Fúnebre Existência escrita por Policromo


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Joel assemelhava-se a uma besta farejando a desgraça. Pronta para atacar a qualquer momento. Os nervos sobressaltavam-se em sua testa. Seus olhos viçosos engoliam o cenário tão devastador de modo voraz, analisando cada centímetro à procura do mais tênue movimento. Postura pouco ereta, a julgar pelas coisas terríveis que já enfrentara. Desde o dia em que perdera Sarah, não sabia se havia mais algum sentido em viver.

Mas havia Ellie.

Garota esta tão sensível quanto uma flor que brota no jardim, mas a mais forte dentre todas do campo. Seus olhos verdes tão cristalinos quanto a água fotografavam cada cena, cada detalhe. Jamais esqueceria o primeiro toque na arma fria como gelo, cujo gatilho parecia quase impossível de apertar. Seus dedos pareciam feito chumbo quando cometera o primeiro assassinato. Desde então, a realidade banhada pela escuridão profunda queimava-lhe os olhos ingênuos.

O som horrendo das terríveis criaturas, cujas formas antes pertenciam inteiramente a seres humanos, perseguia Joel e Ellie até mesmo nos descansos mais breves. A dor sufocava-lhes a cada piscar de olhos. Aquele inferno jamais teriam fim?

Joel já não dormia há dias. Vigiava o sono de Ellie, mas sequer fazia ideia de que esta fingia dormir sempre que podia, o que não era raro. Ambos velavam o sono um do outro, numa tocaia incessante a fim de rastrear qualquer perigo iminente.

Joel certa vez permitira-se sonhar com Sarah. Sua morte causara-lhe uma cicatriz profunda em seu peito, mas tentava esquecê-la na medida do possível. Sua única filha. Sua única família. Lembrava-se dos olhos de brilho dócil e de sua tamanha espontaneidade. Tentava esconder as lágrimas que atravessavam suas bochechas cobertas de fuligem e sangue sempre que pensava nela, imaginando que Ellie jamais as veria durante o sono.

— Obrigada. — Ellie agradeceu a Joel numa tarde qualquer de outono. As folhagens das árvores caducifólias contrastavam majestosamente com o sol que tardava a desaparecer no horizonte.

Joel continuou a caminhada como se não houvesse escutado nada, mas no fim perguntou:

— Pelo quê?

— Ah, você sabe — A garota tinha os olhos fixos na nuca de Joel, tentando organizar as palavras que invadiam sua mente. No momento em que ajeitava a alça de sua mochila, uma brisa acolhedora bagunçou-lhe os cabelos castanhos. Seus olhos reluzentes seguiram subitamente uma folha desolada tracejando o céu. — Por me proteger.

— Estamos juntos nessa, não é? — Joel indagou com sua voz grave. Finalmente virou a cabeça e olhou para Ellie de soslaio. — Vamos sobreviver.

Ellie apenas maneou com a cabeça num gesto de afirmação contido. Em seguida, puxou a mão de Joel para perto de si e a apertou bem forte, fazendo o homem assustar-se com tal atitude inesperada.

— Estou com medo. — ela confessou. Não aguentava mais guardar para si toda aquela dor e angústia. A mão de Joel doía ainda mais agora. Ellie parecia querer esmagá-la.

Um silêncio preencheu o vazio. O vento assobiava um cântico suave enquanto rodeava as construções desmoronadas daquilo que um dia pôde ser chamado de cidade. Quando respondeu, a voz de Joel parecia embargada e repleta de compreensão. Um tom cálido e ao mesmo tempo melancólico emanava de duas e simples palavras:

— Eu também.

Eles não disseram mais nada, apenas continuaram o caminho.

Sentada na bamba cadeira de madeira no canto do pequeno quarto frio e solitário, Ellie relembrava todos esses acontecimentos com um olhar frio como gelo. Ela mudara. Seus cabelos castanhos cresceram um pouco mais, mas a garota já estava com planos de cortá-lo novamente. Sua expressão endurecera. Agora que estava razoavelmente segura, os acontecimentos pelos quais passara transcorriam lenta e dolorosamente pela sua mente, movidos pelo silêncio absorto.

Um barulho ecoou pelo cômodo. Ellie virou a cabeça para o lado e viu Joel entrar, enquanto seus pés rangiam na madeira do assoalho.

— Oi. — cumprimentou ele, fechando a porta atrás de si. Pegou uma cadeira, arrastou-a e posicionou-a em frente à Ellie. Ao sentar-se, pôde-se notar que sua postura estava ligeiramente envergada.

— Oi. — respondeu ela, distraída. Sequer notara que Joel trouxera consigo um violão. Apenas mirava a paisagem através da pequena janela do quarto. Altas colinas cercavam as casas modestas, e era possível ouvir o som das águas movimentando-se ao longe na represa.

— Eu estava pensando... Que tal retomarmos aquela música que te ensinei ontem? Trouxe um violão pra gente praticar um pouco. — ele disse timidamente, coçando a nuca.

Durante aqueles seis meses após o regresso à cidade onde Tommy morava, Joel prometera a si mesmo que tentaria ser um pouco mais compreensivo com a garota. No fundo, sentia-se um pouco culpado por ter mentido para ela a respeito dos Vaga-Lumes — Ellie poderia se tornar a cura para livrar a humanidade da infecção, mas seria morta para que isso pudesse acontecer —; entretanto, sabia que fizera a coisa certa. Não perderia Ellie jamais.

— Tá. — concordou sem qualquer emoção. Joel franziu a testa.

— O que foi?

— Nada. — Ela enfim olhou para Joel, mas seu semblante continuava distante.

— Ellie — Joel firmou a voz. —, o que aconteceu?

— Nada, porra! — Ellie esbravejou. Desviou o olhar rapidamente, pois sabia que logo seria repreendida por Joel e não queria ter de olhar para sua expressão carrancuda.

— Sabe — desabafou o homem após alguns minutos intermináveis, sua voz rouca preenchendo o vazio do cômodo. Seus dedos calejados afinaram o instrumento em suas mãos. —, quando eu era mais jovem, pensava em ser um herói. Mas não deu certo.

Ellie permaneceu em silêncio, prestando atenção em cada palavra que lhe era dita.

— Não pude sequer salvar minha filha — continuou. — Não hesitei em matar alguém pela primeira vez. Me aliei ao submundo porque, para mim, não havia opção. E sabe o que eu aprendi com tudo isso? Não há mais esperança para a humanidade. Nós, meros mortais, somos a verdadeira praga. A verdadeira causa de nossa extinção.

A garota levantou a cabeça e voltou a fitar Joel. Nunca vira olhos tão tristes.

— Eu... Entendo. — Ellie quis reconfortá-lo. Havia percebido que talvez esse fosse o tal motivo — ou um deles — de Joel ter mentido a ela a respeito dos Vaga-Lumes. Não concordava inteiramente com seu ponto de vista, pois ainda tinha esperança de que as coisas um dia mudariam. Mas decidiu não retrucá-lo. — Me desculpe.

Joel volta seu olhar para o violão, dedilhando uma toada morosa. As notas surgiam tímidas, ecoando pelo quarto.

— Mas você é meu herói. — Ellie diz baixinho em meio à música que toca, um pouco constrangida por dizer algo aparentemente infantil. Joel abre um sorriso sincero, porém um tanto tristonho. As cordas do violão param de vibrar, e o som cessa.

Eles fitam os olhos um do outro, ambos refletindo uma compreensão e amizade mútuas, muito além de duas pessoas que lutaram juntas durante tanto tempo.

— Obrigado, filha.

Ellie esboçou um sorriso grande o suficiente para que desse conta de que não havia perdido tudo. Joel estava vivo, e só isso lhe bastava.

— Eu te amo, pai.

E Joel percebeu naquele momento que ainda havia um sentido para viver. Continuaria lutando. Por Ellie.


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Notas finais do capítulo

:)