A mulher suspirou e Sakura ouviu aquele suspiro pesado de preocupação, ficando tensa.

--- Você sabe que eu vim mais para ver se você estava bem! Você tem ficado ai trancada o dia inteiro olhando a janela... O que está acontecendo?

Sakura virou-se para a mãe, olhando-a por cima do ombro, na cadeira de balanço. Semicerrou o olhar. Ela odiava quando a mãe fingia não saber o que acontecia. Era óbvio que Sakura não queria jantar com os amigos de sua mãe. Ela só queria ficar sozinha. Estava por algum motivo inconsolada naquela tarde. Queria viver, mas não importava o quanto tentasse encher seu peito de ar puro e se contentar, alguma coisa faltava. E jantar com desconhecidos só a deixaria mais sufocada.

--- Nada, ora. –disse ela, irritada –Só estou pensando em escrever um pouco, por isso meditar é ótimo. –disse, mentindo.

A mulher pareceu convencida. Ou pelo menos seu subconsciente tentou convencê-la e ela aceitou.

--- Por favor, Sakura. –pediu a mãe, séria.

--- Tudo bem. –respondeu a filha, de costas para a mãe. –Se é isso que me pede, irei colocar um vestido assentado, para que pareça um flor de cerejeira. –disse, sorrindo para si mesma.

Será que sua avó se parecia com uma flor de cerejeira? Ou gostava muito delas? Sim, porque os pais sempre lhe diziam, quando perguntava porque seu nome era Sakura, que sua avó os inspirara a isso. Mas o maldito mistério não os deixava contar para ela nada mais. Sakura talvez estivesse cansada de ter um nome fantasma. De um fantasma de que ninguém queria falar. Talvez fosse isso o porque do seu vazio.

--- Minha filha... O que você tem? Juro que pode me contar. –disse a mãe, com uma voz tão aflita que Sakura tornou-se branda.

--- Eu sinto um vazio, mamãe. –disse ela, desabafando.

Sakura não estava certa de que aquilo era a coisa certa a fazer. Mas estava profundamente cansada. E mesmo que sua mãe fosse uma mulher temperamental, ela queria dizer a verdade e acabar com o silêncio.

Seus olhos verdes determinados brilhavam enquanto sua mãe a olhava boquiaberta. Sakura levantara e ficara de costas para sua janela de Paris no outono. Fitando sua mãe, tapando levemente a luz da janela, apenas seus olhos verdes brilhavam num rosto escuro.

--- Eu acho que quero saber o que houve com a minha avó. –as palavras dela foram medidas e sérias.

Annelise suspirou, irritada.

--- Sakura, eu sei qual é o seu problema, querida. Você está apaixonada! Oh, você está apaixonada! –exclamou a mãe, com um sorriso cínico.

--- O que? Claro que não... –disse Sakura, frustrada.

--- Talvez não ainda. Mas já sei que o seu coração está seco. –disse ela, aproximando-se de Sakura, lentamente.

A mulher ficou confusa vendo a mãe com tanta veemência afirmar sua hipótese. Sakura piscava os olhos, se sentindo irritada, nervosa.

Apaixonada? A mente de Sakura riu-se. Mas ela nem sequer conhecia homem algum que lhe interessasse. Eram todos uns tontos. Uns perfeitos tontos. Caiam em qualquer conversa que ela lhes dizia, nos telefones falsos que ela dava, ou mesmo que se fossem ao cinema ver um filme de que ela gostava, ia se casar com eles.

Sakura era a princesa encantada. E se sentia na verdade terrível por ter esse papel em suas relações amorosas. Por isso havia decidido havia algum tempo que não precisava sair com homens.

Mas ela queria saber por que sua mãe afirmava aquilo com tanta petulância e certeza.

--- Quer saber sobre a sua avó? –disse a mãe, engolindo em seco, de modo que Sakura se tornou ainda mais confusa.

A mãe parecia nervosa.

--- Pois eu vou dizer. –disse a mãe, fazendo Sakura engolir em seco.

--- Mãe... –murmurou Sakura.

Será que ela queria mesmo saber? Pensou.

--- Eu vou dizer apenas uma coisa Sakura. É por isso que eu sei que o que lhe falta é um amor. Por causa de sua avó. Acredito que vocês duas são parecidas. E a sua avó teve um grande amor. Ela casou-se com ele, foi feliz, morreu feliz. –a mãe dizia, com lágrimas nos olhos.

Tinha sido tão comovente assim? Um amor? Era isso que deixava o mistério a pairar sobre o túmulo de sua avó por tanto tempo? Sakura estava de certo modo aliviada. Ela temia que sua avó tivesse sido assassinada. Ou mesmo que tivesse morrido com um segredo terrível. Mas então era apenas um idiota de um amor? Sakura nem se quer tinha certeza de que sabia o que significava isso.

Tinha vinte e dois anos. Dois namorados, muitos romances. Mas nada a fazia sentir viva. Então era isso que a sua mãe queria dizer? Que a faria se sentir viva que ela amasse, pois foi assim que a sua avó conseguiu ser feliz? Mas isso era estranho. Sakura suspeitava.

--- Não acredito que é por causa disso que evitam falar dela. Dói tanto assim saber que a sua mãe e o seu pai se amaram magnificamente para morrer subitamente?

A mãe suspirou, irritada.

--- O caso é que os dois foram quem construiu o império de exportação de madeira de cerejeira, Sakura. Seu nome é assim porque seus avós amavam o que faziam e porque a riqueza que temos, foi deles. E... E é muito triste para nós todos falar nela. No que foi a vida dela. E que se acabou naquele acidente.

Sakura ficava nervosa quando imaginava que sua avó tinha morrido antes dela nascer. Ainda mais quando imaginava a limusine em chamas e seus avós morrendo sobre elas. Sem poderem escapar.

Mas ninguém nunca falava da vida dos dois, era verdade. Era sempre dizendo que o acidente tinha acontecido, e pronto. Ninguém lhe falara, era verdade, dos gostos de sua avó, de sua empresa, de sua vida. Deu seu avô. Sakura sabia exatamente nada de seu avô.

Seus olhos pareciam refletir a tragédia toda vez que lembrava. E a mãe ficou um pouco abismada com a postura da filha.

--- Venha aqui. –disse ela, puxando a mão de Sakura, dando-lhe colo. –Você precisa amar alguém como ela amou, Sakura. Você precisa ser amada por um homem que lhe dê tudo. Que você veja, em seu olhar... –a mãe parou, estranhamente. –Que você veja... Em seu olhar... Que ele está disposto a morrer por você.

Mas Sakura estava farta. Ela não queria mais saber de como a sua avó vivera. Ela achava uma bobagem a comparação que a mãe fazia dela com a avó.

--- Não vou mais perguntar para vocês, juro. –disse a voz dela, rouca - Tudo a que chego sempre é que sou extremamente parecida com vóvó. E agora isso, sobre homens. Já disse a você, mamãe, não vou me casar com o filho dos Blanc. Mesmo que seja a sua extrema vontade. Nem o conheço. Acha ao acaso que somos indianos? Com casamentos arranjados? Eu nasci em Paris. Pertenço a noite e à torre, embalando meus sonhos nas canções tristes e frias. Isso sim me faz feliz. A liberdade.

Sakura dizia aquelas palavras, mas a angústia tomava sua boca, dando um gosto amargo. Não porque estivesse mentindo para si mesma, mas porque o vazio a deixava fraca, triste. E mesmo essas palavras não a convenciam de que liberdade era tudo de que precisava.

Será? Pensava aquele doce cérebro.

--- Vamos, vamos Sakura, querida. –disse a mãe, levantando-a. –Filha... Você pode ficar com a sua roupa de Paris, sua roupa liberta esse jeans e esse cachecol vermelho. –sorriu.

--- Não mãe. Vou pôr o vestido rosa de chiffon com cerejeiras. Ele é lindo. –murmurou Sakura, saindo como um zumbi do quarto, fechando a porta atrás de si.

Seus olhos verdes eram cansados, duas bolas de gude inchadas, enquanto uma pequena e discreta lágrima corria por ali, sem que sua mãe vesse.

~

A temperatura estava amena, com o sol escondido e a noite agradável. Os ventos balançavam as delicadas cortinas do casarão, dando um ar sereno àquele jantar em família. Sakura estava linda. Com seu vestido de chiffon rosa combinando com seus cabelos rosa muito claros. Aqueles olhos de gata, atentos, olhavam com ferocidade para a mesa luxuosa com um banquete abundante. A toalha de mesa também voava levemente com a brisa fresca que adentrava a janela. E isso, como de costume, deixava Sakura pensativa. Desde criança, ela era muito atenta à tudo que estava a seu redor. E cada movimento fazia-a ponderar sobre algo diferente.

Naquela noite, ela pensava no quanto de comida tinha naquela mesa. Que dava para alimentar muitas pessoas. E se sentia impotente.

Annelise andava para lá e para cá, esperando a campainha tocar. O pai de Sakura, Arthur, estava sentado à cabeceira da mesa, com um rosto sorridente, olhando para as janelas grandes a serem furadas pela brisa.

Sakura se aproximou dele, sorrindo singelamente. O pai era sempre gentil, a mãe era sempre anfitriã e severa.

Ele a olhou bem fundo nos olhos, como sempre fazia, e não lhe cobrou nada. Ela amava muito o pai. Ele não parecia estar infeliz nunca. E tinha um olhar doce como o de uma mulher. Talvez puxasse a mãe.

--- Como eles são? –indagou Sakura.

--- Os Blanc?

--- Sim.

--- São adoráveis. Sua mãe gosta muito a Sra Blanc. Elas duas sempre conversavam muito. O casal é amável. –disse ele, absorto.

--- O filho, quero saber dele. –disse Sakura, direta.

O pai a olhou, parecendo confuso.

--- O que tem ele?

Sakura suspirou. Sim, o que tinha ele? Já devia saber que apenas na cabeça de sua mãe o homem seria o noivo destinado a ela pelas estrelas. Sakura sentiu-se boba e sorriu.

--- Você parece uma boneca quando dá esse sorriso, Sakura. –disse o pai, coruja.

--- Não tem nada, papai, o filho, não tem nada! –exclamou Sakura, indo sentar-se na cadeira ao lado.

O pai lá ficou, sem entender.

Até que a campainha tocou.

Annelise foi atender de prontidão. A senhora Blanc era uma mulher muito alva, dos cabelos e olhos extremamente negros. O senhor Blanc era um homem também alvo de cabelos e olhos negros. Sakura assustou-se. Eram estranhos. Fúnebres. As mãos deles eram cheias de veias aparecendo, de tão brancos. Mas estranhamente pareciam voar sob a brisa. Os cabelos voavam em uma elegância natural que os deixava intocáveis. Os olhos da senhora Blanc eram muito bonitos, cílios grandes, olhos angulosos. Sakura costumava observar olhos, devido a vida inteira em que os seus foram observados. Gostara dos olhos da Blanc. Mas os olhos do marido eram funestos. Não tinham a luz fraca e desapegada dos olhos da esposa. Haviam densos cortes de olheiras, mas que pareciam apenas sinais. Ele olhava para baixo, deixando seus olhos negros já pequenos, quase fechados.

Depois de falar com a sua mãe num sorriso planejado, o marido sentou-se ao lado do pai de Sakura. A esposa graciosa continuou a conversar com Annelise.

Sakura estava concentrada na esposa, vendo sua leveza. Mas então o filho entrou.

--- Olá. –disse a voz do homem para a mãe de Sakura, cordialmente.

Os cabelos negros desciam até o pescoço, muito lisos e brilhantes. Vestia uma roupa um pouco formal, mas nada exagerado. E seus olhos tinham a mesma névoa que os de seu pai, porém tinham o formato dos olhos de sua mãe. E no fundo deles, tinha uma meiguice que Sakura achava melancólica.

Era diferente do que ela imaginava. Ela imaginava que seria irritante olhá-lo, que seria irritante ter que ser gentil com ele, porque ele era apenas um homem de família rica com quem sua mãe simpatizava. Mas ele era tão misterioso e tão melancólico, que a deixou excitada por conhecê-lo. Pela primeira vez um homem não olhou primeiramente para os seus olhos e ficou lá, vidrado neles. Como se fosse um idiota.

Laurent passou direto por ela, mas Sakura notou quando os seus bonitos olhos desviaram para de sua carranca séria para olhar os dela de relance.

Então ele sentou-se perto de sua mãe depois de cumprimentar a mãe dela. Sakura ficou fitando-o, como se não houvesse mais ninguém na sala. Ela estava apaixonada. Como uma garota inocente. Como ela podia se deixar levar daquele modo? Talvez se sentisse enfeitiçada por aquele olhar bonito de introspecção. Ou talvez porque ele não olhou os olhos. Ele não os cobiçou. Ele os olhou de relance, mas Sakura viu o que ele fez. Sim, ela tinha certeza. Apesar de aquele homem não olhar os olhos dela com cobiça, ele se sentia atraído por eles e por isso desviava o olhar, como se o perturbasse olhar dentro daqueles profundos olhos verdes. Diferente dos outros homens, Laurent sentia-se ameaçado pelos olhos e não apaixonado.


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